Descartes – Meditações Metafísicas

MEDITAÇÃO PRIMEIRA – DAS COISAS QUE SE PODEM COLOCAR EM DÚVIDA

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  1. Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.
  2. Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
  3. Mas, ainda que os sentido nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus?

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  1. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.
  2. Todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes.

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  1. Eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciências dependentes da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas; mas que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois, quer que esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de algumas falsidades ou incerteza.
  2. Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo?
  3. Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas, não lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem tanto mais será provável que eu seja de tal modo
    imperfeito que me engane sempre.

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  1. Mas não basta ter feito tais considerações, é preciso ainda que cuide de lembrar-me delas; pois essas antigas e ordinárias opiniões ainda me voltam amiúde ao pensamento, dando-lhes a longa e familiar convivência que tiveram comigo o direito de ocupar meu espírito mau grado meu e de tornarem-se quase que senhoras de minha crença. E jamais perderei o costume de aquiescer a isso e de confiar nelas, enquanto as considerar como são efetivamente, ou seja, como duvidosas de alguma maneira, como acabamos de mostrar, e todavia muito prováveis, de sorte que se tem muito mais razão em acreditar nelas do que em negá-las.
  2. Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que
    poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença
    nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse
    grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me
    algo.

MEDITAÇÃO SEGUNDA – DA NATUREZA DO ESPÍRITO HUMANO; E DE
COMO ELE É MAIS FÁCILDE CONHECER DO Q UE O CORPO.

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  1. afastando-me de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada no mundo de certo.
  2. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável.
  3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória repleta de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro?

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  1. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
  2. Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora.
  3. por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura; que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluído; que pode ser sentido ou pelo tato, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo olfato; que pode ser movido de muitas maneiras, não por si mesmo, mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressão.

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  1. Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim.
    Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem alimentar-me. Outro é sentir; mas não se pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente Outro é pensar; e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir.

Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um
entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa.

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  1. Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam? Não sou eu próprio esse mesmo que duvida de quase tudo, que, no entanto, entende e concebe certas coisas, que assegura e afirma que somente tais coisas são verdadeiras, que nega todas as demais, que quer e deseja conhecê-las mais, que não quer ser enganado, que imagina muitas coisas, mesmo mau grado seu, e que sente também muitas como que por intermédio dos órgãos do corpo? Haverá algo em tudo isso que não seja tão verdadeiro quanto é certo que sou e que existo, mesmo se dormisse sempre e ainda quando aquele que me deu a existência se servisse de todas as suas forças para enganar-me? Haverá, também, algum desses atributos que possa ser distinguido de meu pensamento, ou que se possa dizer que existe separado de mim mesmo? Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não é necessário nada acrescentar aqui para explicá-lo.

E tenho também certamente o poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer (como supus anteriormente) que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento. Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar. Donde, começo a conhecer o que sou, com um pouco mais de luz e de distinção do que anteriormente.

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  1. embora, com efeito, seja uma coisa bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantes sejam mais claras e mais facilmente conhecidas por mim do que aquelas que são verdadeiras e certas e que pertencem à minha própria natureza.
  2. Comecemos pela consideração das coisas mais comuns e que acreditamos compreender mais distintamente, a saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral, pois essas noções gerais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particular.
    Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste

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  1. se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos.
  2. Um homem que procura elevar seu conhecimento para além do comum deve envergonhar-se de aproveitar ocasiões para duvidar das formas e dos termos do falar do vulgo; prefiro passar adiante e considerar se eu concebia com maior evidência e perfeição o que era a cera, quando a percebi inicialmente e acreditei conhecê-la por meio do senso comum, como o chamam, isto é, por meio do poder imaginativo, do que a concebo presentemente, após haver examinado mais exatamente o que ela é e de que maneira pode ser conhecida

