O Príncipe de Maquiavel – Capítulos XIX à XXVI

Capítulo 19 – Página 80
o príncipe, como em parte já se disse, cuide de escapar a tudo aquilo que o
torne odiado ou desprezado, pois, sempre que ele o tiver evitado, terá cumprido
sua parte e não será ameaçado por outras infâmias.
O que o torna mais odioso,
como eu disse, é ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres de seus súditos,
devendo abster-se deles. E, uma vez que não se atente nem contra a honra nem
contra os bens dos homens, a maioria deles viverá satisfeita
Pois um príncipe precisa temer dois
perigos: um que advém de dentro, por conta de seus súditos; outro que vem de
fora, por conta dos potentados estrangeiros. Deste último ele se defende com
exércitos capazes e bons amigos — e, sempre que tiver bons exércitos, terá bons
amigos. Assim, estando os assuntos externos estabilizados, os internos ficariam
sob controle, a menos que já estivessem perturbados por conjuras;
que eles conspirem secretamente; e nesse ponto o príncipe só se assegura
evitando ser odiado ou desprezado e mantendo o povo satisfeito com ele — o que
é imprescindível, como já se disse exaustivamente. Um dos mais poderosos
remédios que um príncipe dispõe contra as conjuras é não ser odiado pela
maioria; isso porque quem conspira sempre acredita que satisfará o povo com a
morte do príncipe, mas, se os conjurados acharem que tal ação ofenderá o povo,
não se animarão a tomar tal partido

Página 81
Concluo, pois, que um príncipe não deve temer as conjuras quando tiver o
povo a seu favor; porém, caso a população o odeie e seja sua inimiga, haverá
motivos para temer tudo e todos. Por isso os Estados bem administrados e os
príncipes sábios sempre dedicaram a máxima diligência em não descontentar os
poderosos, satisfazer o povo e mantê-lo contente — porque esta é uma das
ocupações mais importantes de um príncipe

Página 82
Donde se pode extrair outro princípio
notável: os príncipes devem- T transferir as decisões importunas para outrem,
deixando as agradáveis para si. E mais uma vez concluo que um príncipe deve
estimar os poderosos, mas sem se fazer odiar pelo povo.

Página 83
E aqui se deve
notar que o ódio pode derivar tanto das boas ações quanto das ruins; porém, como
eu disse acima, se um príncipe quiser manter o poder, muitas vezes será forçado
a não ser bom. Pois, quando uma das forças — povo ou soldados ou poderosos
que sejam — de cujo apoio o príncipe acredita depender para manter-se é
corrupta, convém que ele siga o humor dela a fim de contentá-la, e nesse caso as
boas ações lhe serão prejudiciais.

Página 86
Por isso um príncipe novo, em um novo
principado, não deve imitar as ações de Marco Aurélio, assim como não precisa
seguir as de Severo: cabe-lhe tomar de Severo aquilo que for necessário para
fundar seu domínio e, de Marco Aurélio, aquelas atitudes convenientes e
honrosas a fim de conservar um Estado que já esteja estabelecido e firme.

Capítulo XX – Página 87
Nunca houve, pois, um príncipe novo que desarmasse seus súditos; ao
contrário, quando os encontrou desarmados, sempre os armou; isso porque, ao
armá-los, tais armas se tornam suas, tornam-se fiéis os que antes eram
suspeitosos, os que já eram fiéis se mantêm assim e, de súditos, se tornam seus
partidários.
Contudo, se forem desarmados, começarão a se sentir ofendidos, pois
parecerá que você desconfia deles, por considerá-los vis ou indignos de fé, e
ambas as alternativas produzem ódio contra você; e, como um príncipe não pode
ficar desarmado, convém que recorra a milícias mercenárias, as quais possuem
aquelas qualidades que mencionei anteriormente e, ainda que fossem boas, não o
seriam o bastante para defendê-lo de inimigos poderosos e de súditos suspeitos.
Página 89
Portanto as fortalezas podem ser úteis ou não, a depender das épocas; e, se por
um lado podem servir ao soberano, por outro podem ser perniciosas. Pode-se
resumir o que foi dito nos seguintes termos: o príncipe que tem mais medo de seu
povo que dos estrangeiros deve construir fortalezas; mas aquele que tem mais
medo dos estrangeiros que de seu povo deve dispensá-las.
Entretanto a melhor fortaleza
que há é não ser odiado pelo povo; pois, por mais fortalezas que você tenha, se o
povo o odiar, elas não o salvarão; e jamais faltará ao povo que se rebele contra
você o socorro de estrangeiros.

