O Problema do Testemunho (Seminários II – Grau A)

Apresentação e discussão sobre o problema do testemunho


Leituras

1: O´Brian, Introdução a Teoria do Conhecimento, capítulo 5;

2: Pritchard, What is this thing Called knowledge?, capítulo 8


Apresentação

O problema do testemunho consiste na reflexão sobre a veracidade – ou a falta dela – em relação à todo conhecimento que é adquirido por meio do intermédio de alguém ou de alguma coisa. À esse dá-se o nome de conhecimento testemunhal.

Uma forma de tratar a veracidade de um conhecimento testemunhal é segundo a perspectiva de Hume. Na visão de O’Brien, a perspectiva de Hume:

Eu só tenho justificação para acreditar no que alguém diz se souber que as pessoas em causa têm um bom registro, isto é, se souber que disseram consistentemente a verdade em ocasiões anteriores. (O’Brien, pág. 77-78)

Em termos práticos:

Tenho justificação para acreditar na Marta porque tenho uma prova perceptual de que ela disse regularmente a verdade no passado, porque me lembro de que ela tem um registo fidedigno, e porque sou capaz de efetuar a inferência acima referida. (O’Brien, pág. 78)

Outra forma de tratar a aceitabilidade de um testemunho é segundo a visão de Reid, que parte do princípio de que existe uma tendência natural do ser humano em dizer a verdade e, que, portanto, deve-se tomar o testemunho como verdadeiro até que se apresentem razões para não fazê-lo. 

O problema da visão de Hume é de que forma pode-se determinar que a fonte de um testemunho é confiável? Uma resposta à esse problema é apresentada pela visão reducionista, onde nesta, enquanto a justificação de um conhecimento testemunhas for baseada em outro testemunho, dever-se-ia continuar até que se chegasse à uma justificação com base em fundamentos não-testemunhais.

A possibilidade de que ocorra uma busca sem-fim por uma justificação não-testemunhal, ou então que uma justificação acabe se fundamentando em outra já utilizada anteriormente, fizeram com que essa necessidade fosse questionada. Os credulistas por sua vez, defendem a ideia de que o testemunho em si seria fidedigno por natureza, tal como na concepção de Thomas Reid:

É evidente que, em matéria de testemunho, o equilíbrio do julgamento humano é por natureza inclinado para o lado da crença. ( Reid, uma investigação sobre a mente humana)

Em termos práticos, os credulistas se apoiam na ideia de Reid – o fato do ser humano possuir uma tendência natural à dizer à verdade – para defender a visão de que essa tendência natural à verdade seria uma justificação suficiente para se acreditar em um testemunho.

Discussão

Presume-se que a situação consistirá sempre na existência de um dado agente, que deverá decidir em relação à aceitar ou não um testemunho como verdadeiro.

Tanto o credulismo quanto o reducionismo nos levam à extremos insatisfatórios. Se duvidarmos de todo e qualquer testemunho, muito pouco aprenderemos; por outro lado se acreditarmos em todo e qualquer testemunho, possivelmente muito do que aprendermos possa não ser verdadeiro.

Em primeiro lugar, deve-se verificar: são todos os testemunhos verdadeiros? Não existem testemunhos falsos? Ou o contrário: São todos os testemunhos falsos? Não existem testemunhos verdadeiros? Tanto credulistas quanto os reducionistas possivelmente não encontrarão objeção para negar que existem testemunhos falsos, mas que também existem testemunhos verdadeiros. Credulistas e reducionistas procuram assegurar um caminho tranquilo para que assim possamos tomar um testemunho como verdadeiro OU como falso – cada um com suas vantagens e desvantagens – mas fato é que dessa forma, parte da realidade seria negada pelo agente.

A visão credulista parece ainda mais ingênua, pois se fosse significativo o fato de que o ser humano tender a falar a verdade, então nesse caso, a realidade se apresentaria também dessa forma, ou seja, o número de testemunhos verdadeiros deveria ser, no mínimo, significativamente muito maior do que o número de testemunhos falsos. Nessas condições, o número de testemunhos falsos seria insignificante a tal ponto de ninguém precisar se preocupar com eles e poder, assim, tomar qualquer testemunho como verdadeiro até que (e se) prove o contrário.

A visão reducionista parece muito mais alinhada com a realidade, pois defende ao menos a necessidade de se verificar a credibilidade de quem testemunha para só então tomar um testemunho como verdadeiro até que se prove sua falsidade. Como devemos atestar a credibilidade de quem testemunha e até que ponto situado entre o testemunho recebido e uma justificação não testemunhal iríamos é talvez uma definição que deva ficar mesmo em aberto.

Pois entende-se como uma generalização o fato de tomar qualquer testemunho como verdadeiro até que uma justificação demonstre o contrário, ou então, tomar de um testemunho como falso enquanto não houverem justificações que lhe atestem confiabilidade. E generalizações não se fazem apropriadas, uma vez que, efetivamente, existem e lidamos com ambos tipos de testemunhos e qualquer generalização é negar a existência de ambos.

Supondo o agente um filósofo ingênuo, ou seja, aquele agente que se depara com a decisão de se tomar um testemunho como falso ou verdadeiro livre de qualquer dogma, possivelmente se perguntaria primeiramente:

– “será esse testemunho verdadeiro?” (se esse tiver uma certa tendência ao credulismo)

ou então:

– “será esse testemunho falso?” (no caso de uma certa tendência reducionista)

Independente da tendência do agente, observamos que enquanto um que duvida da veracidade de testemunho, o outro suspeita de sua falsidade, mas em ambos os casos, entretanto, é a dúvida que sempre antecede ambos os julgamentos.