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  1. Pois, se julgo que a cera é ou existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida segue-se bem mais evidentemente que eu próprio sou, ou que existo pelo fato de eu a ver. Pois pode acontecer que aquilo que eu vejo não seja, de fato, certa; pode também dar-se que eu não tenha olhos para ver coisa alguma; mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, não seja alguma coisa. Do mesmo modo, se julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se-á ainda a mesma coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo porque minha imaginação disso me persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me são exteriores e que se encontram fora de mim.
  2. Ora, se a noção ou conhecimento da cera parece ser mais nítido e mais distinto após ter sido descoberto não somente pela visão ou pelo tato, mas ainda por muitas outras causas, com quão maior evidência, distinção e nitidez não deverei eu conhecer-me, posto que todas as razões que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, provam muito mais fácil e evidentemente a natureza de meu espírito? E encontram-se ainda tantas outras coisas no próprio espírito que podem contribuir ao esclarecimento de sua natureza, que aquelas que dependem do corpo (como esta) não merecem quase ser enumeradas.
  3. só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamento, reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito

MEDITAÇÃO TERCEIRA – DE DEUS; Q UE ELE EXISTE.

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  1. Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei como vãs e como falsas; e assim, entretendo-me apenas comigo mesmo e
    considerando meu interior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente. Pois, assim como notei acima, conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações somente na medida em que são maneiras de pensar, residem e se encontram certamente em mim. E neste pouco que acabo de dizer creio ter relatado tudo o que sei verdadeiramente, ou, pelo menos, tudo o que até aqui notei que sabia.
  2. E, portanto, parece-me que já posso estabelecer como regra geral que todas as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras.
  3. Todavia, recebi e admiti acima várias coisas como muito certas e muito manifestas, as quais, entretanto, reconheci depois serem duvidosas e incertas. Quais eram, pois, essas coisas? Eram a terra, o céu, os astros e todas as outras coisas que percebia por intermédio de meus sentidos. Ora, o que é que eu concebia clara e distintamente nelas? Certamente nada mais exceto que as ideias ou os pensamentos dessas coisas se apresentavam a meu espírito. E ainda agora não nego que essas ideias se encontrem em mim. Mas havia ainda outra coisa que eu afirmava, e que, devido ao hábito que tinha de acreditar nela, pensava perceber mui claramente, embora na verdade não a percebesse de modo algum, a saber, que havia coisas fora de mim donde procediam essas ideias e às quais elas eram inteiramente semelhantes. E era nisso que eu me enganava; ou, se eu julgava talvez segundo a verdade, não havia nenhum conhecimento que eu tivesse que fosse causa da verdade de meu julgamento.

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  1. Mas quando considerava alguma coisa de muito simples e de muito fácil no tocante à Aritmética e à Geometria, por exemplo, que dois e três juntos
    produzem o número cinco, e outras coisas semelhantes, não as concebia eu pelo menos bastante claramente para assegurar que eram verdadeiras? Certamente, se julguei depois que se podia duvidar destas coisas, não foi por outra razão senão porque me veio ao espírito que talvez algum Deus tivesse podido me dar tal natureza que eu me enganasse mesmo no concernente às coisas que me parecem as mais manifestas.
  2. E, por certo, posto que não tenho nenhuma razão de acreditar que haja algum Deus que seja enganador, e mesmo que não tenha ainda considerado aquelas que provam que há um Deus, a razão de duvidar que depende somente desta opinião é bem frágil e, por assim dizer, metafísica. Mas, a fim de poder afastá-la inteiramente, devo examinar se há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois, sem o conhecimento dessas duas verdades, não vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma

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  1. Agora, no que concerne às ideias, se as consideramos somente nelas mesmas e não as relacionamos a alguma outra coisa, elas não podem, propriamente falando, ser falsas; pois quer eu imagine uma cabra ou uma quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma quanto a outra
  2. Não é preciso temer também que se possa encontrar falsidade nas afecções ou vontades; pois, ainda que possa desejar coisas más, ou mesmo que jamais existiram, não é por isso, todavia, menos verdade que as desejo.
  3. Mas também talvez eu possa persuadir-me de que todas essas ideias são do gênero das que eu chamo de estranhas e que vêm de fora ou que nasceram todas comigo ou, ainda, que foram todas feitas por mim; pois ainda não lhes descobri claramente a verdadeira origem. E o que devo fazer
    principalmente neste ponto é considerar, no tocante àquelas que me parecem vir de alguns objetos localizados fora de mim, quais as razões que me obrigam a acreditá-las semelhantes a esses objetos.
  4. A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza; e a segunda, que experimento em mim próprio que essas ideias não
    dependem, de modo algum, de minha vontade;