Capítulo XXI – Página 90
Não há nada que faça um príncipe mais estimado que empreender grandes
campanhas e dar de si memoráveis exemplos.
Um príncipe também é estimado quando se mostra um verdadeiro amigo e
um verdadeiro inimigo, isto é, quando sem nenhum escrúpulo se revela a favor
de alguém e contra outro. Tal partido é sempre mais útil que a neutralidade, uma
vez que, se dois potentados vizinhos entram em guerra, ou se dá o caso de que,
vencendo um deles, você tenha de temer o vencedor, ou ocorre o contrário. Em
ambas as hipóteses, será sempre mais vantajoso revelar-se abertamente e
combater uma boa batalha; porque, no primeiro caso, se você não tomar partido,
estará sempre na mira de quem venceu, para deleite e satisfação daquele que foi
derrotado; e não há razão nem coisa nenhuma que o defenda, nem ninguém que
o acolha: porque quem vence não quer amigos suspeitos e que não o ajudem nas adversidades; e quem perde não o acolhe, já que você não quis pegar em armas
para reverter sua fortuna.
De todo modo, sempre ocorrerá que aquele que
não é amigo o procure buscando a imparcialidade, e o que é amigo lhe peça que
tome partido e o ajude com as armas. Assim os príncipes irresolutos, para fugir
de iminentes perigos, seguem o mais das vezes a via da neutralidade — e o mais
das vezes se arruínam.
Porém, quando o príncipe se manifesta com coragem em favor de uma das
partes, se aquele a quem se aliou sai vitorioso, ainda que ele seja mais poderoso e
você permaneça à sua mercê, ter-se-á estabelecido uma sorte de obrigação e
um afeto recíproco
No entanto, se aquele a quem você se aliou saiu derrotado, ele o acolherá e ajudará
tanto quanto possível, e você se tornará companheiro de uma fortuna que pode
ter seu revés.
Aqui se deve notar que um príncipe deve
precaver-se de jamais aliar-se a alguém mais poderoso que ele para oprimir
outros, a menos que a necessidade o constrinja a isso, como foi dito acima; isso
porque, se vencer, permanecerá prisioneiro daquele — e os príncipes devem
evitar acima de tudo ficar à mercê de outrem.
Mas que nenhum Estado ache que possa sempre tomar um
partido seguro, ao contrário, melhor pensar que todos eles são incertos; porque
isso está na ordem das coisas, de modo que nunca se escapa a um inconveniente
sem que se incorra em outro: a prudência consiste em saber sopesar as qualidades dos inconvenientes e tomar o menos nefasto por bom.

Capítulo XXII

Ressalta a importância do príncipe de reconhecer as qualidades daqueles que irão o apoiar enquanto ministro. Para que possa ser confiável, o ministro não pode jamais pensar mais em si mesmos do que no soberano.

Uma vez bem escolhido, para mantê-lo, deve honrá-lo e enriquecê-lo, compartilhando com ele as honrarias e os encargos, de forma que se torne indispensável estar com o príncipe.

“Príncipe e seus ministros estão assim predispostos, podem confiar um no outro: do contrário, o fim será sempre danoso para um ou para outro.”

