Filosofia Moderna I – Montaigne (GA-T2)

FILOSOFIA MODERNA I : 2019-2

GRAU A

Ubirajara Theodoro Schier


2. Montaigne: Ensaios

2- Montaigne foi um filósofo com diversas influências do pensamento clássico, como estoicismo e ceticismo, e com um estilo muito próprio de escrever. Explique quais são as principais características do ceticismo de Montaigne, particularmente na sua obra “Apologia de Raimundo Sebonde”. Exponha as principais influências do estoicismo na obra de Montaigne, particularmente em relação ao seu conceito de sujeito e também dos princípios da sociedade. Na sua exposição destaque trechos da obra de Montaigne “Diálogos”, condizentes com as análises apresentadas.

Dados biográficos:

Michel Eyquem de Montaigne (1533 – 1592) nasce e morreu no Castelo Montaigne an França. Apesar de ter nascido e morrido no mesmo lugar, a trajetória da vida pessoal de Montaigne é marcada por fases que influenciaram também o desenvolvimento de sua principal obra “Ensaios”.

1554 – 1563: Enquanto filho de uma família burguesa, formou-se em direito em 1554, onde acabou formando uma forte amizade com Etienne de la Boétie. Durante esse período, Montaigne, juntamente com Boétie, desfrutou uma vida de prazeres.

1563 – 1574: Com a morte de Boétie em 1563 e de seu pai em 1568, bem como com sua profunda decepção enquanto conselheiro de Carlos IX, recolheu-se em seu castelo a partir de 1570. Nesse período, em 1565, casou-se com Françoise de La Chassagne, com quem teve seis filhos, dos quais apenas uma menina sobreviveu. Frustrado e melancólico, Montaigne recolheu-se à torre de seu castelo, onde então, além de outras obras, redigiu a parte essencial do Livro I dos Ensaios e dos seis primeiros capítulos do Livro II. Escritos na forma de ensaio pessoal, não trata nenhum tema filosófico específico, tornando-se ele próprio objeto de análise e discussão.

1574 – 1585: Deixa a torre em 1574 e passa atuar como conselheiro de guerra e exercer funções diplomáticas, onde também, em 1576, escreve um dos capítulos mais importantes sob o ponto de vista filosófico do Livro II: “Apologia de Raymond Sabond”.  Em 1578 retoma sua obra Ensaios, publicando seu segundo livro em 1580. Exerce o cargo de prefeito de Bordeaux até 1585, onde então, em função da peste, resolve recolher-se novamente em seu castelo.

1585 – 1592: A salvo em seu castelo, escreveu o último livro dos Ensaios (Livro III) entre 1585 e 1588. Na sua ida a Paris para publicá-lo, Montaigne acaba sendo preso na bastilha por seus opositores, sendo liberto mais tarde por intercessão da rainha Catarina de Médicis. Posteriormente reintegrado à corte, conhece Mademoisselle de Gourney de 23 anos, com quem se envolveu profundamente. Com problemas de saúde, desconsidera as recomendações médicas e morre em uma missa celebrada em seu quarto em 1592.

Influências:

Apesar de Montaigne estar mais preocupado em analisar as questões sob seu ponto de vista pessoal, sem se vir obrigado a seguir ou não determinada linha filosófica, percebe-se em sua obra algumas importantes influências: O Estoicismo e o Ceticismo.

Neste trabalho caracterizaremos a influência estóica presente fundamentalmente no capítulo “De como filosofar é aprender a morrer” do Livro I e o ceticismo, presente no capítulo “A Apologia de Raymond Sebond” do Livro II.

Influências Estóicas em:

“De como filosofar é aprender a morrer”

Neste capítulo Montaigne faz uso das ideias dos antigos estóicos para formular seus próprios pensamentos a fim de problematizar as questões de sua época. Um dos aspectos centrais é que ambos afirmam que a vida deve ser guiada de acordo com os desígnios da natureza. Entre esses desígnios, talvez o mais importante enquanto objeto filosófico, é, em virtude de representar uma certeza indubitável, a morte.