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  1. Agora é preciso que eu veja se estas razões são suficientemente fortes e convincentes. Quando digo que me parece que isso me é ensinado pela natureza, entendo somente por essa palavra natureza certa inclinação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça conhecer que ela é verdadeira. Ora, essas duas coisas diferem muito entre si; pois eu nada poderia colocar em dúvida daquilo que a luz natural me revela ser verdadeiro, assim como ela me fez ver, há pouco, que, do fato de eu duvidar, podia concluir que existia. E não tenho em mim outra faculdade, ou poder, para distinguir o verdadeiro do falso, que me possa ensinar que aquilo que essa luz me mostra como verdadeiro não o é, e na qual eu me possa fiar tanto quanto nela. Mas, no que se refere a inclinações que também me parecem ser para mim naturais, notei frequentemente, quando se tratava de escolher entre as virtudes e os vícios, que elas não me levaram menos ao mal do que ao bem; eis por que não tenho motivo de segui-las tampouco no referente ao verdadeiro e ao falso.
  2. Como, por exemplo, encontro em meu espírito duas ideias do sol inteiramente diversas: uma toma sua origem nos sentidos e deve ser colocada no
    gênero daquelas que disse acima provirem de fora, e pela qual o sol me parece extremamente pequeno; a outra é tomada nas razões da Astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo, ou, enfim, é formada por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela qual o sol me parece muitas vezes maior do que a terra inteira. Por certo, essas duas ideias que concebo do sol não podem ser ambas semelhantes ao mesmo sol; e a razão me faz crer que aquela que vem imediatamente de sua aparência é a que lhe é mais semelhante.
  3. Tudo isso me leva a conceber suficientemente que até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes de meu ser, as quais, pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outro meio que seja, enviam-me suas ideias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças.
  4. Pois, com efeito, aquelas que me representam substâncias são, sem dúvida, algo mais e contêm em si, por assim falar, mais realidade objetiva, isto é, participam, por representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes.
  5. Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma?
  6. Daí decorre não somente que o nada não poderia produzir coisa alguma, mas também que o que é mais perfeito, isto é, o que contém em si mais realidade, não pode ser uma decorrência e uma dependência do menos perfeito. E esta verdade não é somente clara e evidente nos seus efeitos, que possuem essa realidade que os filósofos chama de atual ou forma, mas também nas ideias onde se considera somente a realidade que eles chamam de objetiva: por exemplo, a pedra que ainda não foi, não somente não pode agora começar a ser, se não for produzida por um coisa que possui em si formalmente, ou eminentemente, tudo o que entra na composição da pedra, ou seja, que contém em si as mesmas coisas ou outras mais excelentes do que aquelas que se encontram na pedra e o calor não pode ser produzido em um objeto que dele era privado anteriormente se não for por uma coisa que seja de uma ordem, de um grau ou de um gênero ao menos tão perfeito quanto o calor, e assim os outros.

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  1. E ainda que possa ocorrer que uma ideia dê origem a outra ideia, isso todavia não pode estender-se ao infinito, mas é preciso chegar ao fim a uma primeira ideia, cuja causa seja um como padrão ou original, na qual toda a realidade ou perfeição, esteja contida formalmente e em efeito, a qual só se encontre objetivamente ou por representação nessas ideias. De sorte que a luz natural me faz conhecer evidentemente que as ideias são em mim como quadros, ou imagens, que podem na verdade facilmente não conservar a perfeição das coisas de onde foram tiradas, mas que jamais podem conter algo de maior ou de mais perfeito.
  2. Concluirei que, se a realidade objetiva de alguma de minhas ideias é tal que eu reconheça claramente que ela não está em mim nem formal nem eminentemente e que, por conseguinte, não posso, eu mesmo, ser lhe a causa, daí decorre necessariamente que não existo sozinho no mundo, mas que há ainda algo que existe e que é a causa desta ideia; ao passo que, se não se encontrar em mim tal ideia, não terei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar da existência de qualquer outra coisa além de mim mesmo; pois procurei-os a todos cuidadosamente e não pude, até agora, encontrar nenhum.

