Hannah Arendt – A Condição Humana
Ubirajara T Schier
CAPÍTULO I – A CONDIÇÃO HUMANA
1. Vida Activa:
“Com a expressão vida activa pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. Trata-se três atividades de atividades fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra.” (ARENDT. pg.15)
“O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último.
O trabalho produz um mundo <<artificial>> de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.
A ação, única atividade que se exerce diretamente. entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.” (ARENDT. pg.15)
Condição Humana e a Política:
“Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sin qua non, mas a conditio per quam- de toda vida política.” (ARENDT. pg.15)
“A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.” (ARENDT. pg.16)
Condição Humana:
“A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato tona-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos.” (ARENDT. pg.17)
“Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo- o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana.” (ARENDT. pg.17)
Condição Humana x Natureza Humana:
“O problema da natureza humana, a quaestio mihi factus sum («a questão que me tomei para mim mesmo») de Agostinho, parece insolúvel, tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido filosófico geral. É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir a essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, venhamos a ser capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito: seria como pular sobre nossa própria sombra. Além disto, nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas as têm. Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um «quem» como se fosse um «quê».” (ARENDT. pg.17)
CAPÍTULO 2 – AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA
4. O Homem: Animal Social ou Político:
“Não que Aristóteles ou Platão ignorasse ou não desse importância ao fato de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens; simplesmente não incluíam tal condição entre as características especificamente humanas. Pelo contrário, ela era algo que a vida humana tinha em comum com a vida animal – razão suficiente para que não pudesse ser fundamentalmente humana. A companhia natural, meramente social, da espécie humana era vista como limitação imposta pelas necessidades da vida biológica, necessidades estas que são as mesmas para o animal humano e para outras formas de vida animal. Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, «além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion).e o que é comum (koinon)>>.” (ARENDT. pg.33)
5. A Polis e a Família:
“A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado; mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem pública no sentido restrito do termo, é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encontrou sua forma política no estado nacional. O que nos interessa neste contexto é a extraordinária dificuldade que, devido a esse fato novo, experimentamos em compreender a divisão decisiva entre as esferas pública e privada, entre a esfera da polis e a esfera da família, e finalmente entre as atividades pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes à manutenção da vida, divisão esta na qual se baseava todo o antigo pensamento político, que a via como axiomática e evidente por si mesma. Em nosso entendimento, a linha divisória é inteiramente difusa, porque vemos o corpo de povos e comunidades políticas como uma família cujos negócios diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca. O pensamento científico que corresponde a essa nova concepção já não é a ciência política, e sim a <<economia nacional>> ou a <<economia social» ou, ainda, a Volkswirtschaft, todas as quais indicam uma espécie de <<administração doméstica coletiva»; 1 ~ o que chamamos de <<sociedade>> é o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada <<nação>>.” (ARENDT. pg.37-38)
“A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer <<iguais>>, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava submissão. Assim, dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais. É verdade que esta igualdade na esfera política muito pouco tem em comum com o nosso conceito de igualdade; significava viver entre pares e lidar somente com eles, e pressupunha a existência de <<desiguais>>; e estes, de fato, eram sempre a maioria da população na cidade-estado. A igualdade, portanto, longe de ser relacionada com a justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade; ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de comandar, e mover-se numa esfera onde não existiam governo nem
governados.” (ARENDT. pg.41-42)
6. A Polis e a Sociedade:
“Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lardoméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a «normalizar>> os seus membros, a fazê-los «Comportarem-se>>, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada.” (pg.50)
“O surgimento da sociedade de massas, pelo contrário, indica apenas que os vários grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade única, tal como as unidades familiares haviam antes sido absorvidas por grupos sociais; com o surgimento da sociedade de massas a esfera do social atingiu finalmente, após séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla, igualmente e com igual força, todos os membros de determinada comunidade. Mas a sociedade equaliza em quaisquer circunstâncias, e a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença reduziram-se a questões privadas do indivíduo.” (ARENDT. pg.50-51)
6. A política e o conformismo social:
“Grandes números de indivíduos, agrupados numa multidão, desenvolvem uma inclinação quase irresistível na direção do despotismo, seja o despotismo pessoal ou o do governo da maioria; e embora a estatística, isto é, o tratamento matemático da realidade, fosse desconhecida antes da era moderna, os fenômenos sociais possibilitavam esse tratamento – grandes números justificando o conformismo, o behaviorismo e o automatismo nos negócios humanos eram precisamente o que, no entendimento dos gregos, distinguia da sua a civilização persa. A triste verdade acerca do behaviorismo e da validade de suas <<leis>> é que quanto mais pessoas existem, maior é a possibilidade de que se comportem e menor a possibilidade de que tolerem o não-comportamento. Estatisticamente, isto resulta num declínio da flutuação. Na realidade, os feitos perderão cada vez mais a sua capacidade de opor-se à maré do comportamento, .e os eventos perderão cada vez mais a sua importância, isto é, a sua capacidade de iluminar o tempo histórico. A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo, e sim o ideal político, já agora não mais secreto, de uma sociedade que, inteiramente submersa na rotina do cotidiano, aceita pacificamente a concepção científica inerente à sua própria existência.” (ARENDT. pg.53)
7. A Esfera Pública: o Comum
“O termo público significa dois fenômenos intimamente correlatos, mas não perfeitamente idênticos. Significa, em primeiro lugar. que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência- aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos- vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas. desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a se tornarem adequadas à aparição pública.” (ARENDT. pg.59)
“Em segundo lugar, o termo <<público» significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, nao é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum.” (ARENDT. pg.62)
“A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que toma tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las.” (ARENDT. pg.62)
“Historicamente, conhecemos somente um princípio concebido para manter unida uma comunidade de pessoas destituídas de interesse num mundo comum e que já não se sentiam relacionadas e separadas por ele. Encontrar um vínculo entre os homens, suficientemente forte para substituir o mundo, foi a principal tarefa política da antiga filosofia cristã; e foi Agostinho quem propôs edificar sobre a caridade não apenas a <<irmandade» crista, mas todas as relações humanas. Esta caridade. porém, muito embora a sua qualidade não-mundana corre~ponda claramente à experiência humana geral do amor, é ao mesmo tempo nitidamente diferente deste último por ser algo que, como o mundo, se interpõe entre os homens: <<Até mesmo os ladrões têm entre si (inter se) aquilo que chamam de caridade.” (ARENDT. pg.63)
8. A Esfera Privada e a Propriedade:
“Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação <<objetiva» com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse.” (ARENDT. pg.68)
“Nas circunstâncias modernas, essa privação de relações <<objetivas» com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos tornou-se o fenômeno de massa da solidão, no qual assumiu sua forma mais extrema e mais anti-humana, O motivo pelo qual esse fenômeno é tao extremo é que a sociedade de massas não apenas destrói a esfera pública e a esfera privada: priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo, mas também do seu lar privado, no qual antes eles se sentiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até mesmo os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família.” (ARENDT. pg.68)
“De origem inteiramente diferente e mais recente na história é a importância política da riqueza privada, na qual o indivíduo vai buscar os meios de sua subsistência.” (ARENDT. pg.74)
“O homem livre, que podia dispor de sua privatividade e não estava, como o escravo, à disposição de um amo, podia ainda ser «forçado>> pela pobreza. A pobreza força o homem livre a agir como escravo. A riqueza privada, portanto, tomou-se condição para admissão à vida pública não pelo fato do seu dono estar empenhado em acumulá-la, mas, ao contrário, porque garantia com razoável certeza que ele não teria que prover para si mesmo os meios do uso e do consumo, e estava livre para exercer a atividade política.” (ARENDT. pg.74)
“Obviamente, a vida pública somente era possível depois de atendidas as necessidades muito mais urgentes da própria existência. O meio de atendê-las era o labor e, portanto, a riqueza de uma pessoa era muitas vezes computada em termos do número de trabalhadores, isto é, de escravos·, que ela possuía. Nesse contexto, a posse de propriedades significava dominar as próprias necessidades vitais e, portanto, ser potencialmente uma pessoa livre, livre para transcender a sua própria existência e ingressar no mundo comum a todos.” (ARENDT. pg.75)
“Somente com o surgimento tangível e concreto desse mundo comum, isto é, com a ascendência da cidade-estado, pôde este tipo de propriedade privada adquirir sua eminente importância política; e é, portanto, natural que o famoso <<desdém por ocupações mesquinhas>> não seja ainda encontrado no mundo homérico. Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la ao invés de utilizá-la para viver uma vida política, era como se ele espontaneamente sacrificasse a sua liberdade e voluntariamente se tomasse aquilo que o escravo era contra a vontade, ou seja, um servo da necessidade.”(ARENDT. pg.75)
9. O Social e o Privado:
“O que chamamos anteriormente de ascensão do social coincidiu historicamente com a transformação da preocupação individual com a propriedade privada em preocupação pública. Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários que, ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza.” (ARENDT. pg.78)
“Quando se permitiu que essa riqueza comum, resultado de atividades anteriormente relegadas à privatividade do lar, conquistasse a esfera pública, as posses privadas passaram a minar a durabilidade do mundo. É verdade que a riqueza pode ser acumulada a tal ponto que nenhuma vida individual será capaz de consumi-la, de sorte que a família, e não o indivíduo, vem a ser sua proprietária. No entanto, a riqueza não deixa de ser algo destinado ao uso e ao consumo, não importa quantas vidas individuais ela possa suprir. Somente quando a riqueza se transformou em capital, cuja função única era gerar mais capital, é que a propriedade privada igualou ou emulou a permanência inerente ao mundo compartilhado por todos. Essa permanência, contudo, é de outra natureza: é a permanência de um processo e não a permanência de uma estrutura estável. Sem o processo de acumulação, a riqueza recairia imediatamente no processo oposto de desintegração através do uso e do consumo.” (ARENDT. pg.78-79)
“Pois a riqueza, depois que se tomou preocupação pública, adquiriu tais proporções que dificilmente poderia ser controlada pela posse privada. É como se a esfera pública se tenha vingado daqueles que tentaram utilizá-la em benefício de seus interesses privados. A ameaça mais séria, porém, não é a abolição da posse privada da riqueza, mas sim a abolição da propriedade privada no sentido de lugar tangível possuído na terra por uma pessoa. Para que compreendamos o perigo para a existência humana decorrente da eliminação da esfera privada, para a qual a intimidade não é substituto muito seguro, talvez seja melhor considerarmos aquelas feições não-privativas da privatividade anteriores à descoberta da intimidade e que desta independem. A diferença entre o que temos em comum e o que possuímos em particular é, em primeiro lugar, que as nossas posses particulares, que usamos e consumimos diariamente, são muito mais urgentemente necessárias que qualquer parte do mundo comum; sem a propriedade, como disse Locke, <<de nada nos vale o comum». A mesma necessidade que, do ponto de vista da esfera pública, exibe somente o seu aspecto negativo de privação de liberdade, possui uma força motriz cuja premência é inigualada pelos chamados desejos e aspirações superiores do homem; não apenas ela será sempre a primeira entre as necessidades e preocupações do homem, mas também evitará a apatia e a extinção da iniciativa que tão obviamente ameaçam todas as comunidades demasiado ricas.” (ARENDT. pg.80-81)
“A segunda importante feição não privativa da privatividade é que as quatro paredes da propriedade particular de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum – não só contra tudo o que nele ocorre mas também contra a sua pró- pria publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido. Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, toma-se, como diríamos, superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à tona a partir de um terreno mais sombrio, terreno este que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade num sentido muito real e não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a propriedade privada- um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder.” (ARENDT. pg.81)
