“É em verdade a ciência coisa importante e útil. Os que a desprezam dão prova de estupidez. Não considero entretanto seu valor tão elevado quanto o imaginam alguns, como o filósofo Herilo, por exemplo, que a encara como o soberano bem e lhe atribui o poder que não tem, a meu ver, de nos tornar sensatos e satisfeitos. Ou como outros que nela vêem a mãe de todas as virtudes, resultando da ignorância todos os vícios.”
A primeira objeção ao livro é que os cristãos se enganam em querer sustentar com argumentos puramente humanos uma crença que só se concebe pela fé e por intervenção particular da graça divina.
…
É somente a fé que nos revela os inefáveis mistérios de nossa religião e nos confirma a sua verdade; o que não significa não seja bela e louvável empresa pôr a serviço dessa fé os meios de investigação que o homem recebeu de Deus. E não há como duvidar um momento sequer seja este o emprego mais digno que nos caiba dar a nossas faculdades mentais, nem exista ocupação e objetivo mais elevados para um cristão do que os de orientar seus estudos e meditações no sentido de embelezar, estender e ampliar os alicerces de sua crença. Não nos contentemos com colocar ao serviço de Deus nosso espírito e nossa alma; devemos também prestar-Lhe uma homenagem física, pois todos os nossos órgãos, todos os atos e atitudes concorrem para a Sua glorificação.
Nossa razão deve agir do mesmo modo e dedicar-se a amparar nossa fé, sempre porém sob a reserva de não imaginar que por si só, pela força que pode alcançar, lhe seja dado adquirir essa ciência sobrenatural que provém de Deus.
Se essa ciência não nos penetrasse por extraordinária graça, se não entrasse em nós senão pela força do raciocínio e outros processos humanos, não ocuparia o lugar nem teria o esplendor que deve ter. Creio, porém, que assim é que nos penetra. Se estivéssemos unidos a Deus por uma fé ardente, se a Ele nos prendêssemos por Ele próprio e não por nós, se nossa fé assentasse em fundamento divino, as tentações humanas não teriam o poder de nos abalar como têm; resistiríamos sem dificuldade a tão fracos assaltos.”
“Deveríamos envergonhar-nos. O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja, a ela adapta rigorosamente sua conduta, e nós outros cristãos só nos unimos à nossa divina doutrina por palavras. Quereis a prova? Comparai nossos costumes aos dos maometanos e pagãos e vede quanto os nossos são inferiores, mesmo quando devido à superioridade de nossa religião deveríamos brilhar extraordinariamente. Cumpriria que dissessem: são justos, caridosos, bons, logo devem ser cristãos. O resto é comum a todas as religiões: a esperança, a confiança, os acontecimentos que fortalecem, as cerimônias, as penitências, os mártires. O que deveria distinguir a nossa verdade fora a virtude, o mais celestial distintivo, o mais digno e mais árduo produto da verdade. É porque não somos o que deveríamos ser, que nosso bom São Luís insistia em desaconselhar o rei tártaro que se convertera a vir a Lião beijar os pés do papa e admirar a pureza de nossos costumes, pois temia que, ao contrário, nossos desregramentos lhe esgotassem a admiração por nossas crenças. “
“Ora, Deus deve Seu apoio extraordinário à fé e à religião e não a nossas paixões. E nessa luta são os homens que a orientam. Para eles a religião é um meio, quando deveria ser um fim. Atentai para os acontecimentos e vereis como acomodamos a religião, tal qual uma cera mole, a nossos caprichos, obrigando-a a assumir as formas que queremos. Jamais se viu em França semelhante abuso. Que a puxem para a esquerda ou para a direita, que digam branco ou preto, todos a colocam igualmente a serviço de suas ambições, e agem de maneira tão idêntica em seus desregramentos e injustiças que tornam difícil acreditarmos na divergência de opiniões que alegam para justificar seus atos, porquanto nossa opinião é que deve inspirar nossa conduta e regular nossa vida. Uma só e mesma escola, com os mesmos princípios, não produziria costumes mais homogêneos, mais uniformes. Vede a horrível impudência com que jogamos com a palavra divina, a irreligiosidade com que acolhemos ou rejeitamos, segundo o lugar que nos assinam os fados nessas tempestades públicas. Que partido, há um ano, sustentava solenemente ser permitido ao cidadão revoltar-se e armar-se contra seu rei em defesa de sua religião? Que defendia o partido contrário? E vede de que lado se situam um e outro agora, e se as armas se entrechocam menos por se terem invertido as posições! E queimamos as pessoas que afirmam ser preciso modificar a verdade de acordo com os interesses de nossa causa! Sejamos francos: se selecionássemos no exército, mesmo no exército da legalidade, os que servem unicamente para defender sua fé, e até os que
querem o império da lei e do príncipe, não se constituiria com eles uma companhia sequer. Como se explica que sejam tão poucos os que permanecem fiéis à sua fé, qualquer que seja o desenvolvimento dos sucessos, e tão numerosos os que ora vão
a passo e ora a galope, e malbaratam os nossos interesses passando da violência à moleza e à indiferença? Não será porque a massa obedece a considerações pessoais e ocasionais, cuja diversidade a impulsiona?