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  1. Ora, entre essas ideias, além daquela que me representa a mim mesmo, sobre a qual não pode haver aqui nenhuma dificuldade, há outra que me representa um Deus, outras as coisas corporais e inanimadas, outras, enfim, que me representam homens semelhantes a mim. Mas, no que se refere às ideias que me representam outros homens ou animais, ou anjos, concebo facilmente que podem ser formadas pela mistura e composição de outras ideias que tenho das coisas corporais e de Deus, ainda que não houvesse, fora de mim, no mundo, outros homens, nem quaisquer animais ou anjos. E quanto às ideias das coisas corporais, nada reconheço de tão grande nem de tão excelente que não me pareça poder provir de mim mesmo; pois, se as considero de mais perto, e se as examino da mesma maneira como examinava, há pouco, a ideia da cera, verifico que pouquíssima coisa nela se encontra que eu conceba clara e distintamente: a saber, a grandeza ou a extensão em lonjura, largura e profundidade; a figura que é formada pelos termos e pelos limites dessa extensão; a situação que os corpos diferentemente figurados guardam entre si; e o movimento ou a modificação dessa situação; aos quais podemos acrescentar a substância, a duração e o número. Quanto às outras coisas, como a luz, as cores, os sons, os odores, os sabores, o calor, o frio e as outras qualidades que caem sob o tato, encontram-se em meu pensamento com tanta obscuridade e confusão que ignoro mesmo se são verdadeiras ou falsas e somente aparentes, isto é, se as ideias que concebo dessas qualidades são, com efeito, as ideias de algumas oisas reais, ou se não me representam apenas seres quiméricos que não podem existir.

Pois, ainda que eu tenha notado acima que só nos juízos é que se pode encontrar a falsidade formal e verdadeira, pode, no entanto, ocorrer que se encontre nas ideias certa falsidade material, a saber, quando elas representam o que nada é como se fosse alguma coisa. Por exemplo, as ideias que tenho do calor e do frio são tão pouco claras e tão pouco distintas, que por seu intermédio não posso discernir se o frio é somente uma privação do calor ou o calor uma privação do frio, ou ainda se uma e outra são qualidades reais ou não o são; e visto que, sendo as ideias como que imagens, não pode haver nenhuma que não nos pareça representar alguma coisa, se é certo dizer que o frio nada é senão privação do calor, a ideia que mo representa como algo de real e de positivo será sem despropósito chamada falsa, e assim outras ideias semelhantes; às quais certamente não é necessário que eu atribua outro autor exceto eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto é, se representam coisas que não existem, a luz natural me faz conhecer que procedem do nada, ou seja, que estão em mim apenas porque falta algo à minha natureza e porque ela não é inteiramente perfeita. E se essas ideias são verdadeiras, todavia, já que me revelam tão pouca realidade que não posso discernir nitidamente a coisa representada do não ser, não vejo razão pela qual não possam ser produzidas por mim mesmo e eu não possa ser o seu autor.

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  1. Portanto, resta tão somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual que próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora,essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa ideia possa tirar usa origem de mim tão somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, eu não teria, todavia, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita.
  2. E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira ideia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz; pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma ideia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria
    as carências de minha natureza?

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  1. E não se pode dizer que esta ideia de Deus talvez seja materialmente falsa, e que, por conseguinte, eu a possa ter do nada, isto é, que ela possa estar em mim pelo fato de eu ter carência, como disse acima, das ideias de calor e de frio e de outras coisas semelhantes: pois, ao contrário, sendo esta ideia mui clara e distinta, e contendo em si mais realidade objetiva do que qualquer outra, não há nenhuma que seja por si mais verdadeira nem que possa ser menos suspeita de erro e de falsidade.
  2. E isto não deixa de ser verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito, ou mesmo que se encontre em Deus uma infinidade de coisas que eu não possa compreender, nem talvez também atingir de modo algum pelo pensamento: pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo; e basta que eu conceba bem isto, e que julgue que todas as coisas que concebo claramente, e nas quais sei que há alguma perfeição, e talvez também uma infinidade de outras que ignoro, estão em Deus formal ou eminentemente, para que a ideia que dele tenho seja a mais verdadeira, a mais clara e a mais distinta dentre todas as que se acham em meu espírito.