10. A Localização das Atividades Humanas:
“Embora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição e a liberdade, entre a futilidade e a realização e, finalmente, entre a vergonha e a honra, não é de forma alguma verdadeiro que somente o necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado na esfera privada. O significa do mais elementar das duas esferas indica que há coisas que devem ser ocultadas c outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir alguma forma de existência. Se examinarmos essas coisas. independentemente de onde as encontramos em qualquer civilização. veremos que cada atividade humana converge para a sua localização adequada no mundo. Isto se aplica às principais atividades da vida activa: labor, trabalho e ação; mas existe um exemplo. reconhecidamente extremo, deste fenômeno cuja vantagem para a ilustração é que desempenhou papel considerável na teoria política.” (ARENDT. pg.83-84)
“A bondade num estilo absoluto, em contraposição à <<utilidade·· ou à <<excelência., na antiguidade greco-romana. tornou-se conhecida em nossa civilização somente com o advento do cristianismo. Desde então. sabemos que as boas obras são uma importante variedade entre as ações humanas possíveis. O notório antagonismo entre o cristianismo e a res puhlica é de modo geral o correto. visto como conseqüência de antigas expectativas escatológicas, cuja importância imediata somente se perdeu depois que a experiência demonstrou que nem mesmo a queda do Império Romano significava o fim do mundo.” (ARENDT. pg.84)
CAPÍTULO 3 – LABOR
“Em outras palavras, a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo contém, embora eivada de preconceito , a distinção mais fundamental entre trabalho e labor. 16 Realmente, é típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dele. (ARENDT. pg.98)
“Consideradas em sua mundanidade, são as coisas menos mundanas e ao mesmo tempo as mais naturais. Embora feitas pelo homem, vêm e vão, são produzidas e consumidas de acordo com o eterno movimento cíclico da natureza. Cíclico, também, é o movimento do organismo vivo, sem exclusão do corpo humano, enquanto ele pode suportar o processo que permeia o seu ser e o toma vivo. A vida é um processo que, em tudo, consome a durabilidade, desgasta-a, fá- la desaparecer, até que a matéria morta, resultado de pequenos processos vitais, singulares e cíclicos, retoma ao círculo global e gigantesco da própria natureza, onde não existe começo nem fim e onde todas as coisas naturais circulam em imutável, infindável repetição.” (ARENDT. pg.108)
Ao definir o trabalho como <<O metabolismo do homem com a natureza>>, em cujo processo <<O material da natureza (é) adaptado, por uma mudança de forma, às necessidades do homem>>, de sorte que <<o trabalho se incorpora ao sujeito>>, Marx deixou claro que estava <<falando fisiologicamente>>, e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica. Este ciclo é sustentado pelo consumo, e a atividade que provê os meios de consumo é o labor. “Tudo o que o labor produz destina-se a alimentar quase imediatamente o processo da vida humana, e este consumo, regenerando o processo vital, produz- ou antes, reproduz – nova <<força de trabalho>> de que o corpo necessita para seu posterior sustento. Do ponto de vista das exigências do próprio processo vital – a <<necessidade de subsistir>>, como o chamava Locke – o labor e o consumo seguem-se tão de perto que quase chegam a constituir um único movimento – movimento que, mal termina, deve começar novamente. A <<necessidade de subsistir» comanda tanto o labor quanto o consumo; e o labor, quando incorpora, <<reúne>> e <<mistura-se>> fisicamente às coisas fornecidas pela natureza, realiza ativamente aquilo que o corpo faz mais intimamente quando consome alimento. Ambos são processos devoradores que se apossam da matéria e a destroem: o <<trabalho>> realizado pelo labor em seu material·é apenas o preparo para a destruição final deste último. (ARENDT. pg.110-112)
O que a era moderna defendeu tão acirradamente jamais foi a propriedade como tal, mas a busca desenfreada de mais propriedade, ou seja, a apropriação; em contraposição a todos os órgãos que defendiam a permanência morta de um mundo comum, a era moderna travou suas batalhas em nome da vida, da vida da sociedade. (ARENDT. pg.122)
Dada a sua própria estabilidade mundana, a propriedade não reforça, mas diminui a desvinculação do processo do labor em relação ao mundo. Por isso mesmo, o caráter de processo do labor- a implacabilidade com que o labor é reclamado e induzido pelo próprio processo vital – desaparece com a aquisição de propriedade. Numa sociedade de proprietários, em contraposição a uma sociedade de operários ou de assalariados, é ainda o mundo, e não a abundância natural nem a mera necessidade da vida, que está no centro dos cuidados e preocupações humanos. A questão torna-se inteiramente diferente quando o principal interesse deixa de ser a propriedade e passa a ser o crescimento da riqueza e o processo de acumulação em si: este processo pode ser tão infinito quanto o processo vital da espécie; mas a sua infinitude é constantemente desafiada e interrompida pelo fato inconveniente de que os indivíduos não vivem para sempre nem dispõem de tempo infinito. Somente quando a vida da sociedade como um todo, ao invés da vida limitada dos indivíduos, é vista como o movei gigantesco do processo de acumulação, pode este processo seguir totalmente livre e à plena velocidade, isento dos limites impostos pela duração da vida individual e da propriedade individual. somente quando o homem deixa de agir como indivíduo que se interessa apenas por sua própria sobrevivência, e passa a ser um <<membro da espécie>>, ou “Gattungswesen”, como dizia Marx; somente quando a reprodução da vida individual é absorvida pelo processo vital da espécie humana, pode o processo vital coletivo de uma <<humanidade socializada» atender à sua própria «necessidade», isto é, seguir o seu curso automático de fertilidade, no duplo sentido da multiplicação de vidas e da crescente abundância de bens que elas exigem. (ARENDT. pg.128)
E verdade que o enorme aperfeiçoamento de nossos instrumentos de trabalho – os robôs mudos com os quais o “homo faber” acorreu em auxílio do “animal laborans”, em contraposição aos instrumentos humanos dotados de fala (o “instrumentum vocale”, como foi chamado o escravo doméstico dos antigos), aos quais o homem de ação tinha que subjugar e oprimir sempre que desejava libertar o “animal laborans” de sua servidão- tornou o duplo labor da vida, o esforço de sua manutenção e a dor de gerá-la, mais fácil e menos doloroso do que jamais foi antes. Isto, naturalmente. não eliminou a compulsão da atividade do labor, nem eliminou da vida humana a condição de sujeição à necessidade. Mas, ao contrário do que ocorria na sociedade de escravos, na qual a «maldição» da necessidade era uma realidade muito vívida porque a vida do escravo testemunhava diariamente o fato de que a <<Vida é escravidão>>, esta condição já não é hoje inteiramente manifesta; e, por não parecer tanto. torna-se muito mais difícil notá-la ou lembrá-la. O perigo aqui é óbvio. O homem que ignora ser sujeito à necessidade não pode ser livre, uma vez que sua liberdade é sempre conquistada mediante tentativas, nunca inteiramente bem sucedidas, de libertar-se da necessidade. E, embora possa ser verdade que o que mais fortemente o impele a buscar essa liberdade é sua «repugnância à futilidade>>, é também possível que o impulso enfraqueça à medida em que essa <<futilidade» parece mais fácil e passa a exigir menor c.,- forço. Pois ainda é provável que as enormes mudanças da revolução industrial, no passado, e as mudanças ainda maiores da revolução atômica no futuro sejam apenas mudanças do mundo. e não mudanças da condição básica da vida humana na Terra. As ferramentas e instrumentos que podem suavizar consideravelmente o esforço do labor não são, eles mesmos. produtos do labor, mas do trabalho; não pertencem ao processo do consumo: são parte integrante do mundo de objetos de uso. O papel que desempenham, por maior que seja para o labor de qualquer civiliza- ção, jamais pode atingir a importância fundamental que os instrumentos têm para todo tipo de trabalho. Nenhum trabalho pode ser produzido sem instrumentos: o aparecimento do “homo faber” e o surgimento de um mundo de coisas, feito pelo homem, são, na verdade, contemporâneos da descoberta de instrumentos e ferramentas. (ARENDT. pg.133-134)
Um dos óbvios sinais do perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o ideal do “animal laborans” é a medida em que toda a nossa economia já se tornou uma economia de desperdício, na qual todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico. Mas, se esse ideal já estivesse realizado e não passássemos realmente de membros de uma sociedade de consumidores, já não viveríamos mais num mundo, mas simplesmente seríamos impelidos por um processo em cujos ciclos perenemente repetidos as coisas surgem e desaparecem, manifestam-se e somem, sem jamais durar o tempo suficiente para conterem em seu meio o processo vital. (ARENDT. pg.147)
Se a natureza e a terra constituem, de modo geral, a condição da vida humana, então o mundo e as coisas do mundo constituem a condição na qual esta vida especificamente humana pode sentir-se à vontade na terra. Aos olhos do “animal laborans”, a natureza é a grande provedora de todas as <<boas coisas», que pertencem igualmente a todos os seus filhos, que <<(as) tomam de (suas) mãos>> e se «misturam com>> elas no labor e no consumo. Essa mesma natureza, aos olhos do “homo faber”, construtor do mundo, <<fornece apenas os materiais que, em si, são destituídos de valor>>, pois todo o seu valor reside no trabalho que é realizado sobre eles. Sem tomar as coisas das mãos da natureza e consumi-las, e sem se defender contra os processos naturais de crescimento e declínio. o “animal laborans” jamais poderia sobreviver. (ARENDT. pg.147)
CAPÍTULO 4 – TRABALHO
A Durabilidade no Mundo:
“O trabalho de nossas mãos, em contraposição ao labor do nosso corpo – o homo faber que faz e literalmente trabalha sobre» os materiais, em oposição ao animal lahorans que labora e <<Se mistura com>> eles – fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. Em sua maioria, mas não exclusivamente, essas coisas são objetos destinados ao uso, dotados da durabilidade de que Locke necessitava para o estabelecimento da propriedade, do <<Valor>> de que Adam Smith precisava para o mercado de trocas, e comprovam a produtividade que Marx acreditava ser o teste da natureza humana. Devidamente usadas, elas não desaparecem, e emprestam ao artifício humano a estabilidade e a solidez sem as quais não se poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal e instável que é o homem.” (ARENDT. g.149)
“A durabilidade do artifício humano não é absoluta; o uso que dele fazemos, embora não o consuma, o desgasta.” (ARENDT. pg.149)
“Além disto, embora o uso provavelmente desgaste os objetos, o desgaste não é o destino destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade.” (ARENDT. pg.150)
Reificação:
“O processo de <<fazer>> é inteiramente determinado pelas categorias de meios e fins. A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina com ela («o processo desaparece no produto>>, como dizia Marx), e de que é apenas um meio de produzir esse fim. É verdade que o labor também produz para o fim do consumo, mas como esse fim, a coisa a ser consumida, não tem a permanência mundana dos produtos do trabalho, o fim do processo não é determinado pelo produto final e sim pela exaustão do «labor power>>, enquanto que, por outro lado, os próprios produtos imediatamente voltam a ser meios de subsistência e reprodução do «labor power>>. No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, é acrescentado ao artifício humano. No tocante à coisa, ao produto final da fabricação, o processo não precisa repetir-se.” (ARENDT. pg.156)
“A característica da fabricação é ter um começo definido e um fim definido e previsível, e esta característica é bastante para distingui-la de todas as outras atividades humanas. O labor, preso à engrenagem do movimento cíclico do processo vital do corpo, não tem começo nem fim. E, como veremos adiante, a ação, embora tenha um começo definido, jamais tem um fim previsível.” (ARENDT. pg.156)
Os instrumentos e o Animal Laborans
Do ponto de vista do homo faber, inteiramente dependente dos instrumentos primordiais que são as suas mãos, o homem é, como disse Benjamim Franklin, um «fazedor de utensílios>>. Os mesmos instrumentos que apenas aliviam a carga e mecanizam o labor do animal laborans são projetados e inventados pelo homo faber para a construção de um mundo feito de coisas; a conveniência e a precisão desses instrumentos são ditadas pelos fins «objetivos>> que ele inventa a seu bel-prazer, e não por necessidades ou carências subjetivas. Instrumentos e ferramentas são objetos tão intensamente mundanos que chegam a servir de critérios para a classificação de civilizações inteiras. Mas esse caráter mundano nunca é tão evidente como quando eles são usados nos processos do labor, nos quais constituem realmente as únicas coisas tangíveis que sobrevivem ao labor e ao próprio processo de consumo. Portanto, para o animal laborans, sujeito aos processos devoradores da vida e constantemente ocupado com eles, a durabilidade e a estabilidade do mundo são basicamente representadas pelos instrumentos e ferramentas que utiliza; e, numa sociedade de operários, os instrumentos podem perfeitamente assumir caráter ou função mais que meramente instrumental. (ARENDT. pg.157)
O que preside o processo de labor e todos os processos de trabalho executados à maneira do labor não é o esforço intencional do homem nem o produto que ele possa desejar, mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos operários. Os utensílios do labor aderem a este ritmo até que o corpo e o instrumento passam a agitar-se no mesmo movimento repetitivo, isto é, até que, no uso das máquinas – que, entre todos os utensílios, melhor se adaptam à <<performance>> do animal laborans- já não é o movimento do corpo que determina o movimento do utensílio, mas sim o movimento da máquina que impõe os movimentos ao corpo. (ARENDT. pg.159)