Deve-se tratar, portanto, um testemunho primeiramente por meio da dúvida e não meio da certeza quanto à sua veracidade ou falsidade. É somente por meio de uma resposta à dúvida que o agente, que recebe o testemunho, decidirá se o mesmo deve ser tomado como verdadeiro ou falso.

Respostas à dúvida:

Algumas premissas se fazem necessárias ao agente para que este possa decidir se aceita ou não um testemunho como verdadeiro, antes de o consolidar assim, como conhecimento:

  1. Probabilidade: Para todo e qualquer testemunho existe uma probabilidade do mesmo ser de fato verdadeiro ou do mesmo não ser verdadeiro. Aquele que testemunha também pode, por sua vez, também acreditar que aquilo que está à testemunhar é verdadeiro, quando na verdade pode não o ser. À este podemos chamar de “testemunho enganoso”; Um reducionista tenderia a aumentar ou diminuir a probabilidade de aceitar o testemunho como verdadeiro na condição de poder atestar a reputação histórica positiva daquele que testemunha. Um credulista por sua vez, na ausência de razões para se duvidar do testemunho, necessitaria tê-lo como verdadeiro, até que se prove o contrário. Enquanto a dúvida do reducionista proporciona a oportunidade de validação quanto à verdade do testemunho, a crença do credulista fecha essa porta.
  2. Verificabilidade: Um testemunho pode ser considerado conhecimento se, ao menos, existir a possibilidade de se chegar à uma justificação não testemunhal, ou seja, a verificação é possível; Assim, caso seja impossível se chegar à uma justificação não testemunhal, então o mesmo não pode ser tomado como conhecimento, e sim como crença.
  3. Pragmatismo: Supondo um agente pragmático, cuja intenção é utilizar o testemunho recebido para um determinado fim com o objetivo de atingir um determinado resultado. O agente pragmático poderia se perguntar, inicialmente:
    1. Para qual fim aplicarei o testemunho?
    2. Se o testemunho for verdadeiro ou falso, qual será o meu benefício ou prejuízo?
    3. Com base no conhecimento que tenho do testemunho em si, bem como daquele que o testemunha, qual a probabilidade do testemunho ser falso ou verdadeiro?
    4. De quanto seria meu prejuízo para validar o testemunho até obter uma probabilidade significativa para que se possa dá-lo como verdadeiro?
    5. De quanto seria meu benefício em tomar o testemunho imediatamente como verdadeiro até que algo o prove ser falso?

As respostas à estas perguntas iniciais indicarão ao agente os riscos e benefícios em se tomar o testemunho como verdadeiro sem qualquer validação como, também, os riscos e benefícios em verificar a veracidade do testemunho, quando o mesmo é tomado imediatamente como falso.

Em outras palavras, o agente pragmático obterá o melhor resultado assumindo um testemunho como falso e investigando até que a probabilidade do mesmo ser verdadeiro seja satisfatória ao agente ou então, assumindo o mesmo imediatamente como verdadeiro, porém nesse caso correndo o risco do mesmo se provar falso quando em sua aplicabilidade.

Um conhecimento deve, portanto, estar associado à alguma finalidade. É a finalidade que dá importância quanto à veracidade de um testemunho. A falta de finalidade/utilidade, por sua vez, possivelmente não fará muita diferença se o testemunho for falso ou verdadeiro.

Percebe-se desta forma que tanto o credulismo quanto o reducionismo defendem posições teóricas da forma como devem ser tratados o conhecimento testemunhal, porém, tais teorias talvez não importem tanto à um filósofo ingênuo, que, instigado à buscar a verdade em cada testemunho recebido, pondera, avalia e decide, de forma pragmática, se consolidará em conhecimento o conteúdo de um testemunho.

O filósofo ingênuo tomará, portanto, um testemunho como verdadeiro ou como falso por suas próprias convicções, e não por que o homem por natureza é fadado a testemunhar a verdade, nem tão pouco por que lhe faltam evidências para confiar naquele que está transmitindo o testemunho.

Outra ponderação importante à ser feita é quanto à aplicabilidade do testemunho. É a aplicação do testemunho recebido que dá a oportunidade ao agente em criar uma justificação não-testemunhal. Ao atestar que um conhecimento testemunhal é verdadeiro por ter sido aplicado e constatado empiricamente que o mesmo é verdadeiro, permite afirmar que um determinado testemunho é verdadeiro por que o mesmo mostrou-se verdadeiro tal como foi testemunhado. Enquanto não aplicado, o agente não poderá, ele próprio, atestar a veracidade ou falsidade do testemunho recebido. A aplicabilidade de um testemunho cria um ponto de justificação não testemunhal.

Ao mesmo tempo existirão conhecimentos teóricos sem aplicação ou com grandes dificuldades de serem aplicados, em que o agente decidirá se os tomará como verdadeiros ou então os rejeitará, assumindo sua falsidade. Porém, isso acontecerá em função da convicção do agente, em relação às respostas à dúvida, se deve assumir um testemunho como conhecimento verdadeiro ou não. Assim, ele dirá que determinado testemunho é verdadeiro ou falso em função de suas próprias convicções.

Dessa forma, conclui-se que um conhecimento testemunhal deverá ser tomado como verdadeiro ou falso ou por meio do resultado da aplicabilidade do conhecimento testemunhado, ou – quando sua aplicabilidade é impossível ou inviável – por meio das convicções do próprio agente. Poder-se-ia denominar essa visão de relativista, pois depende essencialmente do agente.

 

 

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