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  1. Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos os que considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma substância, para ser conservada em todos os momentos de sua duração, precisa do mesmo poder e da mesma ação, que seria necessário para produzi-la e criá-la de novo, caso não existisse ainda. De sorte que a luz natural nos mostra claramente que a conservação e a criação não diferem senão com respeito à nossa maneira de pensar, e não em efeito.
  2. Poderá também ocorrer que este ser de que dependo não seja aquilo que chamo Deus e que seja produzido ou por meus pais ou por outras causas menos perfeitas do que ele? Muito ao contrário, isso não pode ser assim. Pois, como já disse anteriormente, é uma coisa evidente que deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seu efeito. E portanto, já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma ideia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual modo uma coisa pensante e possuir em si a ideia de todas as perfeições que atribuo à natureza divina

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  1. mas é preciso concluir necessariamente que, pelo simples fato de que eu existo e de que a ideia de um ser soberanamente perfeito, isto é, Deus, é em mim, a existência de Deus está mui evidentemente demonstrada.
  2. Resta-me apenas examinar de que maneira adquiri esta ideia. Pois não a
    recebi dos sentidos e nunca ela se ofereceu a mim contra minha expectativa, como o fazem as ideias das coisas sensíveis quando essas coisas se apresentam ou parecem apresentar-se aos órgãos exteriores de meus sentidos. Não é também uma pura produção ou ficção de meu espírito; pois não está em meu poder diminuir-lhe ou acrescentar-lhe coisa alguma. E, por conseguinte, não resta outra coisa a dizer senão que, como a ideia de mim mesmo, ela nasceu e foi produzida comigo desde o momento em que fui criado.

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  1. E certamente não se deve achar estranho que Deus, ao me criar, haja posto em mim esta ideia para ser como que a marca do operário impressa em sua obra; e não é tampouco necessário que essa marca seja algo diferente da própria obra. Mas pelo simples fato de Deus me ter criado, é bastante crível que ele, de algum modo, me tenha produzido à sua imagem e semelhança, na qual a ideia de Deus se acha contida, por meio da mesma faculdade pela qual me concebo a mim próprio; isto quer dizer que, quando reflito sobre mim, não só conheço que sou uma coisa imperfeita, incompleta e dependente de outrem, que tende e aspira incessantemente a algo de melhor e de maior do que sou, mas também conheço, ao mesmo tempo, que aquele de quem dependo possui em si todas essas grandes coisas a que aspiro e cujas ideias encontro em mim, não indefinidamente e só em potência, mas que ele as desfruta de fato, atual e infinitamente e, assim, que ele é Deus. E toda a força do argumento de que aqui me servi para provar a existência de Deus consiste em que reconheço que seria impossível que minha natureza fosse tal como é, ou seja, que eu tivesse em mim a ideia de um Deus, se Deus não existisse verdadeiramente;

MEDITAÇÃO Q UARTA – DO VERDADEIRO E DO FALSO

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  1. noto que ao meu pensamento não se apresenta somente uma ideia real e positiva de Deus, ou seja, de um ser soberanamente perfeito, mas também, por assim dizer, certa ideia negativa do nada, isto é, daquilo que está infinitamente distante de toda sorte de perfeição; e que sou como que um meio entre Deus e o nada, isto é, colocado de tal maneira entre o soberano ser e o não ser que nada se encontra em mim, na verdade, que me possa conduzir ao erro, na medida em que um soberano ser me produziu; mas que, se me considero participante de alguma maneira do nada ou do não ser, isto é, na medida em que não sou eu próprio o soberano ser, acho-me exposto a uma infinidade de faltas, de modo que não devo espantar-me se me engano.
  2. Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito em mim.
  3. Todavia, isto ainda não me satisfaz inteiramente; pois o erro não é uma pura negação, isto é, não é a simples carência ou falta de alguma perfeição que me não é devida, mas antes é uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir.
  4. Considerando isso com mais atenção, ocorre-me inicialmente ao pensamento que me não devo espantar se minha inteligência não for capaz de compreender por que Deus faz o que faz e que assim não tenho razão alguma de duvidar de sua existência, pelo fato de que, talvez, eu veja por experiência muitas outras coisas sem poder compreender por que razão nem como Deus as produziu. Pois, sabendo já que minha natureza é extremamente fraca e limitada, e, ao contrário, que a de Deus é imensa, incompreensível e infinita, não mais tenho dificuldade em reconhecer que há uma infinidade de coisas em sua potência cujas causas ultrapassam o alcance de meu espírito.