Talvez o melhor exemplo da diferença fundamental entre ferramentas e máquinas seja a discussão, aparentemente infindável de se o homem deve <<ajustar-se>> à máquina ou se as máquina devem ajustar-se à <<natureza>> do homem. Nunca houve dúvida de que o homem se ajustava ou precisava de ajuste especial às ferramentas que utilizava, da mesma como uma pessoa se ajusta às próprias mãos. O caso das máquinas e inteiramente diferente. Ao contrário das ferramentas do artesanato, que em parte alguma do processo de trabalho deixam de ser servas da mão, as máquinas exigem que o operador as sirva, que ajuste o ritmo natural do seu corpo ao movimento mecânico que lhes é próprio. Certamente isto não implica que os homens, em tal caso, se ajustem ou se tornem servos de suas máquinas; mas significa que, enquanto dura o trabalho com as máquinas, o processo mecânico substitui o ritmo do corpo humano. Até mesmo a mais sofisticada ferramenta permanece como serva incapaz guiar ou substituir a mão; por outro lado, até mesmo a mais primitiva das máquinas guia o labor do nosso corpo até substituí-lo inteiramente. (ARENDT. pg.160)
Hoje, passamos a <<criar>>, por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós; e, ao invés de defender cuidadosamente o artifício humano contra as forças elementares da natureza, mantendo-as o mais possível à parte do mundo feito pelo homem, canalizamos essas forças, juntamente com o seu poder elementar, para o próprio mundo. (ARENDT. pg.161)
A premissa é que toda ferramenta e todo utensílio destina-se basicamente a tornar mais fácil a vida do homem e menos doloroso o labor humano. Sua qualidade de instrumento é concebida exclusivamente neste sentido antropocêntrico. Mas a qualidade de instrumento que possuem as ferramentas e os utensílios relacionam-se muito mais intimamente com o objeto que eles se destinam a produzir, e o seu mero <<Valor humano>> limita-se ao uso que deles faz o animal laborans. Em outras palavras, o homo faber, o fazedor de instrumentos, inventou os utensílios e ferramentas para construir um mundo, e não – pelo menos não originalmente – para servir ao processo vital humano. Assim, a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas, mas se estas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se, pelo contrário, elas e seus processos automáticos passaram a dominar e até mesmo a destruir o mundo e as coisas. (ARENDT. pg.164)
Os instrumentos e o Homo Faber
Os utensílios e instrumentos do homo faber, dos quais advém a experiência fundamental da noção de instrumentabilidade, determinam todo trabalho e toda fabricação. Sob este aspecto, é realmente verdadeiro que o fim justifica os meios; mais que isto, o fim produz e organiza os meios. O fim justifica a violência cometida contra a natureza para que se obtenha o material, tal como a madeira justifica matar a árvore e a mesa justifica destruir a madeira. É em atenção ao produto final que as ferramentas são projetadas e os utensílios são inventados, e é o produto final que organiza o próprio processo de trabalho, determina a necessidade de especialistas, a quantidade de cooperação, o número de auxiliares, etc. Durante o processo de trabalho, tudo é julgado em termos de adequação e serventia em relação ao fim desejado; e nada mais. (ARENDT. pg.166)
Dentro da categoria de meios e fins, e entre as experiências do conceito de instrumento que governa todo o mundo dos objetos ele uso e da utilidade, não há como pôr termo à cadeia de meios e fins e de evitar que todos os fins, mais cedo ou mais tarde, voltem a ser usados como meios, a não ser declarar que determinada coisa é <<um fim em si mesma». No mundo do homo faber, onde tudo deve ter seu uso, isto é, servir como instrumento para a obtenção de outra coisa, o próprio significado não pode parecer senão um fim, <<Um fim em si mesmo>> – e isto ou é uma tautologia aplicável a todos os fins ou uma proposição contraditória. Pois, assim que é atingido, todo fim deixa de ser um fim e perde sua capacidade de orientar e justificar a escolha de meios, de organizá-los e produzi-los. Passa a ser um objeto entre objetos, ou seja, é acrescentado ao enorme arsenal de coisas dadas do qual o homo faber seleciona livremente os meios de atingir seus fins. O significado, ao contrário, deve ser permanente e nada perder de seu caráter, seja ele alcançado ou, antes, encontrado pelo homem, ou fora do alcance do homem e inatingido por ele. O homo faber, por não passar de um fabricante de coisas e por pensar somente em termos dos meios e fins que decorrem diretamente de sua atividade de trabalho, é tão incapaz de compreender o significado como o animal laborans é incapaz de compreender o conceito de instrumento. E tal como os utensílios e instrumentos que o homo faber usa para construir o mundo tomam-se o próprio mundo para o animal laborans, também o significado deste mundo, que realmente está fora do alcance do homo faber, toma-se para ele um paradoxal <<fim em si mesmo». (ARENDT. pg.167-168)
Na medida em que é homo faber, o homem <<instrumentaliza>>; e este emprego das coisas como instrumentos implica em rebaixar todas as coisas à categoria de meios e acarreta a perda do seu valor intrínseco e independente; e chega um ponto em que não somente os objetos da fabricação, mas também <<a terra em geral e todas as forças da natureza>> – que evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo humano – perdem seu <<Valor por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho>>. (ARENDT. pg.169)
O que está em jogo não é, naturalmente, o conceito de instrumento em si, o emprego de meios para atingir um fim, mas antes a generalização da experiência da fabricação, na qual a utilidade e a serventia são estabelecidas como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens. Esta generalização é inerente à atividade do homo faber porque a experiência de meios e fins, tal como existe na fabricação, não desaparece com o produto acabado: prolonga-se até o destino final deste último, que é o de servir como objeto de uso. A <<instrumentalização» de todo o mundo e de toda a terra, esta ilimitada desvalorização de tudo o que é dado, este processo de crescente ausência de significado no qual todo fim se toma um meio e que só pode terminar quando se faz do próprio homem o amo e senhor de todas as coisas, não decorre diretamente do processo de fabricação; pois, do ponto de vista da fabricação, o produto acabado é um fim em si mesmo, uma entidade independente e durável, dotada de existência própria, tal como o homem é um fim em si mesmo na filosofia política de Kant. Somente na medida em que a fabricação se concentra em produzir objetos de uso é que o produto acabado novamente se toma um meio; e somente na medida em que o processo vital se apodera das coisas e as utiliza para seus fins é que a <<instrumentalidade>> da fabricação, limitada e produtiva, se transforma na <<instrumentalização» ilimitada de tudo o que existe. (ARENDT. pg.170)
A Permanência no Mundo e a Obra de Arte:
“Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade e que, ademais, por serem únicos, não são intercambiáveis, e portanto não são passíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se expostos no mercado de trocas, só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é <<Usá-la>>; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto do-, objetos de uso comuns para que possa galgar o seu lugar devido no mundo.” (ARENDT. pg.180)
“Dada a sua suma permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosivo dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas – uso que, na verdade, longe de materializar sua finalidade inerente (como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela), só pode destruí-la. Assim, a durabilidade das obras de arte é superior àquela de . Que todas as coisas precisam para existir; e, através do tempo, pode atingir a permanência. Nesta permanência, a estabilidade do artifício humano, que jamais pode ser absoluta por ser o mundo habitado e usado por mortais, adquire representação própria.” (ARENDT. pg.181)
“O mundo de coisas feito pelo homem, o artifício humano construído pelo homo faber, só se toma uma morada para os homens mortais, um lar cuja estabilidade suportará e sobreviverá ao movimento continuamente mutável de suas vidas e ações, na medida em que transcende a mera funcionalidade das coisas produzidas para o consumo e a mera utilidade dos objetos produzidos para o uso. A vida em seu sentido não-biológico, o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte do homem, manifesta-se na ação e no discurso, que têm em comum com a vida o fato de serem essencialmente fúteis. A <<realização de grandes feitos e o dizer de grandes palavras>> não deixarão qualquer vestígio, qualquer produto que possa perdurar depois que passa o momento da ação e da palavra falada. Se o animal laborans precisa do auxílio do homo faber para atenuar seu labor e minorar seu sofrimento, e se os mortais precisam do seu auxílio para construir um lar na terra, os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta capacidade, isto é, a ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto de sua atividade, a história que eles vivem e encenam não poderia sobreviver. Para que venha a ser aquilo que o mundo sempre se destinou a ser – uma morada para os homens durante sua vida na terra – o artifício humano deve ser um lugar adequado à ação e ao discurso, a atividades não só inteiramente inúteis às necessidades da vida, mas de natureza inteiramente diferente das várias atividades da fabricação mediante a qual são produzidos o mundo e todas as coisas que nela existem. Não é necessário que escolhamos aqui entre Platão e Protágoras, nem decidamos se o homem ou um deus deva ser a medida de todas as coisas; o que é certo é que a medida não precisa ser nem a compulsiva necessidade da vida biológica e do labor, nem o <<instrumentalismo>> utilitário da fabricação e do uso.”(ARENDT. pg.186-187)
CAPÍTULO 5 – AÇÃO
24. A Revelação do Agente no Discurso e na Ação ……….. 188
25. A Teia de Relações e as Histórias Humanas …………… 194
26. A Fragilidade dos Negócios Humanos …………………… 201
27. A Solução Grega …………………………………………….. 205
31. A Substituição da Ação pela Fabricação ………………… 232
24 – A Revelação do Agente no Discurso e na Ação
A condição básica da ação e do discurso é a pluralidade humana, que retrata ao mesmo tempo a igualdade necessária para a compreensão entre os homens, como também a diferença que existe entre cada ser humano como conteúdo a ser compreendido.
“A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender.” (ARENDT. pg.188)
A alteridade, como aspecto importante da pluralidade, é a capacidade do ser humano, que ao mesmo tempo tem em comum com tudo que existe, em exprimir e partilhar aquilo que ao mesmo tempo o diferencia do comum.
“Ser diferente não equivale a ser outro- ou seja, não equivale a possuir essa curiosa qualidade de «alteridade», comum a tudo o que existe e que, para a filosofia medieval, é uma das quatro características básicas e universais que transcendem todas as qualidades particulares. A alteridade é, sem dúvida, aspecto importante da pluralidade; é a razão pela qual todas as nossas definições são distinções e o motivo pelo qual não podemos dizer o que uma coisa é sem distingui-la de outra. Em sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos inorgânicos, ao passo que toda vida orgânica já exibe variações e diferenças, inclusive entre indivíduos da mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa- como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tomam-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares.“(ARENDT. pg.189)
É através do discurso e da ação que os homens deixam de permanecer apenas diferentes para poder distinguir suas singularidades.
“Essa distinção singular vem à tona no discurso e na ação. Através deles, os homens podem distinguir-se, ao invés de permanecerem apenas diferentes; a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens. Esta manifestação, em contraposição à mera existência corpórea, depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano.. Isto não ocorre com nenhuma outra atividade da vita activa. Os homens podem perfeitamente viver sem trabalhar, obrigando a outros a trabalhar para eles; e podem muito bem decidir simplesmente usar e fruir do mundo das coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil; a vida de um explorador ou senhor de escravos ou a vida de um parasita pode ser injusta, mas nem por isto deixa de ser humana. Por outro lado, a vida sem discurso e sem ação – único modo de vida em que há sincera renúncia de toda vaidade e aparência na acepção bíblica da palavra- está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens.” (ARENDT. pg.189)
A potencialidade da singularidade de cada ser humano, sua imprevisibilidade, já começam com o seu nascimento.
“É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. Assim, a origem da vida a partir da matéria inorgânica é o resultado infinitamente improvável de processos inorgânicos, como o é o surgimento da Terra, do ponto de vista dos· processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza. que antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais.” (ARENDT. pg.191)
É no discurso e na ação, portanto, que o homem revela e partilha suas singularidades.
“Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. Esta revelação de <<quem>>, em contraposição a <<O que>> alguém é- os dons, qualidades, talentos e defeitos que alguém pode exibir ou ocultar – está implícita em tudo o que se diz ou faz.” (ARENDT. pg.193)
O singular de cada ser humano só pode ser revelado quando na convivência com outros que, da mesma forma, estão dispostos a correr o risco de revelar-se aos demais pois sem esse risco, não existe revelação.
“Esta qualidade reveladora do discurso e da ação vem à tona quando as pessoas estão com outras, isto é, no simples gozo da convivência humana, e não <<pró>> ou <<contra>> as outras. Embora ninguém saiba que tipo de «quem>> revela ao se expor na ação e na palavra, é necessário que cada um esteja disposto a correr o risco da revelação; e nem o praticante de boas ações, que precisa ocultar sua individualidade e manter-se em completo anonimato, nem o criminoso, que precisa esconder-se dos outros, pode correr o risco de revelar-se. Ambos são indivíduos solitários; o primeiro é <<pró» e o segundo é <<Contra>> todos os homens; ficam, portanto, fora do âmbito do intercurso humano e são figuras politicamente marginais que, em geral, surgem no cenário histórico em épocas de corrupção, desintegração e decadência política. Dada a tendência intrínseca de revelar o agente juntamente com o ato, a ação requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora tinha o nome de glória e que só é possível na esfera pública.” (ARENDT. pg.193-194)
25 – A Teia de Relações e as Histórias Humanas
Nas relações humanas está intrínseca a incapacidade de nomearmos ou definirmos o outro em função de sua singularidade, diferente do que pode ser feito em relação aos outros objetos da natureza.
