Eudaimonismo Aristotélico

1. Quanto ao que deve ser almejado é a finalidade que desejamos por si mesma e de que é por causa desta que escolhemos todas as demais

A FELICIDADE COMO CAUSA/PRINCÍPIO PRIMÁRIO AUTOSSUFICIENTE

Se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que desejamos por si mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se não escolhemos tudo por causa de algo mais (se fosse assim, o processo prosseguiria até o infinito, de tal forma que nosso desejo seria vazio e vão), evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens Não terá então uma grande influência sobre a vida o conhecimento deste bem? Não deveremos, como archeiros que visam a um alvo, ter maiores probabilidades de atingir assim o que nos é mais conveniente? Sendo assim, cumpre-nos tentar determinar, mesmo sumariamente, o que I este bem, e de que ciências ou atividades ele é o objeto.

(Aristóteles, 1985, 1094a-2, 18-27)

2. Sobre o que é este objeto que é a raiz dos desejos, que é a felicidade:

O QUE É FELICIDADE

Retomando nossa investigação, e diante do fato de todo conhecimento e todo propósito visarem a algum bem, falemos daquilo que consideramos a finalidade da ciência política, e do mais alto de todos os bens a que pode levar a ação. Em palavras, o acordo quanto a este ponto é quase geral; tanto a maioria dos homens quanto as pessoas mais qualificadas dizem que este bem supremo é a felicidade, e consideram que viver bem e ir bem equivale a ser feliz; quanto ao que é realmente a felicidade, há divergências, e a maioria das pessoas não sustenta opinião idêntica à dos sábios. A maioria pensa que se trata de algo simples e óbvio, como o prazer, a riqueza ou as honrarias; mas até as pessoas componentes da maioria divergem entre si, e muitas vezes a mesma pessoa identifica o bem com coisas diferentes, dependendo das circunstâncias -com a saúde, quando ela está doente, e com a riqueza quando empobrece; cônscias, porém, de sua ignorância, elas admiram aqueles que propõem alguma coisa grandiosa e acima de sua compreensão. Há quem pense 6 que além destes muitos bens há um outro, bom por si mesmo, e que também é a causa de todos os outros. Seria talvez infrutífero, de certo modo, examinar todas as opiniões sustentadas a este respeito; bastará examinar as mais difundidas ou as aparentemente mais razoáveis.

(Aristóteles, 1985, 1095a-4)

3. Os 3 tipos de vida: agradável, política e contemplativa.

OS 3 TIPOS DE VIDA
  1. Agradável : prazer (maioria / vulgar)
  2. Política : honrarias (superficial / depende de outros)
  3. Contemplativa : deve ser algo que pertence ao possuidor e que não pode ser facilmente tirada.

Mas retomemos nossa discussão a partir do ponto em que iniciamos esta digressão. Se formos julgar pela vida dos homens, estes, em sua maioria, e os mais vulgares entre eles, parecem (não sem algum fundamento) identificar o bem, ou a felicidade, com o prazer. É por isto que eles apreciam a vida agradável. Podemos dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: o que acabamos de mencionar, o tipo de vida política, e o terceiro é a vida contemplativa.

[…]

A humanidade em massa se assemelha totalmente aos escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais, mas ela vai buscar algumas razões em apoio ao seu ponto de vista no fato de muitos homens alçados a elevadas funções de governo compartilharem dos gostos de Sardanapalos.

Um exame dos tipos principais de vida demonstra que as pessoas mais qualificadas e atuantes identificam a felicidade com as honrarias, pois pode-se dizer que estas são o objetivo da vida politica. Mas isto parece muito superficial para ser o que estamos procurando, pois se considera que as honrarias dependem mais daqueles que as concedem que daqueles que as recebem, ao passo que intuímos que o bem é algo pertencente ao seu possuidor e que não lhe pode ser facilmente tirado.

(Aristóteles, 1985, 1095b-4)

4. De que deve ser entendido primeiramente o bem superior à todos outros:

Talvez seja melhor examinar o bem universal e discutir exaustivamente o seu significado, embora tal investigação se torne penosa pelo fato de as Formas terem sido introduzidos na filosofia por um amigo. De qualquer modo talvez pareça melhor, e de fato seria até uma obrigação, especialmente para um filósofo, sacrificar até as relações pessoais mais estreitas em defesa da verdade; efetivamente, ambas nos são caras, mas o dever nos leva a dar a primazia à verdade.