“Quantas maneiras diversas tem a morte de nos surpreender? Deixo de lado as doenças, as febres, as pleurisias. Quem poderia imaginar que um duque de Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão como aconteceu a um deles, quando da entrada em Lião do Papa Clemente, meu compatriota? Não vimos um dos nossos reis morrer em folguedo? E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um porco que montava? Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora dormisse em um campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia.”

Comentário: Neste trecho, valendo-se de humor, Montaigne satiriza a morte relacionando diversas formas absurdamente atípicas e muito pouco improváveis de se morrer que se têm conhecimento.

“Para começar a despojá-la da vantagem maior de que dispõe contra nós, tornemos por caminho inverso ao habitual. Tiremos dela o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: se fosse a morte! e esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevém inopinadamente.” (MONTAIGNE, LIVRO I, pg.32)

Comentário: Neste trecho Montaigne sugere diminuir a vantagem que a morte tendo consciência dela à todo instante de forma a reagir sempre que essa consciência vier acompanhada de apreensão.

“Também se tornou em mim um hábito não somente ter sempre presente a idéia da morte como também falar dela constantemente. E nada me interessa mais do que indagar da morte das pessoas: que disseram, que atitude assumiram? Nas histórias que leio, os trechos referentes à morte são os que mais me prendem a atenção. Vê-se isso pela escolha dos meus exemplos e pela afeição particular que revelo pelo assunto. Se fosse escritor, anotaria as mortes que mais me impressionaram e as comentaria, pois quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver.”

Comentário: Neste treco Montaigne sugere que observar as mortes mais impressionantes para assim aprender a viver.

“Todos os dias levam à morte, só o último a alcança. Eis os sábios conselhos que vos dá a natureza, nossa mãe.” (MONTAIGNE, LIVRO I, pg.36)

Comentário: Neste trecho Montaigne exalta a morte como sendo um dos sábio conselhos dados pela natureza.

“Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante.”

Comentário: Refletindo acerca da morte, Montaigne conclui acerca do significado da vida frente a possibilidade da morte.

Ceticismo em:

“Apologia de Raymond Sebond”

Neste capítulo do Livro II, Montaigne faz uma apologia à obra “O Livro das Criaturas” de Raymond Sebond, traduzido pelo mesmo à pedido de seu pai. Sebond era criticado por fundamentar sua fé cristã em razões humanas e naturais, como também pela fragilidade e insuficiência de seus argumentos para provar a possibilidade de se chegar às verdades divinas pelo uso da razão. Neste ensaio, Montaigne apresenta vários argumentos contrários essencialmente à duas objeções.

“Dias antes de morrer, tendo meu pai por acaso encontrado o livro sob um monte de papéis abandonados, pediu-me que o vertesse para o francês. É tarefa das mais fáceis traduzir autores como esse, em quem o fundo é tudo; já o mesmo não ocorre com os que sacrificam muito à graça e à elegância do estilo, principalmente quando nos devemos expressar em uma língua mais pobre que a do original. Para mim tratava-se de trabalho inédito, mas ocorrendo, por felicidade, ter então alguns lazeres, e nada podendo recusar ao melhor dos pais, fiz o possível e terminei a tradução. Meu pai ficou satisfeitíssimo e quis que a obra se imprimisse, o que se fez depois de sua morte. Achei belas as idéias do autor, sólida a estrutura da obra e piedosa a sua inspiração. Como muitas pessoas se distraem em sua leitura, entre as quais senhoras a quem devemos obrigações, não raro me foi dado ajudá-las, destruindo as duas principais objeções que fazem ao livro. O objetivo deste é ousado e corajoso, pois se propõe estabelecer e provar, contra os ateus, todos os artigos de fé da religião cristã, baseando-se unicamente em razões humanas e naturais. E, em verdade, acho-o tão firme e tão brilhante desse ponto de vista, que não creio seja possível conseguir mais, nem penso que alguém o tenha conseguido.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.46)

Comentário: Montaigne introduz o capítulo relatando em que momento recebeu em suas mãos a obra de Sebond para ser traduzida e, uma vez maravilhado com a mesma, destaca as objeções à obra de Sebond que pretende derrubar com a apologia.