No momento em que desejamos dizer quem alguém é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que esse alguém é; enleamo-nos numa descrição de qualidades que a pessoa necessariamente partilha com outras que lhe são semelhantes; passamos a descrever um tipo ou <<personagem», na antiga acepção da palavra, e acabamos perdendo de vista o que ela tem de singular e específico.
Contudo, à parte esta perplexidade filosófica, a impossibilidade de solidificar em palavras, por assim dizer, a essência viva da pessoa, tal como se apresenta na fluidez da ação e do discurso, tem profundas consequências para toda a esfera dos negócios humanos, na qual existimos basicamente como seres que agem e falam. Exclui, em princípio, a possibilidade de jamais virmos a tratar esses negócios como tratamos coisas de cuja natureza podemos d1spor, v1sto que podemos nomeá-las.
A teia de relações humanas, de caráter intangível, se forma por meio da troca de interesses objetivos e mundanos que ocorrem entre as pessoas, mediados pelo discurso e ação.
A ação e o discurso ocorrem entre os homens, na medida em que a eles são dirigidos, e conservam sua capacidade de revelar o agente mesmo quando o seu conteúdo é exclusivamente objetivo, voltado para o mundo das coisas no qual os homens se movem, mundo este que se interpõe entre eles e do qual procedem seus interesses específicos, objetivos e mundanos. Estes interesses constituem, na acepção mais literal da palavra, algo que interessa, que está entre as pessoas e que, portanto, as relaciona e interliga. Quase sempre a ação e o discurso se referem a essa mediação, que varia de grupo para grupo, de sorte que a maior parte das palavras e atos, além de revelar o agente que fala e age, refere-se a alguma realidade mundana e objetiva. Como esta revelação do sujeito é parte integrante de todo intercurso, até mesmo do mais <<objetivo», a mediação física e mundana, juntamente com os seus interesses, é revestida e, por assim dizer, sobrelevada por outra mediação inteiramente diferente, constituída de atos e palavras, cuja origem se deve unicamente ao fato de que os homens agem e falam diretamente uns co111 os outros. Esta segunda mediação subjetiva não é tangível, pois não há objetos tangíveis em que se possa materializar: o processo de agir e falar não produz esse tipo de resultado. Mas, a despeito de toda a sua intangibilidade, esta mediação é tão real quanto o mundo das coisas que visivelmente temos em comum. Damos a esta realidade o nome de <<teia» de relações humanas, indicando pela metáfora sua qualidade, de certo modo intangível.
Mesmo através do discurso e da ação, cada homem é o sujeito que age e não autor que escreve sua história. Sua história é a marca da ação da expressão de sua singularidade deixada no mundo.
Embora todos comecem a vida inserindo-se no mundo humano através do discurso e da ação, ninguém é autor ou criador da história de sua própria vida. Em outras palavras, as histórias, resultado da ação e do discurso revelam um agente. mas o agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor.
A perplexidade é que em qualquer série de eventos que, no conjunto, compõem uma história com significado único, podemos quando muito isolar o agente que imprimiu movimento ao processo; e embora esse agente seja muitas vezes o sujeito, o <<herói» da história, nunca podemos apontá-lo inequivocamente como o autor do resultado final.
O herói revelado pela história não precisa ter qualidades heroicas; originalmente, isto é, em Homero, a palavra <<herói era apenas um modo de designar qualquer homem livre que houvesse participado da aventura troiana 10 e do qual se podia contar uma história. A conotação de coragem, que hoje reputamos qualidade indispensável a um herói, já está, de fato, presente na mera disposição de agir e falar, de inserir-se no mundo e começar uma história própria. E esta coragem não está necessariamente, nem principalmente, associada à disposição de arcar com as consequências; o próprio ato do homem que abandona seu esconderijo para mostrar quem é, para revelar e exibir sua individualidade, já denota coragem e até mesmo ousadia. Essa coragem original, sem a qual a ação, o discurso e, segundo os gregos, a liberdade seriam impossíveis, não é menor- pode até ser maior- quando o <<herói» é um covarde.
26 – A Fragilidade dos Negócios Humanos
A ações, mesmo embora sejam iniciadas ou concebidas por poucos, mas realizadas por muitos, jamais ocorrem no isolamento, tal como é possível na fabricação de um produto que usa componentes da natureza. Ainda que se possa identificar alguns que venham a ter “concebido” algo, o objeto de realização é compartilhado entre estes e os que o concretizaram, resultado das ações entre ambos.
Ao contrário da fabricação, a ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A ação e o discurso necessitam tanto da circunvizinhança de outros quanto a fabricação necessita da circunvizinhança da natureza, da qual obtém matéria-prima, e do mundo, onde coloca o produto acabado. A fabricação é circundada pelo mundo e está em permanente contato com ele; a ação e o discurso são ,circundados pela teia de atos e palavras de outros homens, e estão em permanente contato com ela.
É como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos aderem para “conduzir”. ,, acabar, levar a cabo o empreendimento. […] Desse modo, o papel do iniciador e líder, que era um primus inter pares (no caso de Homero, um rei entre reis), passou a ser o papel do governante; a interdependência original da ação- a dependência do iniciador e líder em relação aos outros no tocante a auxílio, e a dependência de seus seguidores em relação a ele no tocante a uma oportunidade de agir – dividiu-se em duas funções completamente diferentes: a função de ordenar, que passou a ser prerrogativa do governante, e a função de executar, que passou a ser o dever dos súditos.
Contudo, a força do iniciador e líder reside apenas em sua iniciativa e nos riscos que assume, não na realização em si. No caso do governante bem sucedido, ele pode reivindicar para si aquilo que, na verdade, é a realização de muitos – coisa que jamais teria sido permitida a Agamémnon, que era rei mas não governante.
Além disso, seja qual for o seu conteúdo específico, a ação sempre estabelece relações, e tem portanto a tendência inerente de violar todos os limites e transpor todas as fronteiras 17 • Os limites e fronteiras que existem na esfera dos negócios humanos jamais chegam a constituir estrutura capaz de resistir com segurança ao impacto com que cada nova geração vem ao mundo.
A história consiste portanto no resultado das ações dos homens percebidas não pelo homem-sujeito da história, mas sim do narrador que, ao final, ao observar aquilo que se construiu, mensura aquilo que os homens alcançaram por meio do compartilhamento de suas singularidades.
Contudo, embora as várias limitações e fronteiras que encontramos em todo corpo político possam oferecer certa proteção contra a tendência, inerente à ação, de violar todos os limites, são totalmente impotentes para neutralizar lhe a segunda característica relevante: sua inerente imprevisibilidade. Não se trata apenas da mera impossibilidade de se prever todas as consequências lógicas de determinado ato, pois se assim fosse um computador eletrônico poderia prever o futuro; a imprevisibilidade decorre diretamente da história que, como resultado da ação, se inicia e se estabelece assim que passa o instante fugaz do ato. O problema é que, seja qual for a natureza e o conteúdo da história subsequente – quer transcorra na vida pública ou na vida privada, quer envolva muitos ou poucos atores – seu pleno significado somente se revela quando ela termina. Ao contrário da fabricação, em que a luz à qual se julga o produto final provém da imagem ou modelo percebido de antemão pelo artífice, a luz que ilumina os processos da ação e, portanto, todos os processos históricos só aparece quando eles terminam – muitas vezes quando todos os participantes já estão mortos. A ação só se revela plenamente para o narrador da história, ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sem pre sabe melhor o que aconteceu do que os próprios participantes. […] Aquilo que o contador de histórias pretende narrar deve necessariamente permanecer oculto para o ator, pelo menos enquanto este último estiver empenhado no ato ou em suas consequências, pois, para o ator, o sentido do ato não está na história que dele decorre. Muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e <<faz» a história.
27 – A Solução Grega
Foi para possibilitar a livre expressão da singularidade de cada ser humano que os gregos criaram a “polis”. A polis era um local aberto e de acesso onde era dada a oportunidade para que cada pessoa se expressasse sua singularidade, distinguindo-o das dos demais presentes.
Há íntima relação entre imprevisibilidade do resultado e o caráter revelador da ação e do discurso: o agente se revela sem que se conheça a si mesmo ou saiba de antemão <<quem>> revela. O velho ditado de que ninguém pode considerar-se cudainwn antes de morrer talvez nos ajude a identificar o problema, se pudermos recuperar seu significado original após dois mil e quinhentos anos de inveterada repetição;
Porque eudaitnonia não significa felicidade nem beatitude; é intraduzível e talvez até inexplicável. Tem a conotação de bem-aventurança, mas não no sentido religioso; significa, literalmente, algo como o bem-estar do dainwn que segue o homem durante toda a sua vida e que é a sua identidade inconfundível, mas que só transparece e é visível para os outros.18 Portanto, ao contrário da felicidade, que é um passageiro estado de ânimo, e da boa sorte, que pode visitar-nos em certos períodos da vida e ausentar-se em outros, a eudui111onlu. como a própria vida, é condição duradoura: não pode ser mudada nem é capaz de produzir mudanças.
Embora essa identidade inalterável da pessoa se revele de modo intangível na ação e no discurso, só se toma tangível na história do indivíduo que age e fala; como história, porém, só pode ser conhecida, isto é, percebida como entidade palpável, depois que chega ao fim. Em outras palavras, a essência humana – não a natureza humana em geral (que não existe), nem a soma total de qualidades e imperfeições do indivíduo, mas a essência de. quem ele é – só passa a existir depois que a vida se acaba, de1xando atrás de si nada mais que uma história. Assim, quem pretenda conscientemente ser <<essencial», deixar após si uma história e uma identidade merecedoras de <<fama imortal», deve não só arriscar a vida, mas também optar expressamente, como o fez Aquiles, por uma vida curta e uma morte prematura. Só o homem que não sobrevive ao seu ato supremo é senhor inconteste de sua identidade e possível grandeza, porque se retira, na morte, das possíveis consequências e da continuação do que iniciou. O que dá à história de Aquiles sua importância como paradigma é que ela mostra, em breves palavras, que o preço da eudui111oniu é a própria vida; que ela só pode ser garantida quando renunciamos à continuidade da existência ao longo da qual nos revelamos aos poucos, quando condensamos toda a existência num único feito, de sorte que a história do ato termina ao mesmo tempo que a vida.
Antes que os homens começassem a agir, era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual se pudessem exercer todas as ações subsequentes; o espaço era a esfera pública da polis e a estrutura era a sua lei; legislador e arquiteto pertenciam à mesma categoria. Mas essas entidades tangíveis não eram, em si, o conteúdo da política (a polis não era Atenas, e sim os atenienses), nem inspiravam a mesma lealdade que vemos no patriotismo romano.
A solução grega original e pré-filosófica desta fragilidade havia sido a fundação da polis. Por ter resultado e mantido suas raízes dentro da experiência e do julgamento daquilo que toma útil aos homens viver juntos (syzen)- ou seja, «a comparticipação de atos e palavras» ~6 – a polis tinha dupla função. Em primeiro lugar, destinava-se a permitir que os homens fizessem permanentemente, ainda que com certas restrições, aquilo que, de outra forma, era possível somente como empreendimento infrequente e extraordinário, para o qual tinham que deixar o lar. A polis deveria multiplicar-lhes as oportunidades de conquistar «fama imortal», ou seja, multiplicar para cada homem as possibilidades de distinguir-se, de revelar em atos e palavras sua identidade singular e distinta. Uma das razões, senão a principal, do incrível desenvolvimento do talento e do gênio em Atenas, bem como do rápido e não menos surpreendente declínio da cidade-estado, foi precisamente que, do começo ao fim, o principal objetivo da polis era fazer do extraordinário uma ocorrência comum e cotidiana. A segunda função da polis. também estreitamente relacionada com os riscos da ação tal como experimentada antes que a pulis passasse a existir, era remediar a futilidade da ação e do discurso; pois não era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse realmente lembrado e «imortalizado».