Capítulo XXIII – Página 94
porque um príncipe não tem outro
modo de esquivar-se das adulações senão fazendo os homens entenderem que
eles não o ofendem dizendo-lhe a verdade; porém, se todos lhe disserem a
verdade, lhe faltará a reverência devida. Por isso o príncipe prudente deve seguir
uma terceira via, elegendo em seu Estado homens sábios, e somente a esses
eleitos deve dar livre acesso a que lhe digam a verdade, e apenas sobre as
questões que lhe forem dirigidas, não mais; porém ele deve indagá-los sobre
tudo, ouvir suas opiniões e depois deliberar sozinho e ao seu modo; diante de tais
opiniões, e perante cada um deles, deve ainda comportar-se de modo que todos
percebam que, quanto mais se falar abertamente, mais ele o apreciará; afora
esses, não queira ouvir mais ninguém, persiga aquilo que foi decidid
re as
questões que lhe forem dirigidas, não mais; porém ele deve indagá-los
ido
ido
do e seja
obstinado em suas resoluções.
Portanto um príncipe deve aconselhar-se sempre, mas apenas quando ele
quiser, e não segundo a vontade de outros; aliás, ele deve demover qualquer um
que pretenda aconselhá-lo sem ter sido consultado; e há de ser largo nas
perguntas e, acerca do que foi indagado, ouvir pacientemente as verdades; aliás,
caso note que alguém por algum motivo as omita, deve mostrar-se irritado. E
certamente se enganam aqueles que julgam que determinados príncipes são
reputados prudentes não por sua natureza, mas apenas pelos bons conselhos que
recebem de quem está à sua volta
Porque aí está uma regra geral que nunca
falha: um príncipe que não seja por si mesmo sensato não pode ser bem aconselhado, a menos que tivesse a sorte de depender de um único homem,
prudentíssimo, que o governasse em tudo.
Todavia, aconselhando-se com mais de um, o príncipe que
não for sensato nunca chegará a um consenso das opiniões, não saberá articulá-
las por sua própria conta; quanto aos conselheiros, cada qual pensará em seu
interesse particular, e o príncipe não saberá corrigi-los nem entendê-los: e não
pode ser de outro jeito, porque os homens sempre lhe parecerão maus se por
alguma necessidade não se tornarem bons.

Capítulo 24 – Página 96
Porque um príncipe
novo é muito mais observado em suas ações que um hereditário; e, quando tais
ações são consideradas virtuosas, conquistam muito mais os homens e os tornam
mais obedientes que o sangue herdado.
Quando se consideram os senhores que na Itália perderam seus domínios em
nossos tempos — como o rei de Nápoles, o duque de Milão e outros —, percebe
se que todos eles têm um defeito em comum, relativo aos exércitos, pelos
motivos já discutidos longamente; ademais, vê-se que alguns deles tinham a
inimizade do povo ou, se contavam com a amizade popular, não souberam
assegurar-se contra os poderosos.
reino.
Sendo assim, que esses nossos príncipes que perderam seus principados, à
frente dos quais estiveram tantos anos, não acusem a fortuna por isso, mas sua
própria ignávia, uma vez que, não tendo jamais pensado em fazer mudanças nos
tempos de paz — o que é um defeito comum entre os homens, não prever a
tempestade na bonança —, quando depois vieram tempos adversos, pensaram
apenas em fugir, e não em se defender, esperando que o povo, cansado da
insolência dos vencedores, os chamasse de volta. Na falta de alternativas, tal
procedimento é bom, mas é muito ruim abandonar os outros remédios por esse,
pois nunca se deve cair acreditando que haverá quem o levante mais tarde.

