Ética a Nicômaco – Aristóteles

ARISTÓTELESAristótelesÉtica a NicômacosTradução Mário da Gama KuryBrasília – Distrito FederalEditora Universidade de Brasília1985.


LIVRO I


QUANTO AOS FINS: 1094a

Toda arte e roda indagação, assim como roda ação e todo propósito, visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente l que o bem é aquilo a que todas as coisas visam. Mas nota-se uma certa diversidade entre as finalidades; algumas são atividades, outras são produtos distintos das atividades de que resultam; onde há finalidade distintas das ações, os produtos são por natureza melhores que as atividades. Mas como há muitas atividades, artes e ciências, suas finalidades também são muitas; a finalidade da medicina é a saúde, a da construção naval é a nau, a da estratégia é a vitória, a da economia é a riqueza. Onde, porém, tais artes se subordinam a uma única aptidão - por exemplo, da mesma forma que a produção de rédeas e outras artes relativas a acessórios para a montaria se subordinam à estratégia, de maneira idêntica umas artes se subordinam sucessivamente a outras - as finalidades das artes principais devetn ter precedência sobre todas as finalidades subordinadas; com efeito, é por causa daquelas que estas são perseguidas. Não haverá diferença alguma no caso de as próprias atividades serem as finalidades das ações ou serem algo distinto delas, como ocorre com as artes e ciências mencionadas.
ARISTOTELES(1094a)
QUANTO AOS FINS: 1094bII

Se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que desejamos por si mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se não escolhemos rudo por causa de algo mais (se fosse assim, o processo prosseguiria até o infinito, de tal forma que nosso desejo seria vazio e vão), evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens Não terá então uma grande influência sobre a vida o conhecimento deste bem? Não deveremos, como archeiros que visam a um alvo, ter meiores probabilidades de atingir assim o que nos é mais conveniente? Sendo assim, cumpre-nos tentar determinar, mesmo sumariamente, o que I este bem, e de que ciências ou atividades ele é o objeto. Aparentemente ele é o objeto da ciência mais imperativa e predominante sobre tudo. Parece que ela é a ciência poücica, pois esta determina quais são as demais ciências que devem ser estudadas em uma cidade ', e quais são os cidadãos que devem I094 b aprendê-las, e até que ponto; e vemos que mesmo as atividades tidas na mais alta estima se incluem entre tais ciências, como por exemplo a estratégia, a economia e a retórica. Uma vez que a ciência política usa as ciências restantes e, mais ainda, legisla sobre o que devemos fazer e sobre aquilo de que devemos abster-nos, a finalidade desta ciência inclui necessariamente a finalidade das outras, e então esta finalidade deve ser o bem do homem. Ainda que a finalidade seja a mesma para um homem isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo algo maior e mais completo, seja para a atingirmos, seja para a perseguirmos; embora seja desejável atingir a finalidade apenas para um único homem, é mais nobilitante e mais divino atingi-la para uma nação ou para as cidades. Sendo este o objetivo de nossa investigação, tal investigação é de certo modo o estudo da ciência política. ARISTOTELES (1094bII)
QUANTO À CLAREZA E (IN)EXATIDÃO: 1094bIII

Nessa discussão será adequada se tiver a clareza compatível com o assunto, pois não se pode aspirar à mesma precisão em todas as discussões, da mesma forma que não se pode atingi-la em todas as profissões. As ações boas e justas que a ciência política investiga parecem muito variadas e vagas, a ponto de se poder considerar a sua existência apenas convencional, e não natural. Os bens. parecem igualmente vagos, pois para muitas pessoas eles podem ser até prejudiciais; com efeito, algumas pessoas no passado foram levadas à perdição por sua riqueza, e outras por sua coragem. Falando de tais assuntos e partindo ·de tais premissas, devemos contentar-nos, então, com a apresentação da verdade sob forma rudimentar e sumária; quando falamos de coisas que são verdadeiras apenas em linhas gerais, partindo de premissas do mesmo gênero, não devemos aspirar a conclusões mais precisas. Cada tipo de afirmação, portanto, deve ser aceito dentro dos mesmos pressupostos; os homens instruídos se caracterizam por buscar a precisão em cada classe de coisas somente até onde a natureza do assunto permite, da mesma forma que é insensato aceitar raciocínios apenas prováveis de um matemático e exigir de um orador demonstrações rigorosas. (ARISTOTELES, 1094bIII)
 

