Foucault – A Hermenêutica do Sujeito: Aula de 20 de janeiro de 1982
Ubirajara T Schier
O cuidado de si, do Alcibíades aos dois primeiros séculos da nossa era: evolução geral. – Estudo léxico em tomo da epiméleia. – Uma constelação de expressões. – Ageneralização do cuidado de si: princípio de coextensividade à totalidade da existência. – Leitura de textos: Epicuro, Musonius RuJus, Sêneca, Epicteto, Fílon de Alexandria, Luciano. – Conseqüências éticas desta generalização: O cuidado de si como eixo formador e corretivo; aproximação entre atividade médica e filosófica (os conceitos comuns; o objetivo terapêutico).
Lembremos que, no Alcibíades, há, segundo me parece, três condições que determinam, a um tempo, a razão de ser e a forma do cuidado de si. Uma destas condições concerne ao campo de aplicação do cuidado de si: quem deve ocupar-se consigo mesmo? O texto do Alcibíades é totalmente claro: devem ocupar-se consigo mesmos os jovens aristocratas destinados a exercer o poder. (FOUCAULT. pg.102)
A segunda determinação, ligada evidentemente à primeira, é que o cuidado de si tem um objetivo, uma justificação precisa: trata-se de ocupar-se consigo a fim de poder exercer o poder ao qual se está destinado, como se deve, sensatamente, virtuosamente. Enfim, terceira limitação, claramente exposta no final do diálogo, o cuidado de si tem como forma principal, senão exclusiva. o conhecimento de si: ocupar-se consigo é conhecer-se. (FOUCAULT. pg.102)
Uma coisa porém é certa: após Platão e até o período de que agora trato, não é neste ponto da vida, nesta fase conturbada e crítica do fim da adolescência, que se afirmará a necessidade do cuidado de si. Doravante, o cuidado de si não é mais um imperativo ligado simplesmente à crise pedagógica daquele momento entre a adolescência e a idade adulta. O cuidado de si é uma obrigação permanente que deve durar a vida toda. E não foi necessário esperar os séculos I e 11 para assim afirmá-lo. Se tomarmos, em Epicuro, todo o começo da Carta a Meneceu, leremos: “Quando se é jovem, não se deve hesitar em filosofar e, quando se é velho, não se deve deixar de filosofar. Nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ter cuidados com a própria alma. Quem disser que não é ainda ou não é mais tempo de filosofar assemelha-se a quem diz que não é ainda ou não é mais tempo de alcançar a felicidade. Logo, deve-se filosofar quando se é jovem e quando se é velho, no segundo caso [quando se é.velho, portanto; M.F.] para rejuvenescer no contato com o bem, para a lembrança dos dias passados, e no primeiro caso [quando se é jovem; M.F.] a fim de ser, embora jovem, tão firme quanto um idoso diante do futuro!’.” Como vemos, este texto é realmente muito denso, comportando uma série de elementos que seria preciso examinar mais de perto. Gostaria apenas de destacar alguns deles. Vemos, é claro, a assimilação entre “filosofar” e “ter cuidados com a própria alma”; vemos que o objetivo proposto à atividade de filosofar, de ter cuidados com a própria alma, é o alcance da felicidade; que esta atividade de ter cuidados com a própria alma deve ser praticada em todos os momentos da vida, quando se é jovem e quando se é velho. Entretanto, com duas funções diferentes: quando se é jovem trata-se de preparar-se _ é a famosa paraskheué de que lhes falarei mais tarde, tão importante nos epicuristas quanto nos estóicos – para a vida, armar-se, equipar-se para a existência; e no caso da velhice, filosofar é rejuvenescer, isto é, voltar no tempo ou, pelo menos, desprender-se dele, e isto graças a uma atividade de memorização que, para os epicuristas, é a rememoração dos momentos passados. Tudo isto nos coloca, de fato, no cerne desta atividade, da prática do cuidado de si; mas voltarei depois aos diferentes elementos deste texto. Assim, para Epicuro, como vemos, deve-se filosofar todo o tempo, deve-se incessantemente ocupar-se consigo. Se tomarmos agora os textos estóicos, encontraremos a mesma coisa. Dentre centenas, citarei apenas o de Musonius Rufus, segundo o qual é cuidando-se sem parar (aei therapeúontes) que se pode salvar-se’I Ocupar-se consigo, portanto, é ocupação de toda uma vida, de toda a vida. De fato, se observarmos no período de que lhes falo a maneira como se praticou o cuidado de si, perceberemos que é realmente uma atividade de toda a vida. Podemos mesmo dizer que se trata de uma atividade do adulto e que o centro de gravidade, o eixo temporal privilegiado no cuidado de si, longe de estar no período da adolescência, está, ao contrário, no meio da idade adulta; talvez até, como veremos, mais no final da idade adulta do que no final da adolescência. (FOUCAULT. pg.108-109)
Tomarei enfim um último exemplo concernente a este problema do adulto, de sua inserção, se quisermos, no interior da prática de si. Refiro-me a um grupo importante, embora enigmático e pouco conhecido, pois dele só sabemos através de um texto de Fílon de Alexandria: o famoso grupo dos Terapeutas, do qual lhes falarei depois um pouco mais longamente. Deixemos, por ora, o problema de quem são e o que fazem, etc. Trata-se, em todo caso, de um grupo das redondezas de Alexandria, que pode ser chamado de ascético e que tem como um dos seus objetivos, expresso no próprio texto, a epiméleia tés psykhés. Ter cuidados com a alma é o que pretendem. Ora, uma passagem de Fílon de Alexandria, no De vita contemplativa – onde é feita a referência -, afirma, a propósito dos Terapeutas: “Tendo o seu desejo de imortalidade e de vida bem-aventurada os levado a acreditar que já haviam terminado sua vida mortal [voltarei a esta importante passagem, mais adiante, a respeito da velhice; M. F.], deixam seus bens a seus filhos, suas filhas, seus próximos: deliberadamente, fazem deles herdeiros por antecipação; quanto aos que não têm família, deixam tudo ao seu companheiro e aos seus amigos. (FOUCAULT. pg,112)