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  1. E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são meus erros que apenas testemunham haver imperfeição em mim, descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade.

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  1. pois, se eu conhecesse sempre claramente o que é verdadeiro e o que é bom, nunca estaria em dificuldade para deliberar que juízo
    ou que escolha deveria fazer; e assim seria inteiramente livre sem nunca ser indiferente.

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  1. pois a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento
    deve sempre preceder a determinação da vontade

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  1. E, certamente, não pode haver outra além daquela que expliquei; pois, todas as vezes que retenho minha vontade nos limites de meu conhecimento, de tal modo que ela não formule juízo algum senão a respeito das coisas que lhe são clara e distintamente representadas pelo entendimento, não pode ocorrer que eu me engane; porque toda concepção clara e distinta é sem dúvida algo de real e de positivo, e portanto não pode ter sua origem no nada, mas deve ter necessariamente Deus como seu autor; Deus, digo, que, sendo soberanamente perfeito, não pode ser causa de erro algum; e, por conseguinte, é preciso concluir que uma tal concepção ou um tal juízo é verdadeiro

MEDITAÇÃO QUINTA – DA ESSÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS; E,
NOVAMENTE, DE DEUS, QUE ELE EXISTE.

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  1. E não conheço estas coisas com distinção apenas quando as considero em geral; mas, também, por pouco que eu a isso aplique minha atenção, concebo
    uma infinidade de particularidades referentes aos números, às figuras, aos movimentos e a outras coisas semelhantes, cuja verdade se revela com tanta evidência e se acorda tão bem com minha natureza que, quando começo a descobri-las, não parece que aprendo algo de novo, mas, antes, que me recordo de algo que já sabia anteriormente, isto é, que percebo coisas que estavam já no meu espírito, embora eu ainda não tivesse voltado meu pensamento para elas.
  2. E o que, aqui, estimo mais considerável é que encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas que não podem ser consideradas um puro
    nada, embora talvez elas não tenham nenhuma existência fora de meu pensamento, e que não são fingidas por mim, conquanto esteja em minha liberdade pensá-las ou não pensá-las; mas elas possuem suas naturezas verdadeiras e imutáveis. Como, por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, tal figura, e que nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver certa
    natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ângulos são iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras semelhantes, as quais agora, quer queira, quer não, reconheço mui claramente e mui evidentemente estarem nele, ainda que não tenha antes pensado nisto de maneira alguma, quando imaginei pela primeira vez um triângulo; e, portanto, não se pode dizer que eu as tenha fingido e inventado.

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  1. Pois, estando habituado em todas as outras coisas a fazer distinção entre a existência e a essência persuado-me facilmente de que a existência pode ser separada da essência de Deus e de que, assim, é possível conceber Deus como não existindo atualmente. Mas, não obstante, quando penso nisso com maior atenção, verifico claramente que a existência não pode ser separada da essência de Deus, tanto quanto da essência de um triângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da ideia de uma montanha, a ideia de um vale; de sorte que não sinto menos repugnância em conceber um Deus, isto é, um ser soberanamente perfeito ao qual falte existência, isto é, ao qual falte alguma perfeição, do que em conceber uma montanha que não tenha vale.

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  1. Como, por exemplo, quando considero a natureza do triângulo, conheço evidentemente, eu que sou um pouco versado em Geometria, que seus três
    ângulos são iguais a dois retos e não me é possível não acreditar nisso enquanto aplico meu pensamento à sua demonstração; mas, tão logo eu o desvie dela, embora me recorde de tê-la claramente compreendido, pode ocorrer facilmente que eu duvide de sua verdade caso ignore que há um Deus.
  2. Mas, após ter reconhecido haver um Deus, porque ao mesmo tempo reconheci também que todas as coisas dependem dele e que ele não é enganador, e que, em seguida a isso, julguei que tudo quanto concebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro: ainda que não mais pense nas razões pelas quais julguei tal ser verdadeiro, desde que me lembre de tê-lo compreendido clara e distintamente, ninguém pode apresentar-me razão contrária alguma que me faça jamais colocá-lo em dúvida; e, assim, tenho dele uma ciência certa e verdadeira todas as outras coisas que me lembro ter outrora demonstrado, como as verdades da Geometria e outras semelhantes: pois, que me poderão objetar, para obrigar
    me a colocá-las em dúvida.

