Foucault – A Hermenêutica do Sujeito: Aula de 24 de fevereiro de 1982

Foucault – A Hermenêutica do Sujeito: Aula de 24 de fevereiro de 1982

Ubirajara T Schier


PRIMEIRA HORA: A modalização espiritual do saber em Marco Aurélio: o trabalho de análise das representações; definir e descrever; ver e nomear; avaliar e provar; aceder à grandeza de alma. – Exemplos de exercícios espirituais em Epicteto. – Exegese cristã e análise estóica das representações. – Retorno a Marco Aurélio: exercícios de decomposição do objeto no tempo; exercícios de análise do objeto em seus constituintes materiais; exercícios de descrição redutora do objeto. – Estrutura conceitual do saber espiritual. – A figura de Fausto.

1-O Saber Espiritual (segundo Marco Aurélio):

1.1-“o princípio (“voltar o olhar para si mesmo”), articulado pela dupla necessidade de se converter a si e de conhecer o mundo, havia dado lugar a algo que se poderia chamar de modalidade espiritual, de espiritualização do saber do mundo.”

1.2-“Parece-me, com efeito, que encontramos em Marco Aurélio uma figura do saber espiritual que não consiste, para o sujeito, em tomar distância em relação ao lugar em que ele está no mundo, para apreender este mesmo mundo em sua globalidade, mundo no qual ele próprio se acha situado.”


 

1.3-“Com efeito, nada é tão capaz de nos tornar a alma grande quanto poder identificar com método e verdade cada um dos objetos que se apresentam na vida e vê-los sempre de modo tal que consideremos, ao mesmo tempo, a que espécie de universo cada um deles confere utilidade, qual seu valor em relação ao conjunto e qual seu valor em relação ao homem, este cidadão da mais eminente dentre as cidades, em relação à qual as outras cidades são como suas casas; o que é, de quais elementos se compõe, quanto tempo deve naturalmente durar, este objeto que causa esta imagem em mim, e qual é a virtude de que necessito em relação a ele, como por exemplo: doçura, coragem, sinceridade, boa-fé, simplicidade, abstinência, etc”

1.4-“Os supracitados parástemata são três. Seguramente nós os encontramos nos parágrafos precedentes. Um concerne àquilo que devemos considerar como bem: o que é o bem para o sujeito? O segundo dos parastémata concerne à nossa liberdade e ao fato de que tudo para nós depende, na realidade, de nossa própria faculdade de opinar. Nada pode reduzir nem dominar esta faculdade de opinar. Somos sempre livres para opinar como quisermos. Terceiro (terceiro dos parastémata), é o fato de que não há, no fundo, para o sujeito, senão uma instância de realidade, e a única instância de realidade que existe para o sujeito é o próprio instante: o instante infinitamente pequeno que constitui o presente, antes do qual nada mais existe e após o qual tudo ainda é incerto. Portanto, os três parastémata: definição do bem para o sujeito; definição da liberdade para o sujeito; definição do real para o sujeito.”

 


2-O Exercício Espiritual

2.1-“Há pouco eram três princípios, e agora o que se desenvolverá será antes uma prescrição, um esquema, esquema de alguma coisa que é um exercício: exercício espiritual que terá precisamente por papel e função manter sempre no espírito as coisas que devemos ter no espírito – a saber: a definição do bem, a definição da liberdade e a definição do real – e, ao mesmo tempo em que este exercício deve sempre no-los lembrar e reatualizar, deve nos permitir vinculá-los entre si e, por conseguinte, definir aquilo que, em função da liberdade do sujeito, deve, por esta liberdade, ser reconhecido como bem em nosso único elemento de realidade, a saber, o presente.”

2.2-“Primeiro momento: definir e descrever sempre o objeto cuja imagem se apresenta ao espírito. A expressão grega para “definir” é a seguinte: poiefsthai hóron. Hóros é a delimitação, o limite, a fronteira. Poiefsthai hóron é, se quisermos, “traçar a fronteira”. De fato, esta expressão poiefsthai hóron tem duas significações, Ela tem uma significação técnica na ordem da filosofia, da lógica e da gramática. É, simplesmente, estabelecer, dar uma definição adequada. Em segundo lugar, poiefsthai hóron tem também um sentido quase técnico, que pertence mais ao vocabulário corrente, porém que é razoavelmente preciso, e que quer dizer fixar o valor e o pre- ço de alguma coisa. Por conseqüência, o exercício espiritual deve consistir em dar definições, em dar uma definição em termos de lógica ou em termos de semântica; e depois, ao mesmo tempo, fixar o valor de uma coisa.”