Capítulo 25 – Página 98
Entretanto, para que nosso livre-arbítrio não se anule,
penso que se pode afirmar que a fortuna decide sobre metade de nossas ações,
mas deixa a nosso governo a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses
rios devastadores que, quando se enfurecem, alagam as planícies, derrubam
árvores e construções, arrastam grandes torrões de terra de um lado para outro:
todos fogem diante dele, todos cedem a seu ímpeto sem poder contê-lo
minimamente
. E, como eles são feitos assim, só resta aos homens providenciar
barreiras e diques em tempos de calmaria, de modo que, quando vierem as
cheias, eles escoem por um canal ou provoquem menos estragos e destruições
com seu ímpeto. Algo semelhante ocorre com a fortuna, que demonstra toda sua
potência ali onde a virtude não lhe pôs anteparos; e para aí ela volta seus ímpetos,
onde sabe que não se construíram barreiras nem diques para detê-la
o príncipe que se apoia
inteiro na fortuna se arruína tão logo ela varia
Creio ainda que é feliz quem
emparelha seu modo de proceder com a qualidade dos tempos e, analogamente,
que seja infeliz quem age em desacordo com os tempos. Porque se vê que os
homens procedem diversamente nas coisas que os conduzem ao fim que cada
um almeja, isto é, glória e riquezas: um com prudência, outro, com ímpeto; um
com violência, outro, com astúcia; um com paciência, outro, com o seu contrário
— e cada um pode ter êxito por diversos meios. Vê-se ainda que, entre dois
homens prudentes, um alcança seu objetivo, e o outro, não; da mesma forma,
sucede que dois homens com atitudes diferentes obtenham o mesmo sucesso,

Página 99
sendo um deles prudente, e o outro, impetuoso — e isso resulta precisamente da
qualidade dos tempos, que se conforma ou não aos procedimentos humanos.
Disso
ainda depende a variação do bem; pois, se um príncipe se conduz com prudência
e paciência, e os tempos e as coisas giram de modo que seu governo seja bom,
ele terá sucesso, mas, se os tempos e as coisas mudam, ele se arruína, porque
não muda seu modo de proceder. Não se encontra homem tão prudente que saiba
acomodar-se a isso: seja porque não pode desviar-se daquilo a que a natureza o
impele, seja ainda porque, tendo sempre prosperado seguindo o mesmo
caminho, não pode convencer-se de que seja bom apartar-se dele. Por isso,
quando chega o tempo de tornar-se impetuoso, o homem prudente não o sabe
fazer e cai em desgraça; mas, se mudasse sua natureza de acordo com os tempos
e as coisas, não mudaria de fortuna.

Capítulo 26 – Página 101

assim, no presente, para se conhecer a virtude de um espírito italiano, era necessário que a Itália se reduzisse aos termos atuais, e que ela fosse mais escrava que os judeus, mais serva que os persas, mais dispersa que os atenienses: sem líder, sem ordem, derrotada, espoliada, dilacerada, varrida, tendo suportado toda sorte de ruína
De modo que, quase sem vida, a Itália agora espera quem poderia ser aquele que sane suas feridas e ponha fim aos saqueios da Lombardia, às depredações do reino de Nápoles e da Toscana, e a cure de suas chagas há muito tempo necrosadas. Vê-se como ela reza a Deus para que lhe mande alguém que a redima destas crueldades e insolências
bárbaras. Vê-se ainda que está toda pronta e disposta a seguir uma bandeira,
desde que haja alguém que a empunhe.

Página 103
Que não se deixe, pois, passar esta ocasião, a fim de que a Itália veja surgir
depois de tanto tempo seu redentor. Não posso exprimir com quanto amor ele
seria recebido em todas aquelas províncias que sofreram por estes aluviões
externos, com quanta sede de vingança, com quanta fé obstinada, com quanta
piedade, com quantas lágrimas. Que portas se fechariam diante dele? Que povos
lhe negariam obediência? Que inveja se lhe oporia? Que italiano lhe negaria o
obséquio? A todos cheira mal este bárbaro domínio. Que vossa ilustre Casa
assuma, pois, este empenho com o mesmo ânimo e a mesma esperança com
que se assumem as campanhas justas, de modo que, sob sua insígnia, esta pátria
seja nobilitada e, sob seus auspícios, se realizem aqueles versos de Petrarca,
quando ele disse:
Virtú contro a furoref
prenderà l’armi, e fia el combatter corto,prenderà l’armi, e f
che l’antico valorenelli italici cor non è ancor morto

Be the first to comment on "O Príncipe de Maquiavel – Capítulos XIX à XXVI"

Leave a comment