É evidente, para mim, que somente nos conformamos com os deveres que se coadunam com nossas paixões. Não há hostilidade mais eficaz que a dos cristãos. Nosso zelo é capaz de maravilhas quando secunda nossa inclinação natural para o ódio, a crueldade, a ambição, a avareza, a intriga, a rebeldia. Ao contrário, só por milagre, ou temperamento especial, nada nos induz à bondade, à benevolência e à moderação. Nossa religião tem por objetivo extirpar os vícios; mas fazem com que os dissimule, os alimente e os incentive. É preciso não trapacear com Deus. Se acreditássemos n’Ele – não chego a dizer setivéssemos fé –, se tão-somente acreditássemos n’Ele, e com vergonha o digo, se O tivéssemos em nós como um amigo, por exemplo, nós O amaríamos acima de tudo pela Sua infinita bondade, e pela beleza que n’Ele resplende. Ao menos ocuparia Ele o mesmo lugar que ocupam as riquezas, os prazeres, a glória, os companheiros. O melhor dentre nós, que receia magoar seu vizinho, seus parentes, seu mestre, não teme ultrajá-lo. Haverá alguém, por mais simples de espírito que seja, que não queira trocar um desses prazeres que nos oferecem os vícios pela esperança de uma glória eterna? E no entanto quantas vezes renunciamos a essa glória por simples desdém, pois, que nos induz à blasfêmia senão o próprio desejo de ofender? “
“Tudo isso é sinal muito evidente de que não compreendemos nossa religião, senão a nosso modo e a nosso bel-prazer, como compreendemos qualquer outra religião. Se é nossa, é porque o destino nos fez nascer em um país onde ela existe, porque é
muito antiga, ou porque os homens que a estabeleceram merecem nosso respeito, ou porque tememos os castigos com que ameaça os que não a seguem, ou ainda porque nos seduzem suas promessas. Todas essas considerações podem pesar em nossas crenças, mas são secundárias; são laços de ordem puramente humana. Em outras regiões, outras influências, promessas e ameaças poderiam igualmente impor-nos outras crenças. Somos cristãos como somos perigordinos ou alemães. “
“Platão conclui – e os exemplos o confirmam – que pela razão ou pela força somos sempre levados a crer na existência de Deus. O ateísmo é uma concepção monstruosa e antinatural, e difícil de ser aceita pelo espírito humano, ainda que insolente e anárquico, embora se encontre quem a ostente, seja por rebeldia, seja pela vaidade de emitir opiniões originais e reformadoras; mas se esses ateus são bastante loucos para se dizerem ateus, não são suficientemente fortes para implantar tal convicção em sua consciência. “
“Não é crível, portanto, que esse conjunto que constitui o mundo, que essa admirável máquina não revele vestígios denunciadores da presença do grande arquiteto que a construiu e que não se perceba em algumas de suas peças algo suscetível de lembrar o artesão que as fez e juntou. E, efetivamente, Suas obras principais denotam o caráter de Sua divindade, o qual somente a nossa fraqueza impede de perceber. Pois, como diz Deus, Suas obras invisíveis manifestam-se pelas visíveis. Sebond dedicou-se a esse estudo digno de nossa atenção, mostrando-nos que nada neste mundo desmente a grandeza do Criador. Aliás seria contrário à bondade divina que o universo não oferecesse apoio à verdade de nossa fé: o céu, a terra, os elementos, nosso corpo e nossa alma, tudo concorre para justificá-la. Cabe-nos encontrar o meio de utilizarmos tudo isso. “
”Si melius quid habes, accerse, vel imperium fer – Se tendes melhores argumentos, apresentai-os; se não, concordai. [Horácio]
