Montaigne – Ensaios, Livro I: Capítulo “De como filosofar é aprender a morrer”

“Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque de toda sabedoria e inteligência resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura [Eclesiastes, III, 12].”


“Digam o que disserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia. E agrada-me repetir essa palavra que pronunciam constrangidos. E se significa prazer supremo e extremada satisfação melhor se deva ela à virtude do que a qualquer outra causa, pois a volúpia, robusta e viril, é a mais seriamente voluptuosa. E deveríamos chamá-la prazer, denominação mais feliz e mais natural, do que a de vigor que lhe damos. “


“Um dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude e faz se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência. E, sem esses sentimentos, toda volúpia é sem encanto. Eis por que todos os sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para ele convergem. “


“A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira?

Qui capite ipse suo instituit vestigia retro,

Por que não coloca o freio no rabo do asno, desde que meteu na cabeça andar de costas? [Lucrécio]. Não há como estranhar caia tão amiúde na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo. E como ela é mencionada nos testamentos, só resolvem fazer o seu quando os condenou o médico. “


“Mas jovens e velhos se vão da vida em condições idênticas. Partem todos como se acabassem de chegar, sem contar que não há homem tão decrépito ou velho ou alquebrado que não alimente a esperança da longevidade de Matusalém, e não tenha ainda vinte anos de vida diante de si. “


“Quem poderia imaginar que um duque de Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão como aconteceu a um deles, quando da entrada em Lião do Papa Clemente, meu compatriota? Não vimos um dos nossos reis morrer em folguedo? E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um porco que montava? Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora dormisse em um campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia. Houve quem sucumbisse em conseqüência de uma semente de uva engolida; outro, imperador, morreu de uma arranhadura feita com o pente; Emílio Lépido em virtude de uma topada na porta de sua casa; Aufídio por ter batido com a cabeça no batente da entrada da sala do Conselho. E entre as coxas das mulheres: o pretor Cornélio Galo, Tigelino, comandante da guarda de Roma, Ludovico, filho de Gui de Gonzaga, Marquês de Mântua, e, o que é péssimo exemplo, Spensipo, filósofo platônico. E até um papa de nosso tempo. O pobre Bebius, que era juiz, ao adiar o julgamento de certa causa, morreu subitamente; chegara a sua hora. O médico Caio Julius, ao tratar dos olhos de um enfermo, teve os seus próprios fechados para sempre. E, para misturar-me à enumeração: um dos meus irmãos, Capitão Saint Martin, de vinte e quatro anos e que já dera provas sobejas de seu valor, foi atingido por uma bola logo abaixo da orelha direita quando jogava péla. Nem vestígio nem contusão; não se sentou sequer, não interrompeu o jogo; no entanto cinco ou seis horas depois, ei-lo atacado de apoplexia causada pelo golpe recebido. Tais exemplos são tão freqüentes, repetem-se tão comumente diante de nossos olhos, que não parece possível evitar se oriente nosso pensamento para a morte, nem negar que a cada instante nos ameace ela. Que importa o que possa acontecer, direis, se não nos preocupamos com isso? “


“Praetulerim … delirus inersque videri, Dum mea delectent mala me, vel denique fallant, Quam sapere, et ringi. – Prefiro passar por louco, ou impertinente, se meu erro me agrada ou não o percebo, a ser sábio e sofrer. [Horácio]. 


“Ille licet ferro cautus, se condat et aere, Mors tamen inclusum protrahet inde caput – Cobri-vos de ferro e de bronze, a morte vos atingirá sob a armadura. [Horácio]”


“Para começar a despojá-la da vantagem maior de que dispõe contra nós, tornemos por caminho inverso ao habitual. Tiremos dela o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: se fosse a morte! e esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevém inopinadamente. É o que faziam os egípcios quando em seus festivais e votados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida: 

Omnem crede diem tibi diluxisse supremum Grata superveniet, quae non sperabitur, hora. – Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas” [Horácio].

Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento. “


“A cada instante tenho a impressão de haver chegado minha última hora, e repito sem cessar: o que devera ocorrer fatalmente um dia pode acontecer hoje. Efetivamente, os acasos e perigos a que estamos expostos pouco ou nada nos aproximam do fim. E se pensarmos em quantos acidentes podem ameaçar-nos, além dos que imaginamos iminentes, deveremos reconhecer que no mar como no lar, na guerra como no retiro, a morte sempre se encontra perto de nós:
Nemo altero fragilior est; nemo in crastinum sui certior. – Nenhum homem é mais frágil do que outro, nenhum tem assegurado o dia seguinte” [Sêneca] “


“Quid brevi fortes jaculamur avo Multa? – Por que, em tão curta vida, fazer tantos projetos? [Horácio].

Suficiente trabalho teremos com esses nossos negócios próprios, para que nos embaracemos com outros. “


“Nunca homem se apresentou mais bem preparado para deixar a vida no momento necessário e sem a menor dissimulação. Ninguém se desprendeu melhor e mais completamente da vida do que eu. As mortes mais integrais são as mais desejáveis. “


“Também se tornou em mim um hábito não somente ter sempre presente a idéia da morte como também falar dela constantemente. E nada me interessa mais do que indagar da morte das pessoas: que disseram, que atitude assumiram? Nas histórias que leio, os trechos referentes à morte são os que mais me prendem a atenção. Vê-se isso pela escolha dos meus exemplos e pela afeição particular que revelo pelo assunto. Se fosse escritor, anotaria as mortes que mais me impressionaram e as comentaria, pois quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver. Dicearcus escreveu um livro com
esse título, porém diferente e menos útil em seu objetivo.
 “


“Lastimar não mais viver dentro de cem anos é tão absurdo quanto lamentar não ter  nascido um século antes. A morte é origem de outra vida. “


“Nascentes morimur, finisque ab origine pendet. – Nascer é começar a morrer; o último instante de vida é conseqüência do primeiro. [Manílio]. “


“Cur non ut plenus vita; conviva recedis? – Por que não sair do banquete da vida como um conviva saciado? [Lucrécio]. “


“A vida em si não é um bem nem um mal. Torna-se bem ou mal segundo o que dela fazeis. E se vivestes um dia já vistes tudo, pois um dia é igual a todos os outros. Uma é a luz, uma é a noite. Esse sol, essa lua, essas estrelas, em sua disposição, são os mesmos que apreciaram vossos antepassados e que conhecerão vossos descendentes. “


“Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. “


“Ensinei a Tales, o primeiro entre vossos sábios [filósofos], que viver e morrer são igualmente indiferentes; o que o impeliu a responder muito sabiamente a alguém que lhe perguntava por que então não se matava: porque é indiferente. “


 

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