As Necessidades da Alma
– Noção de obrigação x noção de dever:
Inicialmente a autora faz uma distinção entre a noção de obrigação e noção de direito. Para a autora a noção de obrigação ultrapassa a noção de direito, pois a obrigação é algo pessoal, que independe do direito. Já o direito (ou dever) pode estar vinculado à uma obrigação, porém de qualquer forma se trata de uma obrigação que não é pessoal, mas que existe em função da relação entre as pessoas. Por exemplo: Eu posso realizar determinada ação que eu considere ser uma obrigação pessoal, ainda que não tenho o dever de fazê-la; como posso também realizar uma ação pelo simples dever de ter que fazê-la, ainda que eu não me sinta na obrigação pessoal de fazê-la; e, finalmente, poderia realizar uma ação que eu considere um dever e uma obrigação pessoal fazê-lo (o que faz do dever nesse caso algo meramente figurante).
– O objeto da obrigação:
O objeto da obrigação, na área das coisas humanas, é sempre o ser humano como tal. Há obrigação para com todo ser humano, pelo simples fato de ele ser um ser humano, sem que nenhuma outra condição precise intervir, mesmo que ele não reconhecesse nenhuma. (WEIL, p. 9)
Essa obrigação que temos para com o ser humano, apresenta, para a autora, as seguintes características:
– Esta obrigação não repousa sobre nenhuma situação de fato, nem sobre jurisprudências, nem sobre os costumes, nem sobre a estrutura social, nem sobreas relações de força, nem sobre a herança do passado, nem sobre a suposta orientação da história. Pois nenhumasituação de fato pode suscitar uma obrigação. (WEIL, p. 9)
– Esta obrigação não repousa sobre nenhuma convenção. Pois todas as convenções são modificáveis segundo a vontade dos contratantes, enquanto nela, nenhuma mudança na vontade dos homens pode modificar o que quer que seja. (WEIL, p. 9)
– Esta obrigação é eterna. Ela corresponde ao destino eterno do ser humano. Só o ser humano tem um destino eterno. As coletividades humanas não o têm. Então, não há, para com elas, obrigações diretas que sejam eternas. Só é eterno o dever para com o ser humano como tal. (WEIL, p. 9)
– Esta obrigação é incondicionada.Se está fundada sobre alguma coisa, essa alguma coisa não pertence ao nosso mundo. No nosso mundo,ela não está fundada sobre nada. É a única obrigação relativa às coisas humanas que não está submetida a nenhuma condição. (WEIL, p. 9)
– Esta obrigação tem não um fundamento,e sim, uma verificação no acordo da consciência universal. Ela é expressa por alguns dos textos escritos mais antigos que nos foram conservados. É reconhecida por todos, em todos os casos particulares em que não é combatida pelosinteresses oupaixões.E relativamente a ela que se mede o progresso. (WEIL, p. 9)
Para a autora, a mais fundamental e eterna das obrigações para com o ser humano é a de não deixá-lo passar fome havendo condição e oportunidade para provê-lo com alimento. A autora ressalta que essa é uma obrigação que, enquanto eterna, existiu em todos momentos e lugares ao longo da história.
Essa obrigação serve de modelo para a definição do tipo mais básico de obrigação, que é em relação às necessidades físicas vitais – análogas à fome – para a manutenção da vida do ser humano, como por exemplo: se vestir, ter onde morar , segurança e higiene.
Além da obrigação em relação às necessidades físicas existe também, segundo a autora, uma obrigação em relação às necessidades morais (necessidades da alma), que são vitais para a vida tanto quanto as necessidades físicas. Para a autora:
Outras, entre essas necessidades, não têm relação com a vida física, mas com a vida moral. Como as primeiras, são contudoterrestres, e não têm relação direta que seja acessível à nossa inteligência com o destino eterno do homem. São, comoas necessidadesfísicas, necessidades da vida aqui na terra. Ouseja, se não forem satisfeitas, o homem cai pouco a pouco num estado mais ou menos análogo à morte, mais ou menos próximo de uma vida puramente vegetativa. São muito mais difíceis de reconhecer e de enumerar do que as necessidades do corpo. Mas todo o mundo reconhece que existem. (WEIL, p. 11)
O primeiro estudo fazer é o das necessidades que são para a vida da alma o que são para a vida do corpo as necessidades de alimento,sonoe calor. É preciso tentar enumerálas e defini-las. Não se devejamais confundi-las com os desejos,caprichos,fantasias,vícios. É preciso também discernir O essencial e o acidental. O homem precisa, não de arroz ou de batatas, mas de comida; não de madeira ou de carvão, mas de aquecimento. Igualmente para as necessidades da alma,é preciso reconhecer as satisfações diferentes, mas equivalentes, respondendo às mesmas necessidades. É preciso também distinguir dos alimentos da alma os venenos que, de tempos em tempos, podem dara ilusão de fazer as vezes de alimento. (WEIL, p. 13)
Eis algumas indicações.