LIVRO II


QUANTO À CLAREZA E (IN)EXATIDÃO: 1104a

Sendo assim, já que a presente investigação não visa, como outras, ao conhecimento teórico (não estamos investigando apenas para conhecer o que é a excelência moral, e sim para nos tornarmos bons, pois se não fosse assim nossa investigação viria a ser inútil), cumpre-nos examinar a natureza das ações, ou seja, como devemos praticá-las; com efeito, as ações determinam igualmente a natureza das disposições morais que irão criar-se, como já dissemos. "Agir de acordo com a reta razão'" é um princípio geral e deve ser presumido (posteriormente ~9 discutiremos o assunto, isto é, o que vem a ser a reta razão, e como ela se relaciona com as outras formas de excelência). Mas deve haver um consenso prévio quanto a isto, para que cada a teoria da conduta possa ser explicada em linhas gerais, e não de maneira precisa, de acordo com a regra estabelecida desde o princípio desta investigação 40, ou seja, a elaboração das teorias deve apenas corresponder ao seu conteúdo; as matérias relativas à conduta e ao que nos convém, nada têm de fixo, como nada têm de fixo as relativas à saúde. Ora: se isto acontece com a exposição em geral, o exame dos casos particulares é ainda mais avesso à exatidão; tais casos não se enquadram em qualquer arte ou preceito, pois as próprias pessoas engajadas na ação devem considerar em cada caso o que é adequado à ocasião, como também acontece na arte da medicina ou na arte da navegação. ARISTOTELES (1104a)
QUANTO À RELAÇÃO COM A DOUTRINA DO MEIO TERMO: 1104b

Mas embora o nosso assunto seja de natureza imprecisa, façamos o possível para facilitar-lhe a compreensão. Consideremos primeiro, então, que a excelência moral é constituída, por natureza, de modo a ser destituída pela deficiência e pelo excesso, tal como vemos acontecer com o vigor e a saúde (temos de explicar o invisível recorrendo à evidência do visível); os exercícios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor, e de maneira idêntica as bebidas e os alimentos de mais ou de menos destroem a saúde, ao passo que seu uso em proporções adequadas produz, aumenta e conserva aquele e esta. Acontece o mesmo com a moderação, a coragem e outras formas de excelência moral. O homem que evita e teme tudo e não enfrenta coisa alguma torna-se um covarde; em contra1te, o homem que nada teme e enfrenta tudo torna-se temerário; da mesma forma, o homem que se entrega a todos os prazeres e não se abst1:·m de qualquer deles torna-se concupiscente, enquanto o homem que evita todos os prazeres, como acontece com os rústicos, torna-se de certo modo insensível; a moderação e a coragem, portanto, são destruídas pela deficiência e pelo excesso, e preservadas pelo meio termo. ARISTOTELES (1104b)