31. A Substituição da Ação pela Fabricação:
O conceito de Fabricação do homo faber introduzido na Idade Moderna se tornou incompatível com os efeitos da Ação: Imprevisibilidade, Irreversibilidade e Anonimato. Essa incompatibilidade sempre existiu desde os primórdios da história, quando então, o homem sempre buscou por meio da política, meios seguros de se governar. Entretanto, o que antes estava resolvido apenas na esfera política – visto que os meios de produção eram essencialmente artesanais – precisava ser resolvido também na esfera dos negócios humanos em que os meios produtivos em larga escala não concebiam os efeitos da pluralidade. Dessa forma, ao mesmo tempo que “normatizava” as ações humanas, tornando-as previsíveis, reversíveis e responsabilizáveis, necessitava também eliminar a pluralidade e com isso o conceito de Ação dentro da esfera dos negócios.
Preocupada desde cedo com produtos tangíveis e lucros demonstráveis, e mais tarde obcecada com a regularidade de funcionamento e com a sociabilidade, a idade moderna não foi a primeira a denunciar a ociosidade e a inutilidade da ação e do discurso, em particular, e da política em geral”. O exaspero ante o triplo malogro da ação- a imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores – é quase tão antigo quanto a história escrita. Tanto os homens de ação quanto os pensadores sempre foram tentados a procurar um substituto para a ação, na esperança de libertar a esfera dos negócios humanos da acidentalidade e da irresponsabilidade moral inerente à pluralidade dos agentes. (ARENDT. pg.232)
A substituição da ação pela fabricação e a concomitante degradação da política como meio de atingir um fim supostamente superior – na antiguidade, a proteção dos bons contra o domínio dos maus, em geral e a segurança dos filósofos. em particular; na Idade Média, a salvação das almas; e, na era moderna, a produtividade e o progresso da sociedade – são tão antigas quanto a tradição da filosofia política. É verdade que somente a era moderna definiu o homem como, basicamente, homo faber, um produtor de coisas e ferramentas, e pôde assim vencer o profundo desprezo e a suspeita com que a tradição via toda a esfera da fabricação. No entanto, essa mesma tradição, na medida em que também se voltara contra a ação – de modo menos aberto, é claro, mas não menos positivo -, fora obrigada a interpretar a ação em termos de fabricação, e assim, apesar de sua suspeita e do seu desprezo, introduzira na filosofia política certas tendências e linhas de pensamento aos quais a era moderna pôde recorrer. Neste particular, a era moderna não inverteu a tradição: apenas libertou-a dos preconceitos que a haviam impedido de declarar abertamente que o trabalho do artesão devia ser hierarquicamente superior às ociosas ações e opiniões que constituem a esfera dos negócios humanos. (ARENDT. pg.241-242)
CAPÍTULO 6 – A VIDA ACTIVA E A ERA MODERNA
32. A Ação como Processo
Analogamente, a tentativa de suprimir a ação, em virtude de sua incerteza. e de isentar de sua fragilidade os negócios humanos, tratando-os como se fossem ou pudessem vir a ser produtos planejados da fabricação humana, resultou, em primeiro lugar, na canalização da capacidade humana de agir, de iniciar novos processos espontâneos – que jamais existiriam sem os homens – para uma atitude em relação à natureza que, até o último estágio da era moderna, se limitara a explorar as leis naturais e a fabricar objetos a partir de materiais naturais. O comentário recente e acidental de um cientista – que declarou, muito sério, que «pesquisa básica é quando não sei o que estou fazendo – é talvez o melhor exemplo da medida em que passamos a dirigir nossas ações fiara dentro do reino da natureza.
O próprio fato de que as ciências naturais tenham se tomado exclusivamente ciências de processos e, em seu último estágio, ciências de «processos sem retorno>>, potencialmente irreversíveis e irremediáveis. indica claramente que, seja qual for o poder mental necessário para desencadeá-los, a capacidade humana responsável por esse poder mental – e única força capaz de realizar tais feitos- não é nenhuma capacidade «teórica», não é contemplação nem razão; é a faculdade humana de agir, de iniciar processos novos e sem precedentes, cujo resultado é incerto e imprevisível, quer sejam desencadeados na esfera humana ou no reino da natureza. nesta fase da ação- extremamente importante para a era moderna, para a enorme expansão das faculdades humanas e para o conceito e a consciência da história que nenhuma outra era teve antes dela- desencadeiam-se processos de resultado imprevisível, de sorte que a incerteza, e não a fragilidade, passa a ser a principal característica dos negócios humanos. (ARENDT. pg.243)
Em outras palavras, em nenhum outro campo- nem no labor, sujeito às necessidades da vida. nem na fabricação, dependente das matérias-primas que lhe são dadas – o homem parece ter menos liberdade que no gozo daquelas capacidades cuja essência é precisamente a liberdade. e naquela esfera que deve sua existência única e exclusivamente ao homem. Esta maneira de pensar ajusta-se à grande tradição do pen’>amento ocidental: ·acusar a liberdade de induzir o homem à necessidade; condenar a ação, o começo espontâneo de algo novo. porque seus resultados incidem sobre uma rede predeterminada de relações, arrastando invariavelmente o agente, que parece perder sua liberdade no exato momento em que lança mão dela. A única salvação contra este tipo de liberdade parece ser a inação. a abstenção de toda a esfera dos negócios humanos como meio de salvaguardar a soberania e a integridade do homem.
[…]
Se deixarmos de lado as desastrosas consequências de tais recomendações (que somente no estoicismo vieram a constituir um sistema coerente de comportamento humano), o seu erro básico parece residir na identificação da soberania com a liberdade, identificação esta que sempre foi aceita como natural. tanto pelo pensamento político como pelo pensamento filosófico. Se a soberania e a liberdade fossem a mesma coisa, nenhum homem poderia ser livre; pois a soberania, o ideal da inflexível autossuficiência e autodomínio. contradiz a própria condição humana da pluralidade. Nenhum homem pode ser soberano porque a Terra não é habitada por um homem, mas pelos homens.
33. A Irreversibilidade e o Poder de Perdoar
O caso da ação e de suas dificuldades é bem diferente. O recurso contra a irreversibilidade e a imprevisibilidade do processo que ela desencadeia não provém de outra faculdade possivelmente superior, mas é uma das potencialidades da própria ação. A única solução possível para o problema da irreversibilidade – a impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia- é a faculdade de perdoar. (ARENDT. pg.248)
Somente através dessa mútua e constante desobrigação do que fazem. os homens podem ser agentes livres; somente com a constante disposição de mudar de ideia e recomeçar. podes-lhes confíar tão grande poder quanto o de consistir em algo novo. (ARENDT. pg.252)
Ao contrário da vingança, que é a reação natural e automática à transgressão e que. dada a irreversibilidade do processo da ação, pode ser esperada e até calculada, o ato de perdoar jamais pode ser previsto; é a única reação que atua de modo inesperado e, embora seja reação, conserva algo do caráter origir.al da ação. Em outras palavras. o perdão é a única reação que não reage apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionada pelo ato que a provocou c de cujas consequências liberta tanto o que perdoa quanto o que é perdoado. A desobrigação mencionada nos ensinamentos de Jesus sobre o perdão é a libertação dos grilhões da vingança. uma vez que esta prende executor e vítima no inexorável automatismo do processo da ação que. por si. jamais chega necessariamente a um fim. (ARENDT. pg.253)
A punição é a alternativa do perdão. mas de modo algum seu oposto; ambos têm em comum o fato de que tentam pôr fim a algo que, sem a sua interferência. poderia prosseguir indefinidamente. E, portanto, significativo – elemento estrutural na esfera dos negócios humanos – que os homens não possam perdoar aquilo que não podem punir, nem punir o que é imperdoável. (ARENDT. pg.253)
34. A Imprevisibilidade e o Poder de Prometer
A solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir promessas. As duas faculdades são aparentadas, pois a primeira delas – perdoar – serve para desfazer os atos do passado, cujos «pecados» pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração; a segunda – obrigar-se através de promessas – serve para criar. no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, certas ilhas de segurança, sem as quais não haveria continuidade, e menos ainda durabilidade de qualquer espécie, nas relações entre os homens. (ARENDT. pg.249)
A imprevisibilidade, eliminada, pelo menos parcialmente, pelo ato de prometer. tem dupla origem: decorre ao mesmo tempo da <<treva do coração humano», ou seja, da inconfiabilidade fundamental dos homens, que jamais podem garantir hoje quem serão amanhã, e da impossibilidade de se prever as consequências de um ato numa comunidade de iguais, onde todos têm a mesma capacidade de agir. O fato de que o homem não pode contar consigo mesmo nem ter fé absoluta em si próprio (e as duas coisas são uma so) e o preço que os seres humanos pagam pela liberdade; e a impossibilidade de permanecerem como senhores únicos do que fazem, de conhecerem as consequências de seus atos e de confiarem no futuro é o preço que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de conviverem com outros num mundo cuja realidade é assegurada a cada um pela presença de todos. (ARENDT. pg.256)
35.A Alienação no Mundo:
“No limiar da era moderna há três grandes eventos que lhe determinaram o caráter: a descoberta da américa e subsequente exploração de toda a Terra; a Reforma que, expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo processo de expropriação individual e acumulo de riqueza social, e a invenção do telescópio. ensejando o desenvolvimento de_ uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo.” (ARENDT. pg.260)
“É verdade que nada poderia ter sido mais alheio ao propósito dos exploradores e circunavegadores do início da era moderna que este processo de avizinhamento; eles se fizeram ao mar para ampliar a Terra., não para reduzi-la a uma bola; e, quando atenderam ao chamado de terras distantes, não tinham intenção alguma de abolir a distância. Só agora, com o nosso conhecimento retrospectivo, podemos ver o óbvio: nada que possa ser medido pode permanecer imenso; toda medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde antes havia distância. Os mapas e as cartas de navegação das primeiras etapas da era moderna anteciparam-se às invenções técnicas mediante as quais todo o espaço terrestre se tomou pequeno e próximo.” (ARENDT. pg.262)
“Há um outro aspecto desta questão que, como veremos adiante, é de importância ainda maior em nosso contexto. É próprio da natureza da capacidade humana de observação só poder funcionar quando o homem se desvencilha de qualquer envolvimento e preocupação com o que está perto de si, e se retira a uma distância de tudo o que o rodeia. Quanto maior a distância entre o homem e o seu ambiente, o mundo ou a terra, mais ele pode observar e medir, e menos espaço mundano e terreno lhe restará. O fato de que o apequenamento definitivo da Terra foi consequência da invenção do aeroplano, isto é, de ter o homem deixado inteiramente a superfície da Terra, como que simboliza o fenômeno geral de que qualquer diminuição de distâncias terrestres só pode ser conquistada ao preço de colocar-se uma distância definitiva entre o homem e a Terra, de aliená-lo do seu ambiente imediato e terreno.” (ARENDT. pg.263)
“Na Alemanha, a destruição pura e simples substituiu o inexorável processo de depreciação de todas as coisas mundanas, processo este que caracteriza a economia de desperdício na qual vivemos. O resultado foi quase o mesmo: um rápido surto de prosperidade que, como demonstra a Alemanha do pós-guerra, se alimenta não da abundância de bens materiais ou de qualquer outra coisa estável e dada, mas do próprio processo de produção e consumo. Nas condições modernas, a bancarrota decorre não da destruição, mas da conservação, porque a própria durabilidade dos objetos conservados é o maior obstáculo ao processo de reposição, cuja velocidade em constante crescimento é a única coisa constante que resta onde se estabelece esse processo.J Já vimos que a propriedade, em contraposição à riqueza e à apropriação, refere-se a uma parte do mundo comum que tem um dono privado e é, portanto, a mais elementar condição política para a mundanidade do homem. Pelo mesmo motivo, a expropriação e a alienação do homem em relação ao mundo coincidem; e a era moderna, muito contra as intenções de todos os atores da peça, começou por alienar do mundo certas camadas da população.” (ARENDT. g.264-265)
“Uma das mais persistentes tendências da filosofia moderna desde Descartes, e talvez a mais original contribuição moderna à filosofia, tem sido uma preocupação exclusiva com o ego, em oposição à alma ou à pessoa ou ao homem em geral, uma tentativa de reduzir todas as experiências, com o mundo e com outros seres humanos, a experiências entre o homem e si mesmo.” (ARENDT. pg.266)