(Aristóteles, 1985, 1096a-6)

5. De que o bem não é uma generalidade correspondente à uma única Forma:

É óbvio, então, que se deve falar dos bens de duas maneiras, e alguns devem ser bons em si e outros em função destes. Separemos, portanto, as coisas boas em si das coisas úteis, e vejamos se as primeiras são chamadas boas com referência a uma única Forma. Que espécie de bens chamaríamos de bons em si? Seriam aqueles perseguidos mesmo quando isolados de outros, como a inteligência, o sentido da visão e cerros prazeres e honrarias? Mesmo se os perseguíssemos também por causa de algo mais certamente os colocaríamos entre as coisas boas em si. Ou nada além da Forma do bem é bom em si? Neste caso a Forma seria inútil. Mas se as coisas mencionadas são também coisas boas em si, a noção do bem apareceria como algo idêntico em todas elas, da mesma forma que a noção da brancura é idêntica na neve e numa tinta branca. Mas em relação a honrarias, inteligência e prazer em sua qualidade de coisas boas, as noções são distintas e diferentes. O bem, portanto, não é uma generalidade correspondente a uma Forma única.

(Aristóteles, 1985, 1096b, 17-31)

6. Da relação entre o bem universal e os bens atingíveis e praticáveis

Mas como entendemos o bem? Ele não é certamente semelhante às coisas que somente por acaso têm o mesmo nome. São os bens uma coisa só, então, por serem derivados de um único bem, ou por contribuírem todos para um único bem, ou eles são uma única coisa apenas por analogia? Certamente, da mesma forma que a visão é boa no corpo a razão é boa na alma, e identicamente em outros casos. Mas talvez seja melhor deixar de lado estes tópicos por enquanto, pois um exame detalhado dos mesmos seria mais apropriado em outro ramo da filosofia. Acontece o mesmo em relação à Forma do bem; ainda que haja um bem único que seja um predicado universal dos bens, ou capaz de existir separada e independentemente, tal bem não poderia obviamente ser praticado ou atingido pelo homem, e agora estamos procurando algo atingível. Talvez alguém possa pensar que vale a pena ter conhecimento deste bem, com vistas aos bens atingíveis e praticáveis; com efeito, usando-o como uma espécie de protótipo, conheceremos melhor os bens que são bons para nós e, conhecendo-os, poderemos atingi-los.

(Aristóteles, 1985, 1097a, 1-16)


Voltemos agora ao bem que estamos procurando, e vejamos qual a sua natureza. Em uma atividade ou arte ele tem uma aparência, e em outros casos outras. Ele é diferente em medicina, em estratégia, e o mesmo acontece nas artes restantes. Que é então o bem em cada uma delas? Será ele a causa de tudo que se faz? Na medicina ele é a saúde, na estratégia é a vitória, na arquitetura é a casa, e assim por diante em qualquer outra esfera de atividade, ou seja, o fim visado em cada ação e propósito, pois é por causa dele que os homens fazem tudo mais. Se há portanto um fim visado· em tudo que fazemos, este fim é o bem atingível pela atividade, e se há mais de um, estes são os bens atingíveis pela atividade. […]

Já que há evidentemente mais de uma finalidade, e escolhemos algumas delas (por exemplo, a riqueza, flautas ou instrumentos musicais em geral) por causa de algo mais, obviamente nem todas elas são finais; mas o bem supremo é evidentemente final. […]

(Aristóteles, 1985, 1097a-7)

Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mesma.

 


Uma conclusão idêntica parece resultar da noção de que a felicidade é autossuficiente. […]  “autossuficiente” pode ser definido como aquilo que, em si, torna a vida desejável por não ser carente de coisa alguma, e isto em nossa opinião é a felicidade; ademais, julgamos a mais desejável de todas as coisas não uma coisa considerada boa em correlação com outras – se fosse assim ela se tornaria obviamente mais desejável mediante a adição até do menor dos bens, pois esta adição resultaria em um bem total maior, e em termos de bens o maior é sempre mais desejável. Logo, a felicidade é algo final e autossuficiente, e é o fim a que visam as ações. 

(Aristóteles, 1985, 1097b-7)


Mas dizer que a felicidade é o bem supremo parece um truísmo, e necessitamos de uma explicação ainda mais clara quanto ao que ela é.

(Aristóteles, 1985, 1097b-7, 18-20)


Os bens são divididos em três classes, e alguns deles são descritos como exteriores, enquanto outros o são como pertinentes à alma ou ao corpo.

Outra noção que se harmoniza com nossa opinião é a de que o homem feliz vive bem e se conduz bem, pois praticamente definimos a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem. (1098b-8)

(Aristóteles, 1985, 1098b-8, 6-9)


A felicidade enquanto atividade da alma conforme excelência

Nossa definição é condizente com a opinião dos que identificam a felicidade com a excelência ou com alguma forma de excelência, pois a felicidade é a atividade conforme à excelência. Realmente, não é pequena a diferença entre a concepção do bem supremo como posse ou exercício, de um lado, ou como estado de espírito ou atividade do outro, pois pode existir o estado de espírito sem que ele produza qualquer resultado bom, como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por outra razão, mas não pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme à excelência; de qualquer maneira ela se manifestará, e bem. Da mesma forma que nos jogos Olímpicos os coroados não são os homens mais forces e belos, e sim os que competem (alguns desces serão os vitoriosos), quem age conquista, e justamente, as coisas boas da vida. 