LIVRO III


QUANTO À CARACTERIZAÇÃO DO QUE É ESCOLHA: 1111b
Tendo definido o voluntário e o involuntário, devemos examinar em seguida a escolha; esta, com efeito, parece relacionar-se intimamente com a excelência moral, e proporciona um juízo mais seguro sobre o caráter do que sobre as ações.
A escolha, então, parece voluntária, mas não é a mesma coisa que o voluntário, pois o âmbito deste é mais amplo. De fato, tanto as crianças quanto os animais inferiores são capazes de ações voluntárias, mas não de escolha. Também definimos os atos repentinos como voluntários, mas não como o resultado de uma escolha. 
Aqueles que identificam a escolha com o desejo, ou a paixão, ou a aspiração, ou uma espécie de opinião, não parecem estar falando acertadamente, pois a escolha não é partilhada também pelos seres irracionais, mas a paixão e o desejo são. Ademais, as pessoas incontinentes agem movidas pelo desejo, mas não pela escolha; as dotadas de continência, ao contrário, agem por escolha, mas não por desejo; além disto, o desejo é contrário à escolha, mas o desejo não é contrário ao próprio desejo; mais ainda: o desejo se relaciona com o agradável e o penoso, mas a escolha não se relaciona nem com o penoso, nem com o agradável. A escolha se identifica ainda menos com a paixão, pois os atos motivados pela paixão são provavelmente menos passíveis de escolha que quaisquer outros. ARISTOTELES(1111b10)
QUANTO À CARACTERIZAÇÃO DO QUE É ESCOLHA: 1112a
Que é a escolha, ou que espécie de manifestação da alma ela é, já que não é qualquer das manifestações recém-mencionadas? Aparentemente ela é voluntária, mas nem tudo que é voluntário é objeto de escolha. Será ela, então, aquilo que é precedido pela deliberação? Seja como for, a escolha requer o uso da razão e do pensamento. Seu próprio nome, aliás, parece sugerir que ela é aquilo que é escolhido de preferência a outras coisas. ARISTOTELES(1112a13)
QUANTO ÀQUILO QUE NÃO É OBJETO DE DELIBERAÇÃO: 1112aIII
3. Será que deliberamos acerca de tudo, e tudo é um possível objeto de deliberação, ou a deliberação é· impossível acerca de certas coisas? É de presumir-se que devemos chamar de objetos de deliberação não os assuntos sobre os quais um insensato ou um louco deliberaria, mas aqueles sobre os quais deliberaria um homem sensato. Ora: ninguém delibera sobre coisas eternas - por exemplo, sobre o universo ou sobre a incomensurabilidade da diagonal e do lado de um quadrado; tampouco deliberaríamos sobre corpos em movimento mas que se movimentam sempre de maneira idêntica, seja por necessidade, ou por natureza, ou por qualquer outra causa- por exemplo, os solstícios e a posição dos astros nem sobre fenômenos que ora ocorrem de uma maneira, ora de outra por exemplo, secas e chuvas -, nem sobre eventos fortuitos, como a descoberta de um tesouro; não deliberamos sequer sobre todos os assuntos que interessam aos homens - por exemplo, nenhum espartano delibera sobre a melhor constituição para os citas, pois coisa nenhuma deste gênero pode ser influenciada por nossos próprios esforços. ARISTOTELES(1112aIII)
QUANTO SOBRE O QUE DELIBERAMOS: 1112b
Deliberamos sobre coisas que estão ao nosso alcance e podem ser feitas, e são estas as que ainda estão por ser examinadas. Com efeito, pensa-se que a natureza, a necessidade e o acaso são causas, da mesma forma que a razão e tudo que depende do homem. Mas cada classe de homens delibera sobre coisas que podem ser feitas graças aos seus próprios esforços.No caso das ciências exatas e autônomas não há deliberação -por exemplo, sobre as letras do alfabeto (não temos dúvidas sobre a maneira de escrevê-las); mas as coisas influenciáveis por nossas ações, porém nem sempre de maneira idêntica, são aquelas. sobre as quais deliberamos - por exemplo, questões relativas ao tratamento médico ou ao enriquecimento.

