FILOSOFIA MODERNA I : 2019-2
GRAU A
Ubirajara Theodoro Schier
4. Descartes: Meditações Metafísicas
4- Descartes também se destacou por ser um representante da denominada filosofia racionalista. Desenvolva os princípios básicos da metafísica de Descartes, suas noções de ideia, substância, indivíduo, etc. Explique as implicações destes conceitos para sua teoria do conhecimento e para antropologia. Ao longo de sua reflexão faça citações textuais da obra “Meditações filosóficas” que indiquem a pertinência das mesmas.
Conceitos metafísicos de Descartes:
[1] “Das coisas que se podem colocar em dúvida” (Meditação Primeira)
“Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.” (D., M. Metafísicas I, p.12)
Comentário: Descartes parte do princípio que ao se estabelecer um procedimento que tem como propósito buscar a verdade, é preciso necessariamente colocar todas as coisas em dúvida, submetê-las ao método, para então extrair as verdades indubitáveis.
[1.1] A realidade enganosa dos sentidos
“Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
Mas, ainda que os sentido nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus?” (D., M. Metafísicas I, p.12)
Comentário: Descartes ressalta à necessidade de se avaliar àquilo que se obtêm por meio dos sentidos na busca da verdade, pois estes as vezes nos enganam, e as vezes não.
[1.2] A realidade enganosa dos sonhos
“Todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes.” (D., M. Metafísicas I, p.13)
Comentário: Descartes coloca em dúvida a realidade, no sentido de que não há meios para se determinar se algo é real ou se algo é apenas um sonho. Entretanto, os objetos, ainda que percebidos através do sonhos, são representações de algo real existentes em alguma realidade.
[1.3] A realidade enganosa da imaginação
“Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com o maior artifício em representar sereias e sátiros por formas estranhas e extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certas mistura e composição dos membros de diversos animais; ou então, se porventura sua imaginação for assaz extravagante para inventar algo de novo, que jamais tenhamos visto coisa semelhante, e que assim sua obra no represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compõem devem ser verdadeiras.” (D., M. Metafísicas I, p.13)
Comentário: Em relação aos objetos resultantes da imaginação, assim como no sonhos, partes destes apontem para algo real. Quando isso não ocorre, entretanto, ainda assim é possível que existam elementos que se possam considerar reais.
[1.4] A realidade enganosa da loucura
“A não ser, talvez, que eu me compare e a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.” (D., M. Metafísicas I, p.13)
Comentário: Descartes aponta que a loucura não poderia, de nenhuma forma, fornecer elementos confiáveis quando na aplicação do método.
[1.5] A realidade enganosa do gênio maligno
“Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.” (D., M. Metafísicas I, p.15)
Comentário: Descartes coloca em tudo em dúvida quando cogita a possibilidade da existência de um Deus enganador, de forma que tudo o que ele perceba venha a ser falso. Ainda assim, ressalta Descartes, se desconsiderar todas as enganações à que ele pode desconsidera – como por exemplo ao que vêm dos sentidos – restaria a faculdade do pensamento. Dotado desta faculdade, ele então, aprimoraria seu espírito e a utilizaria de forma a, de nenhuma maneira, acreditar em algo que seja falso. Descartes, por meio do pensamento, conseguiria assim, evitar as falsidades ainda que fossem as oriundas de um gênio enganador.
[2] “Da natureza do espírito” (Meditação Segunda)
[2.1] “Ego sum, ego existo” – Eu sou, eu existo
“Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.” (D., M. Metafísicas II, p.18)
“Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora.” (D., M. Metafísicas II, p.18)
Comentário: Descartes aqui apresenta sua máxima “Ego sum, ego existo”, sustentando a ideia de que o pensamento é a única coisa que comprova efetivamente de que existimos.
[2.2] “res cogitans” – O espírito, “uma coisa que pensa“
“Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem alimentar-me. Outro é sentir; mas não se pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente Outro é pensar; e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir.” (D., M. Metafísicas II, p.19)
Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa.” (D., M. Metafísicas II, p.19)
Comentário: Descartes refere-se aqui ao “res cogitans”, ou seja, a capacidade do pensamento é um atributo que não pode pertencer ao corpo, logo, o pensamento é uma propriedade do espírito.
[2.3] “res extensa” – O corpo, “uma coisa extensa“
“Quanto às ideias claras e distintas que tenho das coisas corporais, há algumas dentre elas que, parece, pude tirar da ideia que tenho de mim mesmo, como a que tenho da substância, da duração, do número e de outras coisas semelhantes. Pois, quando penso que a pedra é uma substância, ou uma coisa que é por si capaz de existir, e em seguida que sou uma substância, embora eu conceba de fato que sou uma coisa pensante e não extensa, e que a pedra, ao contrário, é uma coisa extensa e não pensante, e que, assim, entre essas duas concepções há uma notável diferença, elas parecem, todavia, concordar na medida em que representam substâncias. Da mesma maneira, quando pensão que sou agora e me lembro, além disso, de ter sido outrora e concebo mui diversos pensamentos, cujo número conheço, então adquiro em mim as ideias da duração e do número que, em seguida, posso transferir a todas as outras coisas que quiser.“ (D., M. Metafísicas II, p.20)
Comentário: “res extensa”. Descartes define as coisas quanto à sua materialidade, separando-as em grupos nas quais existem seres de corpo e espírito e outros somente de corpo (matéria).