 


3-O Exercício Espiritual x Método Intelectual:

3.1-“O exercício espiritual- e isto, encontramos na Antiguidade, na Idade Média certamente, no Renascimento, no século XVII; [seria necessário] ver se reencontramos no século XX – consiste precisamente em deixar se desenrolar espontaneamente o fio e o fluxo das representações. Movimento livre da representação e trabalho sobre este movimento livre: é isto o exercício espiritual sobre a representação.”

3.2-“O método intelectual “consistirá, ao contrário, em se dar uma definição voluntária e sistemática da lei de sucessão das representações e só aceitá-las no espírito sob a condição de que tenham entre si um liame suficientemente forte, obrigatório e necessário, para que sejamos levados logicamente, indubitavelmente, sem hesitação, a passar da primeira à segunda. O caminho cartesiano é da ordem do método intelectual. Esta análise, esta atenção preferencialmente dada ao fluxo da representação é tipicamente da ordem do exercício espiritual. A passagem do exercício espiritual ao método intelectual é evidentemente muito clara em Descartes.”

3.3-“Aí está, pois, o tema geral deste exercício: um fluxo de representações sobre o qual se exercerá um trabalho de análise, de definição e de descrição. Posto este tema, esta “captagem”, por assim dizer, da representação tal qual ela se dá, para dela apreender o conteúdo objetivo, se desenvolverá agora em dois exercícios que são especificados, e que efetivamente darão seu valor espiritual a este trabalho puramente intelectual. Estes dois exercícios, que se ramificam a partir deste tema geral, são o que poderíamos chamar de meditação eidética e de meditação onomástica.”

 


4-Do Valor Espiritual:

4.1-“A segunda fase do exercício consistirá em considerar este objeto, não mais na realidade tal qual ela se dá – na realidade de sua composição, na realidade de sua complexidade atual e de sua fragilidade temporal-, mas consistirá em tentar medir seu valor. “Com efeito, nada é tão capaz de nos tomar a alma grande quanto poder identificar com método e verdade cada um dos objetos que se apresentam na vida e vê-los sempre a fim de considerarmos ao mesmo tempo a que espécie de universo cada um confere utilidade, qual seu valor em relação ao conjunto e qual seu valor em relação ao homem, este cidadão da mais eminente dentre as cidades, em relação à qual as outras cidades são como suas casas.”

4.2-“Trata-se de apreender, pois, o valor do objeto para o kósmos, assim como o seu valor para o homem enquanto cidadão do mundo, isto é, enquanto um ser que, pela natureza, na ordem natural, em função da Providência divina, está situado no interior deste kósmos. Utilidade, se quisermos, deste objeto para o homem enquanto cidadão do mundo em geral, mas também enquanto cidadão”destas cidades particulares” – e com isto é preciso entender não meramente as cidades, como também as diferentes formas de comunidade’ de pertencimento social, etc., inclusive a família -, cidades que são como casas da grande cidade do mundo.”

 


5-Versão do Exercício na Espiritualidade Cristã (segundo Cassino):

5.1-“Cassiano dizia que o espírito é algo que está sempre em movimento. A cada instante, novos objetos se lhe apresentam, novas imagens se lhe oferecem, e não podemos deixar que estas representações entrem livremente – como em um moinho, diríamos, não é Cassiano quem o diz -, e é preciso que a cada instante sejamos suficientemente vigilantes para que, diante deste fluxo das representações que se nos oferecem, decidamos o que é preciso fazer, o que devemos aceitar e o que devemos recusar.”

5.2-“Entre os cristãos, o problema de modo algum consiste em estudar o conteúdo objetivo da representação. O que é analisado, por Cassiano e por todos aqueles em quem ele se inspira, também por aqueles a quem ele inspirará, é a própria representação, a representação em sua realidade psíquica. O problema para Cassiano não está em saber qual a natureza do objeto que é representado.°problema está em saber qual o grau de pureza da própria representação enquanto ideia, enquanto imagem. O problema consiste essencialmente em saber se a ideia está ou não misturada com concupiscência, se é mesmo a representação do mundo exterior ou uma simples ilusão. E através desta questão, que incide sobre a natureza, sobre a própria materialidade desta ideia, o que se coloca é a questão da origem. A ideia que tenho no espírito me vem de Deus – e seria por isto necessariamente pura? Vem de Satã – e seria por isto impura? Ou ainda, vem de mim, e neste caso em que medida se pode dizer que é pura, em que medida se pode dizer que é impura? Conseqüentemente, questão sobre a própria pureza da representação em sua natureza de representação; e em segundo lugar questão sobre sua origem.”