– Necessidade de ordem
– Necessidade de Liberdade
– Necessidade de Obediência
– Necessidade de Responsabilidade
– Necessidade de Igualdade
– Necessidade de Hierarquia
– Necessidade de Honra
– Necessidade de Castigo
– Necessidade de Liberdade de Opinião
– Necessidade de segurança
– Necessidade do Risco
– Necessidade de Propriedade Privada
– Necessidade de Propriedade Coletiva
– Necessidade da Verdade
– e por fim a Necessidade de Desenraizamento
– Necessidade de Desenraizamento:
A autora dedica a segunda parte de seu livro para tratar das necessidades de alma de enraizamento e desenraizamento. Ela considera estas as mais importantes e ao mesmo tempo desconhecidas entre as necessidades da alma. Para entender a necessidade de desenraizamento é necessário também considerar o enraizamento também como uma das necessidades da alma. O enraizamento é uma espécie de sentimento de “pertencimento” do indivíduo no meio em que vive e no qual se encontra inserido.
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É umadas mais difíceis de definir. Um ser humanotem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passadoe certos pressentimentos de futuro. Participação natural, ouseja, ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes;Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral,intelectual, espiritual, por intermé- dio dos meios dos quais faz parte naturalmente. (WEIL, p. 43)
Por sua vez o desenraizamento vem a ser a necessidade da alma através do qual o ser humano sofre influências de outros meios de vida, que o instigam à mudança de meio, ou seja, ao desenraizamento do seu meio de vida atual visando tornar sua vida mais intensa em uma nova realidade.
As trocas de influências entre meios muito diferentes não são menosindispensáveis do que o enraizamento no entorno natural. Mas um meio determinado deve receber uma influência externa não como uma contribuição, mas como um estimulante que torne sua própria vida mais intensa. (WEIL, p. 43)
A autora ressalta que entre os diversos fatores que promovem o desenraizamento, o mais influente nas sociedades é constituído, infelizmente, o dinheiro. A autora ressalta
Enfim,as relações sociais no interior de um mesmo país podem ser fatores muito perigosos de desenraizamento. No nosso país, em nossos dias, pondo de. lado a conquista, há dois venenos que propagam essa doença. Um é o dinheiro. O dinheiro destrói as raízes em toda a parte onde penetra, substituindo todos os móbiles pelo desejo de ganhar. Vence sem dificuldade todos os outros móbiles porque pede um esforço de atenção muito menor. Nada é tão claro e tão simples quanto uma cifra. (WEIL, p. 44)
Outro fator que promove, ainda que por meio de uma motivação negativa, é a instrução. Segundo a autora:
Pois o segundo fator de desenraizamento é a instrução como é concebida hoje. O Renascimento provocou em toda a parte um corte entre as pessoas cultas e a massa;
[…]
Disso resultou uma cultura que se desenvolveu num meio muito restrito, separado do mundo, numa atmosfera confinada, uma cultura consideravelmente orientada para a técnica e influenciada por ela, muito tingida de pragmatismo,extremamente fragmentada pela especialização, completamente desprovida ao mesmo tempo de contato com este universo e de abertura para o outro mundo.
[…]
O que se chama hoje instruir as massas é pegar essa culmoderna,elaborada num meio tão fechado,tão doentio, ndiferente à verdade,tirar-lhe tudo o que ela ainda possa conter de ouro Puro, operação que se chama vulgarização,e enfornaro resíduotal e qual na memória dos infelizes que desejam aprender, comose enfia comida pela goela de pássaros. Aliás o desejo de aprender por aprender, o desejo de verdade tornou-se raríssimo.O prestígio da cultura tornou-se quase exclusivamente social, tanto para o camponês que sonhater um filho professor primário ou o professor primário que sonhater um filho normalista, quanto para as pessoas da alta sociedade que bajulam ossábios e os escritores famosos. (WEIL, p. 44-46)
REFERÊNCIAS
WEIL, Simone. O Enraizamento. Tradução: Maria Leonor Loureiro. – Bauru, SP: EDUSC, 2001.
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