QUANTO ÀQUILO QUE É OBJETO DE DELIBERAÇÃO (MEIOS E FINS): 1113a
Deliberamos não sobre fins, mas sobre meios, pois um médico não delibera para saber se deve curar, nem um orador para saber se deve convencer, nem um estadista para saber se deve assegurar a concórdia, nem qualquer outra pessoa delibera sobre a própria finalidade de sua atividade. Definida a finalidade, as pessoas procuram saber como e por que meios tal finalidade deve ser alcançada; se lhes parece que ela é resultante de vários meios, as pessoas procuram saber por que meio podem alcançá-la mais facilmente e realizá-la melhor; se é possível chegar a ela por um único meio, as pessoas procuram saber como ela poderá ser realizada por este meio,- e por que meios este meio-será alcançado, até chegarem à primeira causa, que é a última na ordem de descoberta. De fato, a pessoa que delibera parece investigar e analisar da maneira descrita, como se estivesse analisando uma figura geométrica (nem toda investigação parece ser uma deliberação - por exemplo, as investigações matemáticas não o são- mas toda deliberação é uma investigação), e o último passo na análise parece ser o primeiro passo na execução. ARISTOTELES (1113a)
QUANTO ÀQUILO QUE É OBJETO DE DELIBERAÇÃO (MEIOS E FINS): 1113a
Se a chegamos a uma impossibilidade, abandonamos a busca - por exemplo, se temos necessidade de dinheiro e não o obtemos; mas se uma coisa parece possível, tentamos realizá-la. Por "coisas possíveis"' quero significar coisas que podem ser realizadas graças aos nossos próprios esforços, e estas incluem em certo sentido coisas que podem ser realizadas graças aos esforços de nossos amigos, desde que a origem da ação esteja em nós mesmos. A investigação às vezes é sobre os instrumentos e às vezes sobre o seu uso; o mesmo acontece em outras esferas - às vezes temos de investigar os meios, às vezes o modo de usá-los ou os modos de realizá-los. Parece então, como dissemos, que o homem é a origem de suas ações; a deliberação é acerca das coisas a serem feitas pelo próprio agente, e as ações são executadas com vistas a coisas diferentes delas. Efetivamente, a finalidade não pode ser objeto de deliberação, mas somente os meios; tampouco os fatos particulares podem ser seu objeto - por exemplo, se isto é pão ou foi cozido ao forno como devia, pois estas são matérias de percepção, e se não nos detivermos em certo ponto da deliberação iremos até o infinito.  ARISTOTELES (1113a)
QUANTO AO OBJETO DA DELIBERAÇÃO: 1113a
O objeto da deliberação e o objeto da escolha são uma só e a mesma coisa, com a ressalva de que o objeto da escolha já está determinado, uma vez que aquilo que foi decidido em decorrência da deliberação é o objeto da escolha. De fato, o homem para de perguntar-se como deve agir logo que traz de volta a origem da ação a si mesmo e à parte dominante n de si mesmo, pois é esta parte dominante que escolhe. Isto pode ser ilustrado pelas antigas constituições que Homero mostra em seus poemas, pois os reis anunciavam ao povo as medidas por eles escolhidas Então, como o objeto da escolha é algo ao nosso alcance, que desejamos após deliberar, a escolha será um desejo deliberado de coisas ao . nosso alcance, pois quando, após a deliberação, chegamos a um juízo de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa deliberação. Demos então por descrita a escolha em suas linhas gerais, e por expostos a natureza de seus objetivos e o fato de que ela se relaciona com os meios para chegarmos aos fins. ARISTOTELES (1113a)
QUANTO AO AGIR E NÃO AGIR: 1113b
Sendo os fins, então, aquilo a que nós aspiramos, e os meios aquilo sobre que deliberamos e que escolhemos, as ações relativas aos meios devem estar de acordo com a escolha e ser voluntárias. Ora: o exercício da excelência moral se relaciona com os meios; logo, a excelência moral também está ao nosso alcance, da mesma forma que a deficiência moral. Com efeito, onde está ao nosso alcance agir, também está ano nosso alcance não agir, e onde somos capazes de dizer ..não'', também somos capazes de dizer "sim"; consequentemente, se agir, quando agir é nobilitante, está ao nosso alcance, não agir, que será ignóbil, também estará ao nosso alcance, e se não agir, quando não agir é nobilitante, está ao nosso alcance, agir, que será ignóbil, também estará ao nosso alcance. Se está ao nosso alcance, então, praticar atos nobilitantes ou ignóbeis, e se isto era o que significava ser bom ou mau ", está igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou deficientes. ARISTOTELES (1113bcap. 5)

LIVRO IV


Sobre a dificuldade de se estabelecer regras gerais e de que a decisão depende do julgamento dos casos particulares a partir da percepção do agente: ARISTOTELES, 1126b

Não é fácil determinar com palavras até que ponto e como uma pessoa pode desviar-se antes de tornar-se censurável, pois a decisão depende dos fatos particulares e o julgamento depende da percepção de cada um. Mas pelo menos uma coisa já é clara quanto a isto: o meio termo é louvável, e é graças a ele que nos encolerizamos com as pessoas certas, pelas coisas certas, da maneira certa, etc., enquanto os excessos e faltas são censuráveis - ligeiramente, se ocorrem em pequena escala, mais, se ocorrem em escala maior, e muito mais se ocorrem numa escala extrema. É evidente, então, que devemos . adotar o meio termo. Estas considerações sobre as disposições da alma relacionadas com a cólera são suficientes. (ARISTOTELES, 1126b)

LIVRO V


Cada uma das regras de justiça e das regras leis se relaciona com as ações da mesma forma que o universal se relaciona com seus casos particulares, pois as ações praticadas são muitas, enquanto cada regra ou lei é uma, já que é universal. (ARISTOTELES, 1135a9)

 

O EQUITATIVO E A RÉGUA DE CHUMBO DE LESBOS: 1137b
São estas, então, pouco mais ou menos, as considerações que estão na origem do problema relativo ao eqüitativo. Todas elas são em certo sentido corretas e não se contradizem, pois o eqüitativo, embora seja melhor que uma simples espécie de justiça, é em si mesmo justo, e não é por ser especificamente diferente da justiça que ele é melhor do que o justo. A justiça e a eqüidade são portanto a mesma coisa, embora a eqüidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o eqüitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente desta circunstância. E nem por isto a lei é menos correta, pois a falha não é da lei ·nem do legislador, e sim da natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente; e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. ~or isto o eqüitativo é justo, e melhor que uma simples espécie de justiça, embora não seja melhor que a justiça irrestrita (mas é melhor que o erro oriundo da natureza irrestrita de seus ditames). Então o eqüitativo é, por sua natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sUa. generalidade. De fato, a lei não prevê todas as situações porque é impossível estabelecer uma lei a propósito de algumas delas, de tal forma que às vezes se torna necessário recorrer a um decreto. Com efeito, quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida, como acontece com a régua de chumbo .usada pelos construtores em Lesbos; a régua se adapta à forma da pedra e não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica. ARISTOTELES (1137bX12)