6-Comparação entre o exercício de Marco Aurélio e Cassiano:

6.1-“Vemos que Marco Aurélio também coloca a questão sobre a origem. Não porém a questão sobre a origem da representação. Ele não se pergunta se a representação em si mesma vem de mim, se me foi sugerida por Deus ou insinuada por Satã. A questão sobre a origem por ele colocada é sobre a origem da coisa representada: pertence ela à ordem necessária do mundo, vem diretamente de Deus, de sua Providência e de sua benevolência para comigo, ou ainda, vem de alguém que faz parte da minha sociedade e do gênero humano? Vemos, portanto, que o essencial da análise dos estóicos, aqui apresentada em Marco Aurélio, incide sobre· a análise do conteúdo representativo, ao passo que o essencial da meditação e do exercício espiritual cristão incidirá sobre a natureza e a origem do próprio pensamento. A questão colocada por Marco Aurélio está endereçada ao mundo exterior; a questão que será colocada por Cassiano está endereçada ao próprio pensamento, à sua natureza, à sua interioridade.”

 


 

7- Exercício de Marco Aurélio posto em prática e conclusões:

7.1-“Deixo de lado tudo isto. Gostaria agora de averiguar como este princípio geral do exame do conteúdo representativo é efetivamente posto em prática por Marco Aurélio em uma série de exercícios que têm, todos, uma função moral precisa e bem particular. [… *]. Primeiro, os exercícios de decomposição do objeto no tempo; segundo, os exercícios de decomposição do objeto nos seus elementos constituintes; terceiro, os exercícios de descrição redutora, desqualificante.”

7.2-“Vemos como o princípio do presente enquanto instância do real, da lei de determinação do bem e da garantia da liberdade do indivíduo, enfim o princípio [segundo O qual] o indivíduo deve garantir sua própria liberdade em relação a tudo que o cerca, tudo isto assegurado pelo exercício de pôr em descontinuidade movimentos que são contínuos, instantes que se encadeiam uns aos outros. A lei da percepção instantânea é um exercício de liberação garantindo ao sujeito que ele será sempre mais forte do que cada elemento do real que lhe é apresentado. “

7.3-“”Em suma, exceto pela virtude e por aquilo que a ela se liga, não te esqueças de penetrar a fundo no detalhe das coisas a fim de chegar, por esta análise, a desprezá-Ias. Aplica o mesmo procedimento a toda a vida.” É preciso, diz ele, “aplicar a toda a vida” esta análise da percepção das continuidades, da percepção analítica das continuidades. Com isto quer dizer, não somente a todas as coisas que podem nos cercar, mas que é preciso aplicá-Ia também à nossa própria existência e a nós mesmos.”

7.4-“Exceto pela virtude e por aquilo que a ela se ligá, não te esqueças de penetrar a fundo no detalhe das coisas. Aplica o mesmo procedimento a toda a vida. O único elemento, afinal, em cujo interior podemos encontrar, ou em cujo fundo podemos estabelecer nossa identidade, é a virtude·e, como bem sabemos, em função da doutrina estoica, a virtude é indecomponível. Indecomponível pela simples razão de que a virtude não é senão a unidade, a coerência, a força de coesão da própria alma. Ela é sua não-dispersão. E também pela simples razão de que a virtude escapa ao tempo: um.instante de virtude vale a eternidade. Portanto, é nesta coesão da alma indissociável, indivisível em elementos e que faz equivaler um instante à eternidade, é aí e somente aí que poderemos encontrar nossa identidade. “

 


 

8- Diferença do Exercício Espiritual entre Marco Aurélio e Sêneca:

8.1-“Como vemos, tem-se a impressão que, à primeira vista, esta figura do exercício espiritual pelo saber sobre o mundo é inversa àquela encontrada em Sêneca. Entretanto, são necessárias algumas observações. Vemos em Marco Aurélio, como em Sêneca, há de todo modo um certo olhar de cima para baixo. Mas, enquanto em Sêneca o olhar de cima para baixo se faz a partir do topo do mundo, em Marco Aurélio o ponto de partida deste olhar de cima para baixo não está no topo do mundo. Ao contrário, está no nível da existência humana. O olhar se efetua precisamente a partir do ponto em que estamos, e o problema consiste em descer, de certo modo, abaixo do ponto em que estamos, para conseguirmos mergulhar até o cerne das coisas, permitindo-nos atravessá-las de ponta a ponta.”