“A primeira objeção ao livro é que os cristãos se enganam em querer sustentar com argumentos puramente humanos uma crença que só se concebe pela fé e por intervenção particular da graça divina. ” (MONTAIGNE, Livro II, pg.46)

Comentário: Neste trecho Montaigne é bem específico em relação à objeção que irá tratar a seguir.

“É somente a fé que nos revela os inefáveis mistérios de nossa religião e nos confirma a sua verdade; o que não significa não seja bela e louvável empresa pôr a serviço dessa fé os meios de investigação que o homem recebeu de Deus. E não há como duvidar um momento sequer seja este o emprego mais digno que nos caiba dar a nossas faculdades mentais, nem exista ocupação e objetivo mais elevados para um cristão do que os de orientar seus estudos e meditações no sentido de embelezar, estender e ampliar os alicerces de sua crença.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.47)

Comentário: Aqui Montaigne ataca a primeira objeção afirmando que a razão é uma faculdade concedida pelo Divino e por isso deve ser utilizada inclusive, para ampliar o conhecimento sobre o mesmo.

“Não é crível, portanto, que esse conjunto que constitui o mundo, que essa admirável máquina não revele vestígios denunciadores da presença do grande arquiteto que a construiu e que não se perceba em algumas de suas peças algo suscetível de lembrar o artesão que as fez e juntou. E, efetivamente, Suas obras principais denotam o caráter de Sua divindade, o qual somente a nossa fraqueza impede de perceber. Pois, como diz Deus, Suas obras invisíveis manifestam-se pelas visíveis. Sebond dedicou-se a esse estudo digno de nossa atenção, mostrando-nos que nada neste mundo desmente a grandeza do Criador. Aliás seria contrário à bondade divina que o universo não oferecesse apoio à verdade de nossa fé: o céu, a terra, os elementos, nosso corpo e nossa alma, tudo concorre para justificá-la. Cabe-nos encontrar o meio de utilizarmos tudo isso.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.48)

Comentário: Neste ponto reforça o posicionamento de Sebond no que diz respeito praticamente ao dever de se valer da razão como ferramenta do divino.

“De sorte que podemos dizer com razão aos seus adversários:

”Si melius quid habes, accerse, vel imperium fer” – Se tendes melhores argumentos, apresentai-os; se não, concordai” [Horácio].

Reconheçam a validez de nossas provas ou nos dêem outras mais substanciais. E eis-me, sem dar por isso, a discutir a segunda objeção que me proponho refutar em nome de Sebond. Há quem ache seus argumentos fracos, insuficientes para provar o que desejam provar e facilmente refutáveis. Essa gente merece que lhe responda com mais energia, pois é mais perigosa porque mais maliciosa. Deturpam de bom grado as palavras alheias no intuito de valorizar as próprias: para o ateu tudo o que se escreve tem alguma relação com o ateísmo e ele envenena com seu próprio veneno o mais inocente pensamento.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.49)

Comentário: Neste trecho Montaigne já encerra seus argumentos em relação à primeira objeção – criticando fortemente as objeções para as quais são foram apresentados argumentos melhores que os de Sebond – e introduz a segunda objeção que tratará a seguir.