A vida de atividade conforme à excelência é agradável em si, pois o prazer é uma disposição da alma, e o agradável para cada pessoa é aquilo que se costuma dizer que ela ama; por exemplo, um cavalo dá prazer a um apreciador de cavalos, um bom espetáculo a um apreciador de teatro, do mesmo modo que atos justos são agradáveis a quem ama a justiça e, de um modo geral, atos caracterizados pela excelência dão prazer a quem ama a excelência.

(Aristóteles, 1985, 1099a)


Então a felicidade é o melhor, mais belo e mais agradável dos bens, e estes atributos não devem estar separados, como na inscrição existente em Delos:

“Mais bela é a justiça, e melhor a saúde; mais agradável é possuir o que amamos.”

Mas evidentemente, como já dissemos, a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios.

(Aristóteles, 1985, 1099b)

 


Sobre como podemos ser felizes:

É por esta razão que se pergunta se podemos aprender a ser felizes, ou se podemos ser felizes graças ao hábito ou a algum tipo de exercício, ou então à providência divina, ou finalmente graças à sorte.

Resposta: A resposta à questão que estamos levantando aparece claramente diante de nossa definição da felicidade, pois já dissemos ” que ela é uma certa atividade da alma conforme à excelência

(Aristóteles, 1985, 1099b-9)


Sobre quando devemos considerar um indivíduo feliz:

Não se deve então chamar homem algum de feliz enquanto ele estiver vivo? Devemos, como disse Sólon, “ver o fim”? Ainda que devamos adotar esta doutrina, pode um homem ser realmente feliz depois de morro? Não é isto um absurdo total, especialmente para nós, que definimos a felicidade como uma atividade?

(Aristóteles, 1985, 1100a)

[…] 

Resposta: Mas devemos voltar à nossa primeira dificuldade, pois talvez através de um exame da mesma nosso problema possa ser resolvido. Se tivermos de ver o fim para só então poder congratular-nos com um homem por sua bem-aventurança, mas não por passar afinal a ser bem-aventurado, e sim por tê-lo sido antes, certamente será paradoxal que, no momento exato err.. que ele se torna feliz, o fato não lhe possa ser atribuído, porque não nos dispomos a chamar os vivos de felizes em face das mudanças da sorte, e porque a felicidade, em nossa opinião, é algo permanente e não facilmente sujeito a mudanças, enquanto a roda da fortuna pode muitas vezes dar uma reviravolta completa em relação ao mesmo homem.

[…]

O sucesso ou fracasso na vida não depende dos favores da fortuna, mas a vida humana, como dissemos, também deve contar com eles; na realidade, são nossas atividades conformes à excelência que nos levam à felicidade, e as atividades contrárias nos levam à situação oposta.

(Aristóteles, 1985, 1100b)


 

Por que não diríamos, então, que é feliz o homem ativo de conformidade com a excelência perfeita e suficientemente aquinhoado _ com bens exteriores, não por um lapso de tempo qualquer, mas por toda a vida? Ou deveríamos acrescentar "e que é feito para viver assim e morrer de maneira compatível com a vida que levou?" Com efeito, o futuro é obscuro para nós, enquanto concebemos a felicidade como uma finalidade, e autossuficiente. Sendo assim, devemos declarar supinamente felizes as pessoas vivas que preencham os requisitos mencionados e sejam feitas para continuar a preenchê-los, mas tudo dentro das limitações da condição humana.

(Aristóteles, 1985, 1101a)


Conclusões:

Creio que pode-se entender que o eudaimonismo defende uma ideia de hedonismo particularista, no sentido de que existe divergência sobre o que é bom para cada um, tal como alega Moore, mas não nega que estas é que constituem o que Aristóteles chama de bens tangíveis e praticáveis pela atividade da alma, porém, sempre em vista à um bem supremo, universal, que é a felicidade (que se constitui na atividade da alma que busca os bens tangíveis e praticáveis com vistas à felicidade). É tal como na deliberação meios-fim: na premissa particular temos os bens tangíveis e particulares, e na premissa universal o propósito, a felicidade (tomando a premissa universal está de acordo com Moore, pois é alcançada pela razão intuitiva).

 

Outro ponto importante tem relação à independência da felicidade às mudanças da sorte (é a atividade da alma em si e não o que ela produz: boa sorte, ou deixa de produzir: infortúnio) ; a felicidade enquanto atividade da alma é um estado permanente, presente e não algo para se avaliar "ao fim da vida" (depois de morte) - exemplo o neurocientista que a qualquer momento pode apagar seu cérebro.

 

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