8.2-“Portanto, é antes a uma espécie de dissolução da individualidade que se orienta o exercício espiritual de Marco Aurélio, ao passo que o exercício espiritual de Sêneca – com o deslocamento do sujeito para o topo do mundo de onde ele pode apreender-se em sua singularidade – tinha antes por função fundar e estabelecer a identidade do sujeito, sua singularidade e o ser estável do eu que ele constitui. “

 


 

9-Justificativa:

9.1-“Parece-me que, ao colocar esta questão e ao examinar como Sêneca ou Marco Aurélio a resolvem, fica perfeitamente claro que não se trata, de modo algum, de constituir – ao lado, em face ou contra o saber sobre o mundo – um saber que seria o saber sobre o ser humano, sobre a alma, sobre a interioridade. “

9.2-“Trata-se, pois, da modalização do saber sobre as coisas, modalização que se caracteriza da maneira que passo a expor. Primeiro, trata-se de um certo deslocamento do sujeito, quer suba até o topo do universo para vê-lo em sua totalidade, quer se esforce em descer até o cerne das coisas. De qualquer maneira, não é permanecendo onde está que o sujeito pode saber do modo como convém. Este é o primeiro ponto, a primeira característica do saber espiritual.”

9.3-“Segundo, a partir deste deslocamento do sujeito, está dada a possibilidade de apreender as coisas ao mesmo tempo em sua realidade e em seu valor. E por “valor” entende-se seu lugar, sua relação, sua dimensão própria no interior do mundo assim como sua relação, sua importância, seu poder real sobre o sujeito humano enquanto ele é livre.”

9.4-“Terceiro, neste saber espiritual, trata-se para o sujeito de ser capaz de ver a si mesmo, apreender-se em sua realidade. Trata-se de uma espécie de “heautoscopia”. O sujeito deve perceber-se na verdade de seu ser. Em quarto lugar finalmente, o efeito deste saber sobre o sujeito está assegurado pelo fato de que nele o sujeito não apenas descobre sua liberdade, mas encontra em sua liberdade um modo de ser que é o da felicidade e de toda a perfeição de que ele é capaz. “

9.5-“Pois bem, um saber que implica estas quatro condi- ções (deslocamento do sujeito, valorização das coisas a partir de sua realidade no interior do kósmos, possibilidade para o sujeito de ver a si mesmo, transfiguração enfim do modo de ser do sujeito por efeito do saber), é isto, creio, que constitui o que poderíamos chamar de saber espiritual.”

 


 

SEGUNDA HORA: A virtude em sua relação com a áskesis; A ausêncía de referêncía ao conhecímento objetivo do sujeito na máthesis; A ausêncía de referêncía à lei na áskesis; Objetivo e meio da áskesis; Caracterização da paraskeué: o sábio como atleta do acontecímento; Conteúdo da paraskeué: os discursos-ação; Modo de ser destes discursos: o prókheiron; A áskesis como prática de incorporação ao sujeito de um dizer-verdadeiro.

 

Musonius Rufus dizia que a aquisição da virtude implica duas coisas. De um lado, requer um saber teórico (epistéme theoretike), e de outro deve também comportar uma epistéme praktiké (um saber prático). (FOUCAULT. pg. 382)

Não é por referência a uma instância como a da lei que a áskesis se estabelece e desenvolve suas técnicas. A áskesis é na realidade uma prática da verdade. A ascese não é uma maneira de submeter o sujeito à lei: é uma maneira de ligar o sujeito à verdade. Creio ser preciso termos isto presente, porque temos na mente, por causa de nossa própria cultura e de nossas categorias, muitos esquemas capazes de nos confundir. (FOUCAULT. pg.383)