[2.4] A mente é mais fácil de se conhecer que o corpo
“Ora, se a noção ou conhecimento da cera parece ser mais nítido e mais distinto após ter sido descoberto não somente pela visão ou pelo tato, mas ainda por muitas outras causas, com quão maior evidência, distinção e nitidez não deverei eu conhecer-me, posto que todas as razões que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, provam muito mais fácil e evidentemente a natureza de meu espírito? E encontram-se ainda tantas outras coisas no próprio espírito que podem contribuir ao esclarecimento de sua natureza, que aquelas que dependem do corpo (como esta) não merecem quase ser enumeradas.” (D., M. Metafísicas II, p.23)
Comentário: Descartes defende a ideia de que, por meio do pensamento se torna mais fácil conhecer a mente do que conhecer o corpo por meio dos sentidos.
[3] “Da existência de Deus” (Meditação Terceira)
[3.1] A Compreensão do Infinito
E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira ideia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz; pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma ideia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria as carências de minha natureza? (D., M. Metafísicas III, p.32)
Comentário: Quanto à compreensão do infinito, para Descartes essa compreensão é possível somente por meio da negação daquilo que é finito e conhecido.
[3.2] Princípio de Causalidade
Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lhe comunicar se não a tivesse em si mesma? (D., M. Metafísicas III, p.29)
Comentário: Quanto ao princípio da causalidade Descartes afirma que a realidade dos fenômenos só poderiam ter origem em suas causas.
[3.3] Criação e Conservação
Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos os que considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma substância, para ser conservada em todos os momentos de sua duração, precisa do mesmo poder e da mesma ação, que seria necessário para produzi-la e criá-la de novo, caso não existisse ainda. De sorte que a luz natural nos mostra claramente que a conservação e a criação não diferem senão com respeito à nossa maneira de pensar, e não em efeito. (D., M. Metafísicas III, p.35)
Comentário: Em relação às substâncias, Descartes defende, segundo o princípio da conservação, a mesma energia necessária para criação da substância é a mesma necessárias para sua conservação.
[4] “Do verdadeiro e do falso” (Meditação Quarta)
Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito em mim. (D., M. Metafísicas IV, p.39)
Comentário: Em relação ao fato de afirmarmos algo como verdadeiro e depois verificar sua falsidade, Descartes afirma que a capacidade de discernimento entre o que é verdadeiro e falso é finita ao homem, ou seja limitada. Por isso ele não é capaz de poder discernir entre o verdadeiro e o falso sem a possibilidade de errar.
[5] “Da essência das coisas materiais” (Meditação Quinta)
E o que, aqui, estimo mais considerável é que encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas que não podem ser consideradas um puro nada, embora talvez elas não tenham nenhuma existência fora de meu pensamento, e que não são fingidas por mim, conquanto esteja em minha liberdade pensá-las ou não pensá-las; mas elas possuem suas naturezas verdadeiras e imutáveis. Como, por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, tal figura, e que nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver certa natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ângulos são iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras semelhantes, as quais agora, quer queira, quer não, reconheço mui claramente e mui evidentemente estarem nele, ainda que não tenha antes pensado nisto de maneira alguma, quando imaginei pela primeira vez um triângulo; e, portanto, não se pode dizer que eu as tenha fingido e inventado. (D., M. Metafísicas V, p.45)
Comentário: Quando se reflete acerca da essência das coisas materiais, estamos indo ao encontro de sua natureza verdadeira e imutável.
[6] “Da existência das coisas materiais” (Meditação Sexta)
Pois, não me tendo dado nenhuma faculdade para conhecer que isto seja assim, mas, ao contrário, uma fortíssima inclinação para crer que elas me são enviadas pelas coisas corporais ou partem destas, não vejo como se poderia desculpa-lo de embaimento se, com efeito, essas ideias partissem de outras causas que não coisas corpóreas, ou fossem por elas produzidas. E, portanto, é preciso confessar que há coisas corpóreas que existem.
Talvez elas não sejam, todavia, inteiramente como nós as percebemos pelos sentidos, pois essa percepção dos sentidos é muito obscura e confusa em muitas coisas; mas, ao menos, cumpre confessar que todas as coisas que, dentre elas, concebo clara e distintamente, isto é, todas as coisas, falando em geral, compreendidas no objeto da Geometria especulativa, aí se encontram verdadeiramente. Mas, no que se refere a outras coisas, as quais ou são apenas particulares, por exemplo, que o sol seja de tal grandeza e de tal figura, etc., ou são concebidas menos claramente e menos distintamente, como a luz, o som, a dor e outras semelhantes, é certo que, embora sejam elas muito duvidosas e incertas, todavia, do simples fato de que Deus não é enganador e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma faculdade capaz de corrigi-la, creio poder concluir seguramente que tenho em mim os meios de conhecê-las com certeza. (D., M. Metafísicas VI, p.56)
Comentário: Quanto à existência das coisas corpóreas, ainda que os sentidos possam enganar, é preciso considerar sua existência.
Implicações dos conceitos metafísicos de Descartes para a sua teoria do conhecimento e para a antropologia
As implicações das meditações metafísicas de Descartes tiveram grande impacto para a teoria do conhecimento e para a antropologia:
[1] A Meditação como procedimento do Método
[2] Método da Dúvida
[3] Método Analítico/Dedutivo (do todo para as partes)
[4] Método Empírico/Indutivo (das partes se intui o todo)
[5] O Utilitarismo (transformação da natureza; procurar utilidade no conhecimento)
[6] Vetores da Razão: Ordem e Progresso
[7] As raízes: Metafísica, Epistemologia e Ontologia; O Tronco: Física, Matemática, Geometria, etc; Frutos: Ciência e Tecnologia.
REFERÊNCIAS
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas; [tradução de Tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr.].
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