“Em outras palavras, a liberação da força de trabalho como processo natural não se restringiu a certas classes da sociedade, e a apropriação não terminou com a satisfação das necessidades e desejos; o acúmulo de capital, portanto, não levou à estagnação que se vê tão claramente em ricos impérios que precederam a era moderna, mas infiltrou-se por toda a sociedade e deu início a um fluxo constantemente crescente de riqueza. Mas este processo, que é realmente o <<processo vital da sociedade>>, como o chamava Marx, e cuja capacidade de produzir riqueza só pode ser comparada à fertilidade dos processos naturais – nos quais a criação de um homem e de uma mulher seria suficiente para produzir, pela multiplicação, qualquer número de seres humanos-, permanece ligado ao princípio de alienação do mundo do qual resultou; o processo só pode continuar se a durabilidade mundana e a estabilidade não interferirem, e se todas as coisas mundanas, todos os produtos finais do processo de produção o realimentem a uma velocidade cada vez maior. Em outras palavras, o processo de acúmulo de riqueza, tal como o conhecemos, estimulado pelo processo vital e, por sua vez, estimulando a vida humana, é possível somente se o mundo e a própria mundanidade do homem forem sacrificados. “(ARENDT. pg.268)
“Mas, o que quer que o futuro nos reserve, o processo de alienação do mundo, desencadeado pela expropriação e caracterizado por um crescimento cada vez maior da riqueza, pode assumir proporções ainda mais radicais somente se lhe for permitido seguir a lei que lhe é inerente. Pois os homens não podem ser cidadãos do mundo como são cidadãos dos seus países, e homens sociais não podem ser donos coletivos como os homens que têm um lar e uma família são donos de sua propriedade privada. A ascensão da sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas pública e privada; mas o eclipse de um mundo público comum, fator tão crucial para a formação da massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massas, começou com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo.” (ARENDT. pg.269)
36. A Descoberta do Ponto de Vista Arquimediano:
“No reino das idéias, existem apenas a originalidade e a profundidade, que são qualidades pessoais, mas nenhuma novidade absoluta ou objetiva; as idéias vêm e vão, duram algum tempo, podem até alcançar certa imortalidade própria, dependendo do seu poder de iluminar e esclarecer, que vive e perdura independentemente do tempo e da história. Além do mais, em contraposição aos eventos, as idéias nunca são inéditas; e as especulações, não confirmadas pela experiência, quanto ao movimento da Terra em torno do Sol não eram mais inéditas que o seriam as teorias contemporâneas do átomo se não tivessem base em experiências ou conseqüências no mundo fatual. O que Galileu fez e que ninguém havia feito antes foi usar o telescópio de tal modo que os segredos do universo foram revelados à cognição humana <<com a certeza da percepção sensorial>>; 11 isto é, colocou diante da criatura presa à Terra e dos sentidos presos ao corpo aquilo que parecia destinado a ficar para sempre fora do seu alcance e, na melhor das hipóteses, aberto às incertezas da especulação e da imaginação.” (ARENDT. pg.271)
“Galileu estabeleceu um fato demonstrável onde antes havia somente especulações inspiradas. A imediata reação filosófica a esta realidade não foi a exultação, e sim a dúvida cartesiana que fundou a filosofia moderna essa «escola de suspeita>>, como Nietzsche à chamou certa vez- e que levou à convicção de que, <<de agora em diante, a morada da alma só pode ser construída com firmeza na sólida fundação do mais completo desespero. Durante muitos séculos as conseqüências deste evento. como as conseqüências da Natividade, permaneceram contraditórias e inconclusivas; e ainda hoje o conflito entre o evento em si e suas conseqüências está longe de ser resolvido.”(ARENDT. pg.273)
“A moderna concepção astrofísica do mundo, que teve início com Galileu, e a dúvida que lançou quanto à capacidade dos sentidos de perceberem a realidade, deixou-nos um universo de cujas qualidades conhecemos apenas o modo como afetam nossos instrumentos de medição; e, nas palavras de Eddington. «as primeiras se assemelham ao segundo tanto quanto um número de telefone se assemelha ao assinante. Em outras palavras. ao invés de qualidades objetivas. encontramos instrumentos e, ao invés da natureza do universo. o homem – nas palavras de Heinsenberg – encontra-se apenas a si mesmo. Em nosso contexto, o que importa é que tanto o desespero quanto o triunfo são inerentes ao mesmo evento. Se colocarmos estes fatos em sua devida perspectiva histórica. é como se a descoberta de Galileu comprovasse cabalmente que tanto o pior temor quanto a mais presunçosa esperança da especulação humana só podiam realizar-se ao mesmo tempo, como se o desejo só pudesse ser satisfeito se a realidade nos fugisse, e o temor só se consumasse quando compensado pela aquisição de poderes supramundanos. Pois, o que quer que façamos hoje na física.” (ARENDT. pg.274)
“Se hoje os cientistas nos dizem que podemos presumir com igual validade que a Terra gira em torno do Sol ou que o Sol gira em torno da Terra, que ambos os pressupostos se aplicam a fenômenos observados, e que a diferença está apenas na escolha do ponto de referência, isto não significa de modo algum um retorno à posição do Cardeal Bellarmine ou de Copérnico, na qual os astrônomos lidavam com meras hipóteses. Antes, significa que transferimos o ponto de vista arquimediano um pouco mais além da Terra, para um ponto do universo onde nem a Terra nem o Sol é o centro de um sistema universal. Significa que já não nos sentimos nem mesmo presos ao Sol, que nos movemos livremente no universo, escolhendo o nosso ponto de referência onde quer que nos convenha para fins específicos. No que diz respeito às realizações práticas da ciência moderna, esta mudança do antigo sistema heliocêntrico para um sistema sem centro fixo é, sem dúvida, tão importante quanto a mudança original do conceito de um mundo geocêntrico para o de um mundo heliocêntrico. Só agora afirmamo-nos como seres «Universais», como criaturas terrestres não por natureza e essência. mas apenas pela condição de estarem vivas e que, portanto, através do raciocínio, podem superar essa condição, não na simples especulação, mas de fato.” (ARENDT. g.275)
37. Ciência Universal vs. Ciência Natural:
“No entanto, essa ideia perde o seu caráter de blasfêmia assim que compreendemos aquilo que Arquimedes compreendeu tão bem, muito embora não soubesse como galgar aquele seu ponto fora da Terra – isto é, que, não importa como expliquemos a evolução da Terra, da natureza e do homem, eles devem ter sido criados por alguma força transmundana e universal, cujo trabalho deve ser compreensível imitá-lo; alguém que possa ocupar o mesmo lugar. Em última análise, e somente essa suposta localização no universo, fora do nosso planeta, que nos possibilita produzir processos que não ocorrem na Terra e não desempenham papel algum na matéria estável mas que são cruciais para a criação da matéria.” (ARENDT. pg.282)
“Seria realmente insensato ignorar a coincidência, quase demasiado precisa, da alienação do homem moderno com o subjetivismo da filosofia moderna, de Descartes e Hobbes até o sensualismo, o empirismo e o pragmatismo dos ingleses, o idealismo e o positivismo dos alemães, o recente existencialismo fenomenológico e o positivismo lógico e epistemológico. Mas seria igualmente insensato acreditar que o motivo pelo qual o filósofo desviou sua atenção das antigas questões metafísicas e voltou-se para uma variedade de introspecções – a introspecção da direção do aparelho sensorial e cognitivo, da consciência e dos processos lógicos e psicológicos tenha sido o impulso resultante de um desenvolvimento autônomo de idéias; ou, numa variação da mesma abordagem, acreditar que o nosso mundo teria sido diferente se ao menos a filosofia se houvesse aferrado à tradição. Como dissemos acima, não são idéias, mas eventos que mudam o mundo: o sistema heliocêntrico, como ideia, é tão velho quanto a especulação pitagórica e tão persistente em nossa história quanto as tradições neoplatônicas, e nem por isso jamais mudou o mundo ou a mente humana. O autor do evento crucial da era moderna foi Galileu, e não Descartes. O próprio Descartes estava consciente deste fato; e, ao saber do julgamento de Galileu e de sua retratação, foi momentaneamente tentado a queimar todos os seus papéis porque, <<se o movimento da Terra é falso, todos os fundamentos de minha filosofia também são falsos>> .10 Mas Descartes e os filósofos, que levaram a descoberta de Galileu ao nível do pensamento irretratável, registraram com inigualada precisão o enorme choque do evento; anteviram, pelo menos parcialmente, as perplexidades inerentes ao novo ponto de vista do homem, com as quais os cientistas não se ocupavam por falta de tempo, até que, em nossa época, elas se puseram a transparecer em suas próprias obras e a interferir com as suas próprias investigações. Desde então, deixou de haver aquela curiosa discrepância entre o ânimo da moderna filosofia, que desde o começo fora predominantemente pessimista, e o ânimo da ciência moderna, que até recentemente fora tão euforicamente otimista. Pouca alegria parece restar às duas atualmente.” (ARENDT. pg.285)
38. O Advento da Dúvida Cartesiana:
“A filosofia moderna começou com o de omnibus dubitandum est de Descartes – ou seja. com a dúvida; mas a dúvida não como controle inerente à mente humana, destinada a resguardá-la contra os engodos do pensamento e as ilusões do sentido, nem como ceticismo em relação à moral e os preconceitos dos homens e das épocas, e nem mesmo como método crítico de pesquisa científica e especulação filosófica.” (ARENDT. pg.286)
“A dúvida cartesiana, em seu significado radical e universal, foi inicialmente a reação a uma nova realidade, realidade esta não menos real pelo fato de se ter restringido, durante séculos, ao círculo limitado e politicamente insignificante dos doutos e eruditos. Os filósofos compreenderam imediatamente que as descobertas de Galileu não significavam mero desafio ao depoimento dos sentidos, e que agora já não era a razão, como em Aristarco e Copérnico, que lhes havia «Violado os sentidos>>; se assim fosse, ter-lhes-ia bastado optar entre suas faculdades e deixar que a razão ingênita se tornasse a concubina de sua credulidade. Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem – o telescópio – que realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a entrada em cena do homo faber, da atividade de fazer e de fabricar. Em outras palavras, o homem fora enganado somente enquanto acreditava que a realidade e a verdade se revelariam aos seus sentidos e à sua razão, bastando para tanto que ele permanecesse fiel ao que via com os olhos do corpo e da mente.” (ARENDT. pg.287)
“Se o olho humano pode trair o homem de tal forma que tantas gerações haviam sido levadas a crer que o Sol girava em torno da Terra, então a metáfora dos olhos da mente já não podia ser verdadeira; baseava-se, embora implicitamente e mesmo quando usada em oposição aos sentidos, numa fé ulterior na visão corporal. Se o Ser e a Aparência estão definitivamente separados – e este, como observou Marx certa vez, é realmente o pressuposto básico de toda a ciência moderna -, então nada resta que possa ser aceito de boa fé; tudo deve ser posto em dúvida. A antiga predição de Demócrito, de que a vitória da mente sobre os sentidos só podia terminar com a derrota da mente, parecia haver-se realizado- exceto que, agora, a leitura de um instrumento havia aparentemente derrotado a mente e os sentidos.” (ARENDT. pg.287)
“A dúvida cartesiana não duvidava simplesmente de que a compreensão humana fosse acessível a toda verdade ou que a visão humana fosse capaz de tudo ver; para ela, a inteligibilidade à compreensão humana não constitui demonstração de verdade, tal como a visibilidade não constitui prova de realidade. É uma dúvida que duvida que exista essa coisa chamada verdade, e com isto descobre que o tradicional conceito de verdade, fosse ele baseado na percepção dos sentidos, na razão ou na crença em alguma revelação divina, valera-se do duplo pressuposto de que o que realmente existe se revelará por si mesmo e que as faculdades humanas são adequadas para recebê- lo.”(ARENDT. pg.288)
“Dois pesadelos rondam a filosofia de Descartes. Em certo sentido, esses pesadelos vieram a ser os mesmos de toda a era moderna, não que esta tenha sido muito profundamente influenciada pela filosofia cartesiana, mas porque eram quase inevitáveis uma vez que o homem percebesse as verdadeiras implicações da moderna concepção do mundo. Num deles, a realidade – a realidade do mundo e da vida humana – é posta em dúvida; se já não podemos confiar nos sentidos, nem no senso comum, nem na razão. então é possível que tudo o que julgamos ser realidade não passe de um sonho. O outro tem a ver com a condição humana geral tal como revelada pelas novas descobertas e pela impossibilidade de confiarmos nos sentidos e na razão: em tais circunstâncias, parece realmente muito mais plausível a ideia de um espírito mau, um Dieu trompeur. que deliberada e rancorosamente trai o homem. que a de um Deus que comanda o universo. A consumada perversidade desse mau espírito consiste em haver criado um ser dotado da noção de verdade, apenas para conferir-lhe outras faculdades tais que ele jamais poderá alcançar qualquer verdade. jamais será capaz de estar certo de coisa alguma.” (ARENDT. pg.289-290)