Creio que a ascese (áskesis) entre os antigos tinha um sentido profundamente diferente. Primeiro, porque evidentemente não se tratava de chegar, tanto no termo da ascese quanto em seu alvo, à renúncia a si. Tratava-se, ao contrário, da constituição de si mesmo. Digamos mais exatamente: tratava-se de chegar à formação de uma certa relação de si para consigo que fosse plena, acabada, completa, auto-suficiente e suscetível de produzir a transfiguração de si que consiste na felicidade que se tem consigo mesmo. Este era o objetivo da ascese. (FOUCAULT. pg.386)

Portanto, o objetivo da ascese na Antiguidade é realmente a constituição de uma relação plena, acabada e completa de si para consigo. Em segundo lugar, não se deve buscar o meio da ascese antiga na renúncia a uma ou outra parte de si mesmo. Certamente veremos que existem elementos de renúncia. Existem elementos de austeridade. E pode-se até mesmo dizer que o essencial, pelo menos uma parte considerável, daquilo que será a renúncia cristã, já está exigido na ascese antiga. (FOUCAULT. pg.386)

Trata-se, ao contrário, de adquirir algo pela áskesis (pela ascese). É necessário dotar-se de algo que não se tem, no lugar de renunciar a algum elemento que seríamos ou teríamos em nós mesmos. É preciso se dotar de algo que, precisamente, no lugar de nos conduzir a renunciar pouco a pouco a nós mesmos, permitirá proteger o eu e chegar até ele. Em duas palavras, a ascese antiga não reduz: ela equipa, ela dota. E aquilo de que ela equipa, aquilo de que ela dota, é o que em grego se chama paraskeué, que Sêneca traduz freqüentemente em latim por instructio. (FOUCAULT. pg.387)

O que é a paraskeué? Pois bem, a paraskeué é o que se poderia chamar uma preparação ao mesmo tempo aberta e finalizada do individuo para os acontecimentos da vida. Quero com isto dizer que se trata, na ascese, de preparar o individuo para o futuro, um futuro que é constituído de acontecimentos imprevistos, acontecimentos cuja natureza em geral talvez conheçamos, os quais porém não podemos saber quando se produzirão nem mesmo se se produzirão. Trata-se pois, na ascese, de encontrar uma preparação, uma paraskeué capaz de ajustar-se ao que possa se produzir, e a isto somente, no momento exato em que se produzir, caso venha a produzir-se. (FOUCAULT. pg.387)

Trata-se de nos preparar somente para aquilo com que podemos nos deparar, somente para os acontecimentos que podemos encontrar, não [porém] de maneira a superar os outros, nem de maneira a superar a nós mesmos. Podemos encontrar, por vezes, a noção de “superação de si” nos estóicos – procurarei voltar a isto -, mas não nesta forma, por assim dizer, da gradação indefinida em direção ao que há de mais difícil encontrado na ascese cristã. Não se trata pois de ultrapassar os outros nem de ultrapassar a si mesmo; trata-se, sempre segundo aquela categoria de que lhes falava há pouco, de ser mais forte, ou de não ser mais fraco do que aquilo que pode acontecer. O treinamento do bom atleta deve ser, portanto, o treinamento em alguns movimentos elementares’ mas suficientemente gerais e .eficazes para que possam ser adaptados a todas as circunstâncias, e para que possamos – sob a condição de serem também suficientemente simples ,e bem adquiridos – deles dispor sempre que necessário. E esta aprendizagem de alguns movimentos elementares, necessários e suficientes para qualquer circunstância possível, que constitui o bom treinamento, a boa ascese. E a paraskeué não será mais do que o conjunto de movimentos necessários e suficientes, o conjunto de práticas necessárias e suficientes [para] permitir-nos ser mais fortes do que tudo que possa acontecer ao longo de nossa existência. É esta a formação atlética do sábio. Particularmente bem definido por Demetrius, este tema é amplamente encontrado. Embora também o encontremos em Sêneca, em Epicteto, etc., cito~ lhes uma passagem de Marco Aurélio: “A arte de viver [o que chama do”que . de com biótica, a dança, he biotiké; na medida M.F.] parece-se em que se mais deve com sempre a luta manter-se alerta e ereto contra os golpes imprevistos que caem sobre vós. (FOUCAULT. pg.388)