 


LIVRO VI


QUANTO AO OBJETO DA DELIBERAÇÃO: 1140aV12
Consequentemente, no sentido mais geral a pessoa capaz de bem deliberar é dotada de discernimento. Mas ninguém delibera acerca das coisas invariáveis, nem acerca de ações que não podem ser praticadas. 
Portanto, uma vez que o conhecimento científico envolve demonstração, mas não pode haver demonstração de coisas cujos primeiros princípios são variáveis, porque tudo nelas é variável, e porque é impossível deliberar acerca de coisas que são como são por necessidade, o discernimento não pode ser· conhecimento científico nem arte; ele não pode ser ciência porque aquilo que se refere às ações admite variações, nem arte, porque agir e fazer são coisas de espécies diferentes. 
A alternativa restante, então, é que ele é uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas com as coisas boas ou más para os seres humanos. De fato, enquanto fazer tem uma finalidade diferente do próprio ato de fazer, a finalidade na ação não pode ser senão a própria ação, pois agir é uma finalidade em si. ARISTOTELES (1140aV12)
QUANTO AO OBJETO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO: 1141a
O conhecimento científico é o julgamento acerca de coisas universais e necessárias, e as verdades demonstradas e todo conhecimento científico (o conhecimento científico envolve raciocínio) são derivados dos primeiros princípios. Sendo assim, o primeiro princípio do qual deriva o que é cientificamente conhecido não pode ser um objeto do conhecimento científico, nem da arte, nem do discernimento, pois aquilo que pode ser cientificamente conhecido pode ser demonstrado, e a arte e o discernimento tratam de coisas variáveis. Estes primeiros princípios não são tampouco objetos da sabedoria filosófica, pois é uma característica do filósofo chegar a certas coisas através da demonstração. ARISTOTELES (1140bVI) 
Se, então, as disposições da alma que nos permitem atingir a verdade e que nunca nos enganam a propósito das coisas invariáveis, ou mesmo das a variáveis, são o conhecimento científico, o discernimento, a sabedoria filosófica e a inteligência, e se a disposição da alma que nos permite apreender os primeiros princípios não pode ser qualquer das outras três . (isto é, discernimento, conhecimento científico e sabedoria filosófica), a alternativa restante é que os primeiros princípios são apreendidos pela inteligência. ARISTOTELES (1141a)
QUANTO À FORMAÇÃO DAS PREMISSAS: 1141b
O discernimento, por outro lado, relaciona-se com as ações humanas e coisas acerca das quais é possível deliberar; de fato, dizemos que deliberar bem é acima de tudo a função das pessoas de discernimento, mas ninguém delibera a respeito de coisas invariáveis, ou de coisas cuja finalidade não seja um bem que possamos atingir mediante a ação. As pessoas boas de um modo geral são as capazes de __visar calculadamente ao que há de melhor para as criaturas humanas nas coisas passíveis de ser atingidas mediante a ação. Tampouco o discernimento se relaciona somente com os universais; ele deve também levar em conta os particulares, pois o discernimento é prático e a prática se relaciona com os particulares. É por isto que as pessoas ignorantes são às vezes mais práticas do que as outras que sabem, pois se uma pessoa soubesse que os alimentos leves são mais facilmente digeríveis e portanto saudáveis, mas não soubesse quais as espécies de alimentos mais leves, não seria provavelmente capaz de restaurar a saúde; por outro lado, é provável que uma pessoa ciente de que a galinha é um alimento leve restaure a saúde. O discernimento se relaciona também com a ação, de tal modo que as pessoas devem possuir ambas as suas formas, ou melhor, mais conhecimento dos fatos particulares do que conhecimento dos universais. ARISTOTELES (1141b)
Por outro lado, todas as ações que devemos praticar estão incluídas entre os fatos particulares e fundamentais, pois não somente as pessoas dotadas de discernimento devem conhecer os fatos particulares, como o entendimento e o julgamento também se relacionam com ações a ser praticadas, e estas são fatos fundamentais. E a inteligência se relaciona com o fundamental em ambas as direções, pois tanto as definições primárias quanto os fatos fundamentais são apreendidos pela inteligência e não se chega a eles pelo raciocínio; nas demonstrações a inteligência apreende as definições imutáveis e primárias, e nos raciocínios práticos ela apreende os fatos fundamentais e variáveis, ou seja, a premissa menor, já que os fatos fundamentais e variáveis são os pontos iniciais a partir dos quais inferimos as finalidades, porquanto chegamos aos universais a partir dos particulares; devemos, todavia, ter a percepção destes, e esta percepção é a inteligência. Por isto a inteligência é ao mesmo tempo princípio e fim, já que as demonstrações se fazem a partir destes e acerca destes. ARISTOTELES (1143b)