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  1. E, assim, reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda ciência dependem do tão só conhecimento do verdadeiro Deus: de sorte que, antes que eu o conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa E, agora que o conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de coisas, não somente das que existem nele mas também das que pertencem à natureza corpórea, na medida
    em que ela pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras, os quais não se preocupam, de modo algum, com sua existência.

MEDITAÇÃO SEXTA – DA EXISTÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS E DA
DISTINÇÃO REALENTRE A ALMA E O CORPO DO HOMEM

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  1. E, para tornar isso mais manifesto, noto primeiramente a diferença que há entre a imaginação e a pura intelecção, ou concepção.

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  1. E, primeiramente, recordarei em minha memória quais são as coisas que até aqui considerei como verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos, e sobre que fundamentos estava apoiada minha crença. E, depois, examinarei as razões que me obrigaram em seguida a colocá-las em dúvida. E, enfim, considerarei o que devo a respeito delas agora acreditar.

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  1. E já que eu me lembrava também que me servira mais dos sentidos do que da razão e reconhecia que as ideias que eu formava por mim mesmo não eram tão expressas quanto aquelas que eu recebia dos sentidos e, mesmo, que eram, as mais das vezes, compostas de partes destas, eu me persuadia facilmente de que não havia nenhuma ideia em meu espírito que não tivesse antes passado pelos meus sentidos.
  2. Não era também sem alguma razão que eu acreditava que este corpo (que, por certo direito particular, eu chamava de meu) me pertencia mais
    propriamente e mais estreitamente do que qualquer outro.

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  1. Mas, depois, muitas experiências arruinaram, pouco a pouco, todo o créditoque eu dera aos sentidos. Pois observei muitas vezes que torres, que de longe se me afiguravam redondas, de perto pareciam-me quadradas, e que colossos, erigidos sobre os mais altos cimos dessas torres, pareciam-me pequenas estátuas quando as olhava de baixo; e, assim, em uma infinidade de outras ocasiões, achei erros nos juízos fundados nos sentidos exteriores. E não somente nos sentidos exteriores, mas mesmo nos interiores: pois haverá coisa mais íntima ou mais interior do que a dor?
  2. E a essas razões de dúvida acrescentei ainda, pouco depois, duas outras bastante gerais. A primeira é que jamais acreditei sentir algo, estando acordado, que não pudesse, também, algumas vezes, acreditar sentir, ao estar dormindo; e como não creio que as coisas que me parece que sinto ao dormir procedam de quaisquer objetos existentes, não via por que devia ter antes essa crença no tocante àquelas que me parece que sinto ao estar acordado. E a segunda é que, não conhecendo ainda ou, antes, fingindo não conhecer o autor de meu ser, nada via que pudesse impedir que eu tivesse sido feito de tal maneira pela natureza que me enganasse mesmo nas coisas que me pareciam ser as mais verdadeiras.

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  1. Mas, agora que começo a melhor conhecer-me a mim mesmo e a descobrir mais claramente o autor de minha origem, não penso, na verdade, que deva temerariamente admitir todas as coisas que os sentidos parecem ensinar-nos, mas não penso tampouco que deva colocar em dúvida todas em geral.
  2. E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a não ser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substância da qual toda a essência ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou, antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele.

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  1. Demais, encontra-se em mim certa faculdade passiva de sentir, isto e, de receber e conhecer as ideias das coisas sensíveis; mas ela me seria inútil, e dela não me poderia servir absolutamente, se não houvesse em mim, ou em outrem, uma faculdade ativa, capaz de formar e de produzir essas ideias. Ora, essa faculdade ativa não pode existir em mim enquanto sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não pressupõe meu pensamento, e, também, que essas ideias me são frequentemente representadas sem que eu em nada contribua para tanto e mesmo, amiúde, mau grado meu; é preciso, pois, necessariamente, que ela exista em alguma substância diferente de mim, na qual toda a realidade que há objetivamente nas ideias por ela produzidas esteja contida formal ou eminentemente (como notei antes). E esta substância é ou um corpo, isto é, uma natureza corpórea, na qual está contida formal e efetivamente tudo o que existe objetivamente e por representação nas ideias; ou então é o próprio Deus, ou alguma outra criatura mais nobre do que o corpo, na qual isto mesmo esteja contido eminentemente.
  2. Pois, não me tendo dado nenhuma faculdade para conhecer que isto seja assim, mas, ao contrário, uma fortíssima inclinação para crer que elas me são enviadas pelas coisas corporais ou partem destas, não vejo como se poderia desculpa-lo de embaimento se, com efeito, essas ideias partissem de outras causas que não coisas corpóreas, ou fossem por elas produzidas. E, portanto, é preciso confessar que há coisas corpóreas que existem.