O atleta cristão estará na via indefinida do progresso em direção à santidade, em que deve superar-se a si mesmo, a ponto de renunciar a si. E principalmente também, o atleta cristão é aquele que terá um inimigo, um adversário, que se manterá alerta. Com relação a quem e a quê? Ora, com relação a ele próprio! Com relação a ele próprio na medida em que (pecado, natureza decaída, sedução pelo demônio, etc.) é nele próprio que encontrará os mais venenosos e perigosos dos poderes que terá de enfrentar. O atleta estóico, o atleta da espiritualidade antiga, com efeito, também ele tem que lutar. Tem que estar pronto para uma luta, luta na qual tem por adversário tudo o que, advindo do mundo exterior, pode se apresentar: o acontecimento. O atleta antigo é um atleta do acontecimento. Já o cristão é um atleta de si mesmo. Este, o primeiro ponto. Em segundo lugar, de que é feito este equipamento (paraskeué)? Pois bem, o equipamento do qual devemos nos dotar e que permite respondermos sempre que necessário, ./ com os meios ao mesmo tempo mais simples e eficazes, é constituído pelos lógoi (discursos). E aqui é preciso prestar muita atenção. Por lógoi não basta entender apenas um equipamento de proposições, de princípios, de axiomas, etc., que sejam verdadeiros. É preciso entender os discursos enquanto enunciados materialmente existentes. O bom atleta, que tem a paraskeué suficiente, não é simplesmente aquele que sabe uma ou outra coisa concernente à ordem geral da natureza ou os preceitos particulares correspondentes a tal ou qual circunstância, mas é aquele que tem – por enquanto digo “na mente”, mas será necessário voltar a este assunto – nele arraigado, nele implantado. (FOUCAULT. pg.389)

O problema é que o atleta é aquele, portanto, que se dota de frases efetivamente ouvidas ou lidas, por ele efetivamente rememoradas, re-pronunciadas, escritas e reescritas. São lições do mestre, frases que ouviu, frases que disse, que disse a si mesmo. É deste equipamento material de lógos, entendido neste sentido, que é constituí- da a armadura necessária àquele que deve ser o bom atleta do acontecimento, o bom atleta da fortuna. Em segundo lugar, estes discursos ~ discursos existentes em sua materialidade’ adquiridos em sua materialidade, mantidos em sua materialidade – não são, certamente, discursos quaisquer. São proposições, proposições, como a própria palavra lógos o indica, fundadas na razão. Fundadas na razão, isto é, ao mesmo tempo em que são razoáveis, são verdadeiras e constituem princípios aceitáveis de comportamento. São, na filosofia estóica, os dógmata e os praecepta – não me detenho neste ponto (eventualmente voltaremos a ele, mas não é absolutamente necessário). O que gostaria de ressaltar é que estas frases efetivamente existentes, estes lógoi materialmente existentes são pois frases, elementos de discurso, de racionalidade: de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que é preciso fazer. Enfim, em terceiro lugar, estes discursos são discursos persuasivos. Isto Significa que não só dizem o que é verdadeiro ou o que é preciso fazer, mas, quando constituem uma boa paraskeué estes lógoi não se contentam em estar presentes como se fossem ordens dadas ao sujeito. São persuasivos no sentido em que acarretam não somente a convicção, mas também os próprios atos. São esquemas indutores de ação que, em, seu valor e sua eficácia indutora, uma vez presentes – na mente, no pensamento, no coração, no próprio corpo de quem os detém -, este que os detém agirá como que espontaneamente. É como se estes próprios lógoi, incorporando-se pouco a pouco na sua própria razão, na sua própria liberdade e na sua própria vontade, falassem, falassem por ele: não somente dizendo-lhe o que é preciso fazer, mas efetivamente fazendo, na forma da racionalidade necessária, o que é preciso fazer. E, portanto, como matrizes de ação que estes elementos materiais de lógos razoável estão efetivamente inscritos no sujeito. É isto, a paraskeué. E é isto que a áskesis necessária ao atleta da vida visa obter.

O terceiro caráter desta paraskeué é a questão do modo de ser. Para que este discurso, ou melhor, estes discursos, estes elementos materiais de discursos, possam constituir efetivamente a,preparação de que se tem necessidade, é preciso que sejam não somente adquiridos, mas também dotados de uma espécie de presença permanente, ao mesmo tempo virtual e eficaz, que permita que a eles se recorra sempre que necessário. Este lógos que constitui a paraskeué deve ser ao mesmo tempo um socorro. (FOUCAULT. pg.390-391)

 


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. [tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail]. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006.

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