“A solução cartesiana da dúvida universal ou o seu despertar dos dois pesadelos correlatos – de que tudo é um sonho e que não existe realidade, e de que não Deus, mas um mau espírito reina sobre o mundo e escarnece dos homens – foi semelhante em conteúdo à. substituição da .verdade pela veracidade e da realidade pela confiabilidade. A convicção de Descartes – de que, «embora a nossa mente não seja a medida das coisas e da verdade, deve certamente ser a medida do que afirmamos ou negamos» – repete aquilo que os cientistas em geral haviam descoberto, ainda que não o expressassem explicitamente: que, mesmo que não exista a verdade, o homem pode ser veraz, e mesmo que não exista certeza confiável, o homem pode ser confiável. Se alguma salvação existia. devia estar no próprio homem; e, se havia resposta para as perguntas levantadas pela dúvida. tinham que decorrer da própria dúvida. Se tudo se tomou duvidoso, então pelo menos a dúvida é certa e real. Qualquer que seja a forma pela qual a realidade e a verdade se apresentem aos sentidos e à razão, <<ninguém pode duvidar de sua dúvida e estar incerto quanto a se duvida ou não>> . O famoso cogito ergo sum (,,penso, logo existo>>) não resultava, para Descartes, de alguma autoconfiança do pensamento per se – pois, se assim fosse, o pensamento teria adquirido nova dignidade e importância para o homem -, mas era simples generalização de um dubito ergo sum. Em outras palavras, da mera certeza lógica de que, ao duvidar de algo, o homem toma conhecimento de um processo de dúvida em sua consciência, Descartes concluiu que aqueles processos que se passam na mente do homem são dotados de certeza própria e podem ser objeto de investigação na introspecção.” (ARENDT. pg.291-292)
39. A Introspecção e a Perda do Senso Comum:
“De fato a introspecção – não a reflexão da mente do homem quanto ao estado de sua alma ou de seu corpo, mas mero interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio conteúdo deve produzir a certeza, pois na introspecção só está envolvido aquilo que a própria mente produziu; ninguém interfere, a não ser o produtor do produto; o homem vê-se diante de nada e de ninguém a não ser de si mesmo. Muito antes que as ciências físicas e naturais começassem a indagar se o homem era capaz de encontrar, conhecer e compreender outra coisa além de si mesmo, a filosofia moderna procurara garantir, através da introspecção, que o homem não se preocupasse a não ser consigo mesmo.” (ARENDT. pg.293)
“A própria engenhosidade da introspecção cartesiana e, portanto, o motivo pelo qual esta filosofia foi tão importante para o desenvolvimento espiritual e intelectual da era moderna, residem, em primeiro lugar, no fato de empregar o pesadelo da não-realidade como modo de submergir todos os objetos mundanos no fluxo da consciência e de seus processos.” (ARENDT. pg.295)
“Em segundo lugar – e isto teve relevância ainda maior nos estágios iniciais da era moderna -, o método cartesiano de resguardar a certeza contra a dúvida universal correspondia muito precisamente à conclusão mais óbvia a ser tirada da nova ciência física: embora não possa conhecer a verdade como algo dado e revelado, o homem pode. pelo menos, conhecer o que ele próprio faz. Esta, realmente, veio a ser a atitude mais geral e mais geralmente aceita na era moderna; e foi esta convicção, e não a dúvida que lhe deu origem, que lançou geração após geração, durante mais de trezentos anos, num ritmo cada vez mais acelerado de descoberta e desenvolvimento. O raciocínio cartesiano baseia-se inteiramente <<no pressuposto implícito de que a mente só pode conhecer aquilo que ela mesma produz e retém de alguma forma dentro de si mesma.” (ARENDT. pg.295)
“A razão em Descartes, não menos que em Hobbes, limita-se a “prever as conseqüências” isto é, à faculdade de deduzir e concluir a partir de um processo que o homem pode, a qualquer momento, desencadear dentro de si mesmo. A mente desse homem para ficarmos no campo da matemática- já não vê “dois-mais-dois-são-quatro” como uma equação na qual os dois lados equilibram-se numa harmonia evidente por si mesma, mas concebe a equação como a expressão de um processo mediante o qual dois e dois passam a ser quatro a fim de gerar novos processos de adição que ulteriormente levarão ao infinito. É esta a faculdade que a era moderna denomina de senso comum; trata-se do jogo da mente consigo mesma, jogo este que ocorre quando a mente se fecha contra toda realidade e <<sente>> somente a si própria. Os resultados desse jogo são <<verdades>> convincentes porque, supostamente, a estrutura mental de um homem não difere mais da de outro que a forma do seu corpo. Qualquer eventual diferença é uma diferença de poder intelectual, e este pode ser testado e medido como se mede a potência de um motor. Aqui, a velha definição do homem como animal rationale adquire terrível precisão: destituído do senso comum, mediante o qual os cinco sentidos animais do homem se ajustam a um mundo comum a todos o-. homens. os seres humanos não passam realmente de animais capazes de raciocinar, de prever as consequências.” (ARENDT. pg.297)
40. A Atividade de Pensar e a Moderna Concepção do Mundo:
“De qualquer forma, sempre que tentamos transcender a aparência para alem de toda experiência sensorial, ainda que esta seja feita com a ajuda de instrumentos, a fim de apreender os segredos últimos do Ser que, segundo nosso conceito do mundo físico é tão furtivo que jamais se apresenta e, no entanto, tão tremendamente poderoso que produz todas as aparências, verificamos que as mesmas normas governam o macrocosmo e o microcosmo, e que o nosso instrumento registra as mesmas leituras. Novamente podemos, por um instante, rejubilar-nos por haver reencontrado a unidade do universo, apenas para suspeitar que o que encontramos talvez nada tenha a ver com o macrocosmo ou com o microcosmo que lidamos apenas com configurações de nossa própria mente a mente que projetou os instrumentos e submeteu a natureza às suas condições no experimento – impôs à natureza as suas leis, na frase de Kant – e, nesse caso, é como se realmente estivéssemos nas mãos de um espírito mau que escarnece de nós e frustra a nossa sede de conhecimento, de sorte que, sempre que procuramos aquilo que não somos, encontramos somente as configurações de nossa mente.” (ARENDT. pg.300)
“Se, portanto, a ciência de hoje, em sua perplexidade, aponta as conquistas da técnica para <<provar» que estamos lidando com uma «Ordem autêntica>> dada na natureza, parece ter caído num círculo vicioso: os cientistas formulam hipóteses para conciliar seus experimentos e em seguida empregam esses experimentos para verificar as hipóteses; e é óbvio que, durante todo o tempo, estão lidando com uma natureza hipotética. Em outras palavras, o mundo da experimentação científica sempre parece capaz de tornar-se uma realidade criada pelo homem; e isto, embora possa aumentar o poder humano de criar e de agir, até mesmo de criar um mundo, a um grau muito além do que qualquer época anterior ousou imaginar em sonho ou fantasia, torna, infelizmente, a aprisionar o homem- e agora com muito mais eficácia – na prisão de sua própria mente, nas limitações das configurações que ele mesmo criou.” (ARENDT. pg.300-301)
“A dúvida universal de Descartes atingiu agora o cerne da própria ciência física; porque o caminho da fuga para a mente do próprio homem é bloqueado quando se verifica que o moderno universo físico não só está fora do alcance de qualquer representação – o que seria de esperar sob o pressuposto de que a natureza e o Ser não se revelam aos sentidos – mas é também inconcebível e inimaginável em termos de raciocínio puro.” (ARENDT. pg.302)
41. A Inversão de Posições entre a Contemplação e a Ação:
“Talvez a mais grave consequência espiritual das descobertas da era moderna e, ao mesmo tempo, a única que não podia ser evitada, uma vez que seguiu muito de perto a descoberta do ponto de vista arquimediano e o resultante advento da dúvida cartesiana, foi a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa.” (ARENDT. pg.302)
“Se tivéssemos de confiar somente nos chamados instintos práticos do homem, jamais teria havido qualquer tecnologia digna de nota; e, embora as invenções técnicas hoje existentes tragam em si certo ímpeto que, provavelmente, gerará melhoras até certo ponto, é pouco provável que o nosso mundo condicionado à técnica pudesse sobreviver, e muito menos continuar a desenvolver-se, se conseguíssemos nos convencer de que o homem é, antes de tudo, uma criatura prática. Seja como for, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias mãos. Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes, mas só podiam ser atingidos através da «ação», e não da contemplação.” (ARENDT. pg.303)
“Para que tivesse certeza, o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir. A certeza do conhecimento só podia ser atingida mediante dupla condição: primeiro, que o conhecimento se referisse apenas àquilo que o próprio homem havia feito- de sorte que o ideal passava a ser o conhecimento matemático, no qual se lida apenas com entidades produzidas pela própria mente – e, segundo, que o conhecimento fosse de tal natureza que só pudesse ser verificado mediante ação adicional. Desde então, a verdade científica e a verdade filosófica separaram-se de vez; a verdade científica não só não precisa ser eterna, como não precisa sequer ser compreensível ou adequada ao raciocínio humano.” (ARENDT. pg.303)
“Sem dúvida. a mudança que ocorreu no século XVII foi mais radical do que se pode depreender da simples inversão da ordem tradicional entre a contemplação e ação. A rigor, essa inversão tinha a ver apenas com a relação entre o pensar e o fazer, ao passo que a contemplação, no sentido original de contemplar a verdade, foi inteiramente abolida. Pois pensamento e ação não são a mesma coisa. Tradicionalmente, concebia-se o pensamento como a maneira mais direta e importante de chegar-se à contemplação da verdade.” (ARENDT. pg.304)
“Assim, a inversão que ocorreu na era moderna não consistiu em promover a ação à posição outrora ocupada pela contemplação como o mais alto estado de que os seres humanos são capazes – como se, daí por diante, a ação fosse a finalidade última em benefício da qual se devia exercer a contemplação, tal como, até então, todas as atividades da vita activa tinham sido julgadas e justificadas na medida em que tornavam possível a vita contemplativa. A inversão tinha a ver somente com a atividade de pensar que, daí por diante, passou a ser a serva da ação como havia sido a ancilla theologiae, a serva da contemplação da verdade divina na filosofia medieval e a serva da contemplação da verdade do Ser na filosofia dos antigos. Por si, a contemplação perdeu todo e qualquer sentido.” (ARENDT. pg.305)
“Desde o século XVII, a filosofia produziu seus melhores e menos discutidos resultados quando investigava, num supremo esforço de auto-inspeção, os processos dos sentidos e da mente. Sob este aspecto, grande parte da filosofia moderna é, realmente, uma teoria da cognição e da psicologia; e, nos poucos casos em que as potencialidades do método cartesiano de introspecção foram plenamente realizadas por homens como Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, somos tentados a dizer que os filósofos experimentaram com o próprio ser não menos radicalmente e talvez mais afoitamente que os cientistas experimentaram com a natureza.” (ARENDT. pg.307)
“Depois que Descartes baseou sua filosofia nas descobertas de Galileu, a filosofia parece condenada a seguir sempre um passo atrás dos cientistas e de suas descobertas, ainda mais espantosas que as de Galileu, cujos princípios tenta arduamente descobrir ex post facto e ajustar a alguma interpretação geral da natureza do conhecimento humano. Como tal, porém, a filosofia não era necessária aos cientistas que – pelo menos até o nosso tempo – acreditavam não precisar de uma serva, e muito menos uma que pretendesse “Carregar o archote à frente da sua graciosa ama” (Kant). Os filósofos tornaram-se epistemologistas, preocupados com uma teoria global da ciência da qual os cientistas não necessitavam, ou tomaram-se realmente aquilo que Hegel queria que fossem: os órgãos do Zeitgeist, os porta-vozes através dos quais o estado de espírito geral da época era expresso com clareza conceitual. Em ambos os casos, quer pesquisassem a natureza ou a história, tentavam compreender e fazer face ao que estava acontecendo sem a sua ajuda. Obviamente, a filosofia sofreu mais com a modernidade que qualquer outro campo de ocupação humana; e é difícil dizer se sofreu mais em decorrência da quase automática elevação da atividade a uma dignidade completamente inesperada e sem precedentes ou da perda da verdade tradicional, ou seja, do conceito de verdade que havia por trás de toda a nossa tradição.” (ARENDT. pg.307)
42. A Inversão dentro da Vita Activa e a Vitória do Homo Faber:
“As primeira atividades da vita activa a se promoverem à posição antes ocupada pela contemplação foram as atividades de fazer e fabricar – prerrogativas do homo faber. Isto não deixava de ser natural, visto que foi um instrumento, e portanto o homem na medida em que é fabricante de instrumentos, que levou à moderna revolução. De lá para cá, todo progresso científico tem tido íntima relação com o desenvolvimento cada vez mais sofisticado da manufatura de novos utensílios e instrumentos.” (ARENDT. pg.307-308)