“O meio que emprego para rebater essa objeção – e me parece o mais adequado – é o de humilhar e espezinhar o orgulho e a arrogância do homem; o de lhe fazer sentir sua inanidade, sua vaidade, seu vazio; de lhe arrancar das mãos as armas mesquinhas que lhe fornece a razão; de o forçar a inclinar-se e beijar o chão ante a autoridade e imponência da divina majestade. Só a esta pertencem a ciência e a sabedoria; só ela pode avaliar sozinha alguma coisa e dela tiramos aquilo com que nos enfeitamos e tanto prezamos em nós.”

ComentárioNeste trecho Montaigne explica que irá refutar a segunda objeção desacreditando nas ditas verdades relevadas pelo homem. Para isso utilizará argumentos influenciados essencialmente pelo ceticismo.

“Que me explique pelo raciocínio em que consiste a grande superioridade que pretende ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza a pensar que o movimento admirável da abóbada celeste, a luz eterna dessas tochas girando majestosamente sobre sua cabeça, as flutuações comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuem a existir unicamente para sua comodidade e serviço? Será possível imaginar algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilégio que se arroga de ser o único capaz, nesse vasto edifício, de lhe apreciar a beleza? “

Comentário: Um dos argumentos apresentados por Montaigne contrapõe as críticas dos ateus, expondo a fragilidade do conhecimento alcançado por meio da razão e que, se dependesse apenas dele, o conhecimento seria limitado. Neste trecho, Montaigne lembra que durante séculos todos os astros giravam em torno da Terra e que depois da descoberta de Galileu revelou-se o contrário (que era a Terra quem girava em torno do sol).

“Eis por que eu não digo que não haja razão para pensar que os animais fazem instintivamente e determinadamente o que nós mesmos fazemos por vontade e invenção próprias. Os mesmos resultados decorrem de idênticas faculdades, e quanto mais ricos os resultados mais ricas as faculdades, o que nos leva a concluir que raciocínios e meios idênticos aos que acompanham nossos atos acompanham os atos dos animais, os quais têm, ocasionalmente, faculdades superiores às nossas. Por que imaginar que neles a ação é maquinal e em nós mesmos não? Além do que, é muito mais fácil ser obrigado a agir acertadamente, por natural e inevitável constituição, o que nos aproxima ainda mais de Deus, do que agir acertadamente por livre e espontânea vontade, exposto a erros e temeridades. Nestas condições, o melhor seria abandonarmos à natureza o cuidado de orientar nossa maneira de fazer. ” (MONTAIGNE, Livro II, pg.54)

ComentárioDepois de ter apresentado algumas analogias comparando às capacidades humanas às dos animais (com o propósito de reduzir a arrogância do homem), Montaigne conclui, recomendando assim, que o homem assim como os animais, deveria considerar a agir segundo suas faculdades naturais e divinas. Com essa argumentação, Montaigne busca, equiparando as capacidades humanas das dos animais, colocar em dúvida quaisquer verdades que o homem venha a alcançar somente por meio da razão.

“Não há seita filosófica que não seja forçada a praticar e seguir infinidade de preceitos que não compreende nem aceita, se quer viver no mundo. Quando por exemplo quer viajar por mar tem que o fazer sem saber se terá êxito ou não; calcula que o navio é bom, o piloto experimentado, favorável o vento. São probabilidades apenas a que precisa entregar-se, confiando nas aparências. Tem um corpo e uma alma, impelem-no os sentidos, agita-o o espírito. Ainda que não sinta em si essa competência especial de julgar e reconheça que não pode pronunciar-se com segurança, porquanto tudo pode ser falso embora pareça verdadeiro, não deixa de conduzir sua vida nas condições mais cômodas e melhores.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.72)

ComentárioNeste trecho Montaigne reforça que a verdade nunca será absoluta, mas que nem por isso o aparentemente verdadeiro perde seu valor.

