Fichamento: Cap. Razão Prática e Normatividade em Aristóteles – Enrico BERTI

REFERÊNCIA

BERTI, Enrico. Razão Prática e Normatividade em Aristóteles (In: BERTI, Enrico. Novos Estudos Aristotélicos III – Filosofia Prática. Loyola, 2014).

 


RESUMO

  1. O CONCEITO DE RAZÃO PRÁTICA:

Aristóteles fala de razão prática em dois sentidos bastante diferentes um do outro, correspondentes a duas faculdades da razão, uma das quais tem como sua “virtude”, isto é, sua atividade perfeita a “filosofia prática” propriamente dita, a ética ou, para usar uma expressão aristotélica, a “ciência política”, enquanto a outra tem como sua virtude a φρόνησις, também chamada de sabedoria prática ou prudência. (BERTI, 2014, p.30)

[…]

Em suma, para Aristóteles a expressão “razão prática” indica tanto a capacidade de fazer filosofia prática quanto a capacidade de exercer a sabedoria prática, ou φρόνησις, mas estas duas atividades são claramente diferentes uma da outra. É verdade que elas têm em comum o fato de serem ambas práticas, isto é, de terem por fim não somente a verdade, mas também o bem, além do fato de pressuporem uma certa experiência e não serem, por isso, adequadas aos mais jovens. No entanto, elas se distinguem na medida em que uma é demonstrativa, ainda que apenas no sentido “o mais da vezes”, enquanto a outra é apenas deliberativa; uma é conhecimento universal, enquanto a outra é conhecimento sobretudo particular; uma pressupõe, em certa medida, o conhecimento da natureza humana, isto é, a física, enquanto a outra pressupõe apenas a posse da virtude ética; uma, enfim, argumenta dialeticamente, discutindo as várias opiniões, com o fim de refutá-las, enquanto a outra opera segundo a atitude conaturada ao sujeito e “conatural” ao objeto, de modo mais imediato, quase intuitivo, implicando, com efeito, uma certa emotividade. (BERTI, 2014, p.37)

[…]

A subvaloração dessas diferenças e, sobretudo, a redução da filosofia prática à φρόνησις, corrente tanto no “neoaristotelismo” atual quanto entre os seus críticos, acarretou importantes consequências do ponto de vista filosófico: ele levou, com efeito, a fazer de Aristóteles um conservador, um filósofo preocupado unicamente em justificar ou racionalizar o costume existente, o ηθος da πόλις, e mais precisamente o modo de pensar da classe dirigente, à qual pertenciam os “cavalheiros” capazes de governar a própria cidade, a própria casa e a si mesmos. (BERTI, 2014, p.37)

 


2. A NORMATIVIDADE DA RAZÃO PRÁTICA

Ambas as formas de razão prática, tanto a filosofia prática propriamente dita ou ciência política quanto a φρόνησις, são para Aristóteles normativas , mas isso em sentidos diversos, na medida em que uma indica o fim último de toda a vida, sendo, portanto, normativa no sentido lato, e, dessa forma, sobretudo orientadora, enquanto a outra identifica os meios que conduzem a esse fim, as ações que devem ser realizadas ou evitadas para atingi-lo, sendo, assim, normativas em sentido estrito, e, portanto, propriamente prescritiva. (BERTI, 2014, p.39)

[…]

A prescritividade é aliás exatamente o que distingue a φρόνησις, virtude suprema da parte calculadora, deliberativa, da razão, isto é, da “razão prática”, da σοφία, virtude suprema da parte científica, teórica da “razão teórica”, enfim.

Numa célebre passagem desse mesmo livro da Ética Aristóteles afirma:

“a φρόνησις não é patroa da σοφία, nem da parte melhor [da razão, isto é, da razão teórica], assim como a ciência médica não é da saúde; com efeito, não se serve dela, mas examina de que modo ela pode produzir-se. Em vista dela [isto é, da σοφία], portanto, a φρόνησις  prescreve, não a ela. De outro modo seria como dizer que a política governa sobre os deuses pelo fato de que prescreve sobre tudo o que existe na cidade”. Eth. Nic VI 13, 1145 a 6-11.

Aqui, como é evidente, a normatividade, isto é, a capacidade de prescrever, de comandar, não é considerada o estágio mais alto que pode haver, que é atribuído, em vez disso, à condição de ser fim, de modo que a φρόνησις, justamente enquanto prescreve, é inferior à σοφία, que é o fim em vista do qual a primeira dá suas prescrições, assim como a ciência médica é inferior à saúde, e dá suas prescrições em vista dela. (BERTI, 2014, p.39)

[…]

O que interessa observar é que a razão prática, em ambas as suas formas, isto é, como filosofia prática e como φρόνησις, é para Aristóteles prescritiva, ou normativa, sem deixar de ser conhecimento, respectivamente ciência (ou sabedoria) e virtude dianoética, vale dizer, prudência. Isso pode parecer estar em contraste com a assim chamada “lei de Hume”, formulada pela moderna filosofia analítica aplicada à ética (Moore, Ayer, Hare, entre outros), segundo a qual uma conclusão prescritiva não pode ser deduzida de premissas apenas descritivas, cognitivas.

Mas, à parte, o fato de que esta é justamente uma regra lógica aristotélica, a saber, a regra que interdita, na demonstração, a passagem de um gênero a outro, não é verdade que a normatividade atribuída por Aristóteles à razão prática viola a lei de Hume. Com efeito, o conhecimento implicado na razão prática não é um conhecimento simplesmente empírico, observacional, mas sim um conhecimento racional e, portanto, também valorativo, consistindo na capacidade de conhecer com verdade o bem, de distinguir o bem verdadeiro, ou real, do bem aparente. (BERTI, 2014, p.42)

[…]

A φρόνησις, de seu lado, é certamente cognitiva, no sentido de que sabe calcular exatamente, a partir do fim, quais são os meios mais idôneos para realizá-lo, mediante um raciocínio que, como o próprio Aristóteles observa, se assemelha à análise geométrica*1. Todavia, considerando que em todo o caso ela pressupõe que o fim, do qual se deduzem os meios, é bom, pois de outro modo não haveria mais φρόνησις, isto é, prudência, mas simples δεινότης, vale dizer, astúcia, a premissa maior do raciocínio por ela desenvolvido, o chamado “silogismo prático”, é sempre de caráter prescritivo, de modo que sua conclusão, tomando como base a “lei de Hume”, é igualmente prescritiva, sendo aliás, a própria ação. (BERTI, 2014, p.43)

1* O "silogismo prático" foi estudado sobretudo por G.E.M. Anscombe, Intention, Backwell, Oxferd, 1957.

 

 

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