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  1. E, primeiramente, não há dúvida de que tudo o que a natureza me ensina contém alguma verdade. Pois, por natureza considerada em geral, não entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza, em particular, não entendo outra coisa senão a complexão ou o conjunto de todas as coisas que Deus me deu.
  2. A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu
    navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo. Pois, se assim não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por isso dor alguma, eu que não sou senão uma coisa pensante, e apenas perceberia esse ferimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista se algo se rompe em seu navio; e quando meu corpo tem necessidade de beber ou de comer, simplesmente perceberia isto mesmo, sem disso ser advertido por sentimentos confusos de fome e de sede.

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  1. Mas há muitas outras coisas que parece-me terem sido ensinadas pela natureza, as quais, todavia, não recebi verdadeiramente dela, mas que se
    introduziram em meu espírito por certo costume que tenho de julgar inconsideradamente as coisas; e, assim, pode ocorrer facilmente que contenham alguma falsidade. Como, por exemplo, a opinião que tenho segundo a qual todo espaço, no qual nada há que se mova e cause impressão em meus sentidos, é vazio; que, em um corpo que é quente, há alguma coisa de semelhante à ideia do calor que existe em mim; que, em um corpo branco ou negro, há a mesma brancura ou negrume que sinto; que em um corpo amargo ou doce, há o mesmo gosto ou mesmo sabor e assim por diante; que os astros e as torres, e todos os outros corpos distantes, têm a mesma figura e grandeza que parecem ter de longe aos nossos olhos, etc.
  2. Ora, essa natureza me ensina realmente a fugir das coisas que causam em mim o sentimento da dor e a dirigir-me para aquelas que me comunicam algum sentimento de prazer; mas não vejo que, além disso, ela me ensine que dessas diversas percepções dos sentidos devêssemos jamais concluir algo a respeito das coisas que existem fora de nós, sem que o espírito as tenha examinado cuidadosa e maduramente. Pois é, ao que me parece, somente ao espírito, e não ao composto de espírito e corpo, que compete conhecer a verdade dessas coisas.

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  1. Para começar, pois, este exame, noto aqui, primeiramente, que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível. P

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  1. Enfim, noto que, como de todos os movimentos que se verificam na parte do cérebro do qual o espírito recebe imediatamente a impressão, cada um causa apenas certo sentimento, nada se pode desejar nem imaginar nisso de melhor, senão que esse movimento faça o espírito sentir, entre todos os sentimentos que é capaz de causar, aquele que é mais próprio e mais ordinariamente útil à conservação do corpo humano quando goza de plena saúde.
  2. É verdade que Deus podia estabelecer a natureza do homem de tal sorte que esse mesmo movimento no cérebro fizesse com que o espírito sentisse uma coisa inteiramente diferente: por exemplo, que o movimento se fizesse sentir a si mesmo, ou na medida em que está no cérebro, ou na medida em que está no pé, ou ainda na medida em que situado em qualquer outro lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, qualquer outra coisa, tal como ela possa ser; mas nada disso teria contribuído tão bem para a conservação do corpo quanto aquilo que lhe faz sentir.
  3. Da mesma maneira, quando temos necessidade de beber, nasce daí certa secura na garganta que move seus nervos e, por intermédio deles, as partes interiores do cérebro; e esse movimento faz com que o espírito experimente o sentimento da sede porque, nessa ocasião, nada há que nos seja mais útil do que saber que temos necessidade de beber, para a conservação da saúde; e assim quanto aos outros.
  4. Donde é inteiramente manifesto que, não obstante a soberana bondade de Deus, a natureza do homem, enquanto composto do espírito e do corpo, não pode deixar de ser, algumas vezes, falível e enganadora.

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