LIVRO VII


QUANTO À CONDUTA E AS PREMISSAS: 1147a
Ademais, já que há duas espécies de premissas quando se trata da conduta, nada impede uma pessoa de agir contra o conhecimento quando ela conhece ambas as premissas, mas está exercitando seu conhecimento da premissa universal e não da particular, pois a ação se relaciona com fatos particulares. Além disso, há uma distinção a respeito da premissa universal: um dos universais é predicado do próprio agente e o outro é predicado da coisa {por exemplo, a pessoa pode conhecer e estar cônscia do conhecimento de que certo alimento seco é bom para todos os homens e de que ela mesma é um homem, ou até de que um alimento de certa espécie é seco, mas ou a pessoa não possui ou não está exercitando o conhecimento da circunstância de aquele alimento que está diante dela ser um alimento daquela espécie). Evidentemente haverá uma enorme diferença entre estas maneiras de conhecer, de tal forma que conhecer de certa maneira quando se age sem continência não pareceria estranho de forma alguma, ao passo que conhecer de outra maneira quando se age sem continência seria motivo para admiração. ARISTOTELES (1147a)
QUANTO AO CONFLITO ENTRE O AGIR E AS EMOÇÕES E O DESEJO: 1147b
Além disto, podemos também examinar as causas da incontinência como faria um estudioso da natureza. No silogismo uma premissa é universal e a outra se relaciona com fatos particulares, e a propósito desta última entramos na esfera da percepção; quando as duas premissas se combinam numa conclusão única, em um dos casos'19 a alma deve afirmar a conclusão, ao passo que no caso das premissas de ordem prática se deve agir imediatamente (por exemplo, dadas as premissas "tudo que é doce deve ser provado" e "aquilo é doce" - esta última é um exemplo particular da classe geral-, a pessoa capaz de agir e que não é impedida de fazê-lo deve provar imediatamente a coisa doce). 
Portanto, quando estão presentes em nós de um lado um conceito universal proibindo-nos de provar, e de outro lado outro conceito universal dizendo que "tudo que é doce é agradável", além de uma premissa menor dizendo que "aquilo é doce" (e esta premissa menor é ativa 190), e quando está presente ao mesmo tempo o desejo, então embora o primeiro julgamento universal diga "'evite aquela coisa" somos levadas para aquela coisa pelo desejo, que pode mover cada uma das partes de nosso corpo. Acontece que, quando as pessoas são deficientes em termos de continência, elas agem sob a influência de uma razão (em certo sentido) e de uma opinião não contrárias à reta razão em si mesmas, mas apenas acidentalmente (o desejo é que é contrário, e não a opinião). Segue-se também que não se pode dizer que falta continência aos animais irr•cionais porque eles não podem formar conceitos universais, mas apenas imagens mentais e lembranças dos fatos. [...] Mas, uma vez que a última premissa, que origina a ação, é uma opinião sobre um objeto perceptível, e é esta opinião que uma pessoa incontinente, quando sob o domínio da emoção, não possui ou somente possui de um modo que, como vimos, não chega a ser conhecimento, mas somente leva a pessoa a repeti-la da mesma forma que um ébrio repete os versos de Empédocles, e uma vez que a premissa extrema não é um universal, e não é considerada um objeto de conhecimento científico a exemplo do que acontece com uma premissa universal, parece que somos levados a aceitar a conclusão que Sócrates procurou firmar; com efeito, o conhecimento presente no momento em que ocorreu a emoção não é aquele que se considera o conhecimento propriamente dito; não é tampouco o conhecimento propriamente dito que é arrastado pela emoção, e sim o conhecimento resultante da percepção pelos sentidos. ARISTOTELES (1147b) ver: EN VII 3, 1147a24–b3

 

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