“Não foi somente a parafernália de instrumentos e, portanto, o auxílio que o homem teve que ir buscar no homo faber: para adquirir conhecimento que fez com que essas atividades subissem de sua antiga posição humilde na hierarquia das capacidades humanas. Mais decisivo que isto foi o elemento de fabricação presente no próprio experimento, que produz os seus próprios fenômenos de observação e, portanto, depende desde o início das capacidades produtivas do homem. O emprego da experimentação para fins de conhecimento já era conseqüência da convicção de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo fabrica, pois esta convicção significava que ele poderia aprender algo acerca das coisas que não fez se calculasse e imitasse os processos através dos quais essas coisas passaram a existir.” (ARENDT. pg.308)
“Contudo, embora esta insistência no processo de fabricação, ou a insistência em considerar todas as coisas como resultado de um processo de fabricação, seja característica do homo faber e do âmbito de sua experiência, a ênfase exclusiva que a era moderna colocou sobre ele às custas de todo interesse nas coisas, nos próprios produtos, constitui fato inteiramente novo. Na verdade, transcende a mentalidade do homem como fazedor de instrumentos e fabricante, para quem, ao contrário, o processo de produção era apenas um meio de atingir um fim. No caso, do ponto de vista do homo faber, era como se o meio, o processo de produção ou de desenvolvimento fosse mais importante que o fim, o produto acabado. O motivo para esta mudança de ênfase é óbvio: o cientista criava apenas para conhecer, não para produzir coisas; estas eram meros subprodutos ou efeitos colaterais. Ainda hoje todos os verdadeiros cientistas concordarão que a aplicabilidade técnica de suas pesquisas é mero subproduto do seu trabalho.” (ARENDT. pg.310)
“Os resultados produzidos pela introspecção, único método capaz de trazer conhecimento seguro, têm a natureza dos movimentos; só os objetos dos sentidos permanecem como são e suportam, precedem e sobrevivem ao ato da sensação; só os objetos das paixões são permanentes e fixos, na medida em que não são devorados pela realização de algum desejo desesperado; só os objetos do pensamento, mas nunca a atividade de pensar, ficam além do movimento e da perecibilidade. Os processos, portanto, e não as idéias, os modelos e as formas das coisas a serem criadas, tornam-se na era moderna os guias das atividades de fazer e de fabricar, que são as atividades do homo faber.” (ARENDT. pg.313)
“A filosofia política da era moderna, cujo maior representante é ainda Hobbes, tropeça na perplexidade de que o moderno racionalismo é irreal e o realismo moderno é irracional – o que é apenas outra maneira de dizer que a realidade e a razão humana se divorciaram. O gigantesco empreendimento de Hegel de reconciliar o espírito com a realidade, reconciliação que é a mais profunda preocupação de todas as modernas teorias da história – baseou-se na percepção de que a razão moderna soçobrava nos escolhos da realidade.” (ARENDT. pg.314)
“Portanto, se o moderno desafio à prioridade da contemplação em relação a todo de tipo de atividade não houvesse feito mais que virar de cabeça para baixo a ordem estabelecida entre as atividades de fabricar e contemplar, a contemplação teria ainda assim permanecido na estrutura tradicional. Esta estrutura, porém, foi completamente violada quando, no conceito da própria fabricação, a ênfase mudou inteiramente, passando do produto e do modelo permanente e orientador para o processo de fabricação, afastando-se da questão de o que uma coisa é e de que tipo de coisa deve ser produzida para a questão de como e através de que meios e processos ela veio a existir e pode ser reproduzida. Porque isto implicava, ao mesmo tempo, que já não se acreditava que a contemplação pudesse produzir a verdade, e que havia perdido a sua posição na própria vita activa e, conseqüentemente, no âmbito da experiência humana comum.” (ARENDT. pg.317)
43. A Derrota do Homo Faber e o Princípio da Felicidade:
“O que exige explicação não é a moderna estima do homo faber mas o fato de que essa estima tenha sido tão rapidamente seguida da promoção da atividade do labor à mais alta posição na ordem hierárquica da vita activa. Esta segunda inversão hierárquica dentro da rita activa ocorreu de modo mais gradual e menos dramático que a inversão de posições entre a contemplação e a ação em geral ou a inversão entre a ação e a fabricação em particular. A promoção do labor foi precedida por certos desvios e variações da mentalidade tradicional do homo faber, altamente característicos da era moderna e que, realmente, resultaram quase automaticamente da própria natureza dos eventos que deram origem à era moderna.” (ARENDT. pg.319)
“Talvez nada indique mais claramente o irrevogável fracasso do homo faber em afirmar-se na era moderna que a rapidez com que o princípio da utilidade, a própria quintessência de sua concepção do mundo, foi declarado inadequado e substituído pelo princípio da maior felicidade do maior número. Quando isto aconteceu, tornou-se evidente que a convicção da era moderna, de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz – aparentemente tão propícia à plena vitória do homo faber – seria invalidada e finalmente abolida pelo princípio ainda mais moderno do processo, cujos conceitos e categorias são inteiramente alheios às necessidades e aos ideais do homo faber.” (ARENDT. pg.321)
“Esta radical perda de valores dentro do limitado sistema de referência do homo faber ocorre quase automaticamente assim que ele se define, não como o fabricante de objetos e construtor do artifício humano que também inventa instrumentos, mas se considera primordialmente como fazedor de instrumentos e <<especialmente (um fazedor) de instrumentos para fazer instrumentos», que só incidentalmente também produz coisas. Se é possível aplicar neste contexto o princípio da utilidade, deve referir-se basicamente não a objetos de uso, e não ao uso, mas ao processo de produção. Agora, tudo o que ajuda a estimular a produtividade e alivia a dor e o esforço toma-se útil. Em outras palavras, o critério final de avaliação não é de forma alguma a utilidade e o uso, mas a <<felicidade», isto é, a quantidade de dor e prazer experimentada na produção ou no consumo das coisas. A invenção, por Bentham, do «cálculo da dor e do prazer>> apresentava não só a vantagem de introduzir, aparentemente, o método matemático nas ciências morais, mas a atração ainda maior de haver encontrado um princípio inteiramente baseado na introspecção. A <<felicidade» de Bentham, a soma total dos prazeres menos as dores, é tanto um sentido interior que sente sensações e permanece alheio aos objetos do mundo quanto a consciência cartesiana, consciente de sua própria atividade.” (ARENDT. pg.322)
“Em última análise, a vida é o critério supremo ao qual tudo mais se subordina; e os interesses do indivíduo, bem como os interesses da humanidade, são sempre equacionados com a vida individual ou a vida da espécie, como se fosse lógico e natural considerar a vida como o mais alto bem.” (ARENDT. pg.325)
“O naturalismo, versão do materialismo no século XIX. aparentemente encontrara na vida o modo de resolver os problemas da filosofia cartesiana e ao mesmo tempo transpor o abismo cada vez maior entre a filosofia e a ciência.” (ARENDT. pg.326)
44. A Vida como Bem Supremo:
“A derrota do homo faber pode ser explicada em termos da transformação inicial da física em astrofísica, das ciências naturais em ciência «Universal>•. O que resta a explicar é por que esta derrota terminou com a vitória do animal laborans; por que, com o enaltecimento da vita activa, o labor veio a ser precisamente aquela atividade a ser promovida à mais alta posição entre as capacidades do homem; ou, em outras palavras, por que, na diversidade da condição humana, com suas várias capacidades humanas, foi precisamente & vida que invalidou todas as outras considerações.” (ARENDT. pg.326)
“Seja como for, a era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida, e não o mundo, é o bem supremo do homem; em suas mais ousadas e radicais revisões e críticas dos conceitos e crenças tradicionais, jamais sequer pensou em pôr em dúvida a fundamental inversão de posições que o cristianismo trouxera para o decadente mundo antigo. Por mais eloquentes e conscientes que fossem os pensadores da era moderna em seus ataques contra a tradição, a prioridade da vida sobre tudo mais assumira para eles a condição de verdade axiomática – e como tal sobreviveu até o mundo atual, que já começou a deixar para trás toda a era moderna e a substituir a sociedade. de operários por uma sociedade de detentores de empregos.” (ARENDT. pg.332)
“O único fato de que podemos estar seguros é que a coincidência da inversão de posições entre a ação e a contemplação com a inversão precedente entre a vida e o mundo veio a ser o ponto de partida para todo o desenvolvimento moderno. Foi só quando perdeu o seu ponto de referência na vita contemplativa que a vita activa pôde tornar-se vida ativa no sentido mais amplo do termo; e foi somente porque esta vida ativa se manteve ligada à vida como único ponto de referência que a vida em si, o laborioso metabolismo do homem com a natureza, pôde tornar-se ativa e exibir toda a sua fertilidade.” (ARENDT. pg.333)
45. A Vitória do Animal Laborans:
“A vitória do animal laborans jamais deveria ter sido completa se o processo de secularização, a moderna perda da fé como decorrência inevitável da dúvida cartesiana, não houvesse despojado a vida individual de sua imortalidade, Ou pelo menos da certeza da imortalidade. A vida individual voltou a ser mortal, tão mortal quanto o fora na antiguidade, e o mundo passou a ser menos estável; menos permanente e, portanto, menos confiável do que o fora na era cristã. Ao perder a certeza de um mundo futuro. o homem moderno foi arremessado para dentro de si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse potencialmente imortal. ele não estava sequer seguro de que fosse real. E, na medida em que devia pressupor que era real, no otimismo acrílico e aparentemente indiferente de uma ciência em contínuo progresso, afastava-se da terra para um ponto muito mais distante que qualquer alienação mundana cristã jamais o havia levado. O sentido atribuído à palavra «secular» no uso corrente, qualquer que seja, não pode, historicamente, ser equacionado com mundanidade; pelo menos, o homem moderno não ganhou este mundo ao perder o outro, e tampouco, a rigor, ganhou a vida; foi atirado de volta a ela, lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma. Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e os desejos, os impulsos insensatos de seu corpo que ele confundia com a paixão e que considerava «irrazoáveis» por não poder «arrazoar» com eles, ou seja, prevê-los e medi-los. Agora, a única coisa que podia ser potencialmente imortal, tão imortal quanto fora o corpo político na antiguidade ou a vida individual na Idade Média, era a própria vida, isto é, o processo vital, possivelmente eterno, da espécie humana.” (ARENDT. pg.333)
“O que restava era uma força natural, a força do próprio processo vital, ao qual todos os homens e todas as atividades humanas estavam igualmente sujeitos (<<O próprio processo de pensar é um processo natural>> e cujo único objetivo, se é que tinha algum objetivo, era a sobrevivência da espécie animal humana. Nenhuma as capacidades superiores do homem era agora necessária para relacionar a vida individual à vida da espécie; a vida individual tornara-se parte do processo vital, e a única coisa necessária era «laborar>>, isto é, garantir a continuidade da vida de cada um e de sua família. Tudo o que não fosse necessário, não exigido pelo metabolismo da vida com a natureza, era supérfluo ou só podia ser justificado em termos de alguma peculiaridade da vida humana em oposição à vida animal.” (ARENDT. pg.335)
“Finalmente, a atividade de pensar que, fiéis à tradição pré- moderna e moderna, omitimos de nossa reconsideração da vita activa – ainda é possível, e sem dúvida ocorre, onde quer que os homens vivam em condições de liberdade política. Infelizmente, e ao contrário do que geralmente se supõe quanto à proverbial torre de marfim dos pensadores, nenhuma outra capacidade humana é tão vulnerável; de fato, numa tirania, é muito mais fácil agir do que pensar. Como experiência vívida, sempre se supôs, talvez erradamente, que a atividade de pensar fosse privilégio de poucos. Talvez não seja presunçoso demais acreditar que estes poucos são ainda mais reduzidos em nosso tempo- o que pode ser irrelevante, ou de relevância limitada, para o futuro do mundo, não é irrelevante para o futuro do homem. Pois, se nenhum outro critério senão a experiência de se estar ativo, nenhum outro gabarito senão a medida de pura atividade fosse aplicado às várias atividades compreendidas pela vira activa, bem poderia ser que a atividade de pensar levasse a palma a todas as demais. Quem quer que tenha alguma experiência neste particular sabe o quanto eram verdadeiras as palavras de Catão: Numquam se plus agere quam nihil cum ageret, numquam minus solum esse quam cum solus esset – «Nunca ele está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo».” (ARENDT. pg.338)
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição hunana. [tradução de Roberto Raposo]. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007.
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