Se a alma tivesse conhecimento de alguma coisa, é provável que seria primeiramente dela mesma; se conhecesse algo exterior a ela, seria antes de tudo seu corpo, seu estojo; Até quando deveremos esperar que se ponham de acordo! Estamos mais próximos de nós que a brancura da neve ou o peso da pedra; se o homem não se conhece a si mesmo, como pode conhecer sua força e por que se encontra na terra? É por acaso que temos alguma noção da verdade, e como é igualmente por acaso que o erro penetra nossa alma, não somos capazes de distinguir o certo do errado, nem escolher entre um e outro.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.95)

ComentárioApós discorrer acerca do conhecimento da alma do homem, Montaigne coloca-a também de lado, reforçando a ideia de que o homem, por não conhecer nem a si mesmo, é consequentemente limitado para conhecer as verdades do mundo.

“Além dessa inumerável diversidade de opiniões, é fácil verificar, pela confusão em que nos joga e a incerteza que todos sentem, que nosso julgamento não tem fundamento sólido. Quantas vezes julgamos diversamente as coisas? Quantas vezes mudamos de idéias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível; todas as nossas faculdades, todos os nossos órgãos se apossam dessa opinião e por ela respondem quanto podem; não poderia aceitar outra verdade nem a conservar com maior convicção; a ela dei-me por inteiro. Mas não me aconteceu, e não uma vez porém cem ou mil, e diariamente, ter aceito do mesmo modo alguma coisa que posteriormente considerei falsa? Que ao menos nos tornemos sensatos a expensas nossas! Se tantas vezes fui traído por meu julgamento, se essa pedra de toque é em geral defeituosa, se a balança está mal regulada, que garantia a mais posso ter desta vez? Não será tolice deixar-me enganar por semelhante guia? E no entanto, ainda que o destino nos leve a mudar quinhentas vezes de idéia, a última, a atual será a verdadeira, a infalível.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.95)

ComentárioNeste trecho Montaigne reflete a naturalidade com a qual os homens constroem e desconstroem suas ideias de forma que nunca se pode dizer que a última é a derradeira.

“São em verdade os limites mais recuados de nossas faculdades:

”Seorsum cuique potestas Divisa est, sua vis cuique est” – Cada qual tem seu poder, cada qual sua própria força” [Lucrécio]

É impossível fazer com que um homem naturalmente cego deseje ver e lamente a ausência do sentido de que carece. Portanto não devemos vangloriar-nos da satisfação de nossa alma com os que temos, pois ela não pode sentir sua imperfeição, se a tem. É impossível, pelo raciocínio, a analogia ou a similitude, fazer que a imaginação de um cego adquira a menor noção do que venham a ser a luz, a cor, a vista. Nada nele pode induzi-lo a uma idéia do sentido que lhe falta. Quando um cego de nascença afirma que desejaria ver, não o faz por compreender o que exprime; di-lo, aponta efeitos e conseqüências, mas ignora, em verdade, o que seja, não o concebe, nem muito nem pouco.” (MONTAIGNE, Livro II, pg.106)

ComentárioNeste trecho Montaigne afirma que o conhecimento é limitado pelas capacidades que o homem percebe em si e as utiliza, mas este não poderá sequer imaginar aquilo que somente pode ser percebido pelas faculdades que lhes faltam.

“É com efeito impossível e contrário à natureza, um punhado maior do que o punho, uma braçada maior do que o braço, um passo maior do que a perna. Não pode tampouco ocorrer que o homem se eleve acima de si mesmo e da humanidade, porque só pode ver com seus olhos e apreender com seus próprios meios. Elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e de se deixar erguer e elevar-se unicamente pelos meios que lhe vêm do céu. É nossa fé cristã, e não a virtude estóica dos filósofos, que pode operar essa divina e milagrosa metamorfose.”

ComentárioAqui Montaigne encerra sua reflexão acerca da limitação da razão e da necessidade de reconhecimento das fronteiras do conhecimento alcançado.


REFERÊNCIAS

MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios; [compilado por Roberto B. Cappelletti]. – 2005.

 

 

 

 

 

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