Na prática de si que vemos desenvolver-se no decurso do período helenístico e romano, ao contrário, há um lado formador que é essencialmente vinculado à preparação do indivíduo, preparação porém não para determinada forma de profissão ou de atividade social: não se trata, como no Alcibíades, de formar o indivíduo para tomar-se um bom governante; trata-se, independentemente de qualquer especificação profissional, de formá-lo para que possa suportar, como convém, todos os eventuais acidentes, todos os infortúnios possíveis, todas as desgraças e todos os reveses que possam atingi-lo. Trata-se, conseqüentemente, de montar um mecanismo de segurança, não de inculcar um saber técnico e profissional ligado a determinado tipo de atividade. Esta formação, esta armadura se quisermos, armadura protetora em relação ao resto do mundo, a todos os acidentes ou acontecimentos que possam produzir-se, é o que os gregos chamavam de paraskheué, aproximadamente traduzido por Sêneca como instructio. A instructio é esta armadura do indivíduo em face [dos] acontecimentos e não a formação em função de um fim profissional determinado. Portanto, nos séculos I-lI, encontramos este lado formador da prática de si. (FOUCAULT. pg.115)
Sêneca evoca o que se passa com os elementos físicos, os corpos físicos. Diz ele: conseguimos endireitar vigas grossas quando encurvadas; com maior razão o espírito humano, que é flexível, poderá também ser endireitado”. Em todo caso, continua ele, a bana mens (a alma de qualidade) jamais virá antes da mala mens, da imperfeição da alma'” A qualidade da alma só pode vir depois da imperfeição da alma. Somos, diz ele, sempre na carta 50, praeoccupali: já ocupados por algo no momento em que intentamos fazer o bem’;. E encontra então uma fórmula que foi importante no vocabulário cínico: virtutes discere é vilia dediscere (aprender as virtudes é desaprender os vícios)”. Trata-se da noção de desaprendizagem, essencial nos cínicos, reencontrada nos estóicos. Ora, esta ideia de desaprendizagem que, de todo modo, deve começar ainda quando a prática de si se esboça na juventude’ esta reformação crítica, reforma de si que tem por critério uma natureza – mas uma natureza jamais dada, jamais manifestada como tal no indivíduo humano, de qualquer idade -, tudo isto assume, muito naturalmente, a feição de um desbaste em relação ao ensino recebido, aos hábitos estabelecidos e ao meio. (FOUCAULT. pg.117)
Lê-se em um conhecido texto de Cícero nas Tusculanas: “Desde que nascemos e somos admitidos em nossas famílias, encontramo-nos em um meio inteiramente falseado onde a perversão dos julgamentos é completa, tanto que, pode-se dizer, sugamos o erro com o leite de nossas amas.4811 Crítica, pois, da primeira infância e das condições em que ela se desenrola. Crítica também do meio familiar, não somente em seus efeitos educativos, como ainda, se quisermos, [pelo] conjunto de valores que ele transmite e impõe; crítica do que, em nosso vocabulário, chamaríamos de “ideologia familiar”. Penso naquela carta de Sêneca a Lucílio, em que diz: põe-te em segurança, tenta reencontrar a ti mesmo, “bem sei que teus pais almejaram para ti coisas bem diferentes; também eu faço por ti votos totalmente contrários aos que te fizeram tua família; almejo-te um desprezo generoso por todas as coisas que teus pais te almejaram em abundância”. Por conseguinte, o cuidado de si deve reverter inteiramente o sistema de valores veiculados e impostos pela família. Em terceiro lugar, finalmente, e não insisto nisto por ser bastante conhecido, toda a crítica da formação pedagógica dos mestres – mestres do ensino que chamaríamos primário – e principalmente a dos professores de retórica. (FOUCAULT. pg.117-118)
E por que, pergunta Fílon, denominam-se eles Terapeutas? Pois bem, porque cuidam da alma como os médicos cuidam do corpo. Sua prática é therapeutiké, como a prática dos médicos é iatriké60. Fílon distingue, como alguns autores gregos, não porém como todos, a terapêutica e a iátrica, sendo a terapêutica uma forma de atividade de cuidados mais ampla, mais espiritual, menos diretamente física do que a dos médicos para a qual reservam o adjetivo iatriké (a prática iátrica se aplica ao corpo). Denominam-se Terapeutas, diz ele, porque querem cuidar da alma como os médicos cuidam do corpo, mas também porque praticam o culto do Ser (to ón: therapeúousi to ón). Cuidam do Ser e cuidam da própria alma. Realizando as duas coisas ao mesmo tempo, é na correlação entre o cuidado do Ser e o cuidado da alma que eles podem intitular-se “Terapeutas” (FOUCAULT. pg.121)
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. [tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail]. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006.
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