Reconheçam a validez de nossas provas ou nos dêem outras mais substanciais. E eis-me, sem dar por isso, a discutir a segunda objeção que me proponho refutar em nome de Sebond. Há quem ache seus argumentos fracos, insuficientes para provar o que desejam provar e facilmente refutáveis. Essa gente merece que lhe responda com mais energia, pois é mais perigosa porque mais maliciosa. Deturpam de bom grado as palavras alheias no intuito de valorizar as próprias: para o ateu tudo o que se escreve tem alguma relação com o ateísmo e ele envenenacom seu próprio veneno o mais inocente pensamento. “
“O meio que emprego para rebater essa objeção – e me parece o mais adequado – é o de humilhar e espezinhar o orgulho e a arrogância do homem; o de lhe fazer sentir sua inanidade, sua vaidade, seu vazio; de lhe arrancar das mãos as armas mesquinhas que lhe fornece a razão; de o forçar a inclinar-se e beijar o chão ante a autoridade e imponência da divina majestade. Só a esta pertencem a ciência e a sabedoria; só ela pode avaliar sozinha alguma coisa e dela tiramos aquilo com que nos enfeitamos e tanto prezamos em nós.”
“Consideremos, pois, um momento o homem isolado, abandonado a si próprio, armado unicamente de graça e conhecimento de Deus, o que constitui sua honra e toda a sua força, e o fundamento de seu ser; e vejamos o de que é capaz com esse equipamento. Que me explique pelo raciocínio em que consiste a grande superioridade que pretende ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza a pensar que o movimento admirável da abóbada celeste, a luz eterna dessas tochas girando majestosamente sobre sua cabeça, as flutuações comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuem a existir unicamente para sua comodidade e serviço? Será possível imaginar algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilégio que se arroga de ser o único capaz, nesse vasto edifício, de lhe apreciar a beleza? E de poder sozinho render graças ao arquiteto, e de lhe computar os recursos e os valorizar? Que nos dê as provas de tão grande e admirável faculdade, nem mesmo aos mais sábios concedida!”
“Por que os julgaremos privados de alma, vida, razão? Deram-nos porventura provas de estupidez e insensibilidade, a nós que não temos outras relações senão de dependência? Diremos que nunca constatamos em nenhuma criatura outra que o homem o testemunho de uma alma dotada de razão? E que provaria isso? Nada vemos que se assemelhe ao sol, mas do fato de nada termos visto de semelhante concluiremos que não existe, como não existiriam seus movimentos de rotação porque não conhecemos coisa equivalente? Se tudo o que não vemos não existisse, nossa ciência se acharia muito empobrecida:
Quæ sunt tantæ animi angustiæ? – Tão estreitos são os limites de nosso espírito? [Cícero]”
“A presunção é doença natural e inata em nós. De todas as criaturas, a mais frágil e miserável é o homem, mas ao mesmo tempo, como diz Plínio, a mais orgulhosa. Ele se sente e se vê colocado na lama e no esterco do mundo, amarrado, pregado à pior parte do universo, à mais morta, à mais afastada dos céus, junto com os animais da mais baixa categoria das três existentes, e ei-lo que pela imaginação se alça acima da órbita da lua e supõe o céu a seus pés! Pela vaidade mesma dessa imaginação, iguala-se a Deus, atribuindo-se a si próprio qualidades divinas que ele mesmo escolhe. Separa-se das outras criaturas; distribui as faculdades físicas e intelectuais que bem entende aos animais, seus companheiros. Como pode conhecer com sua inteligência os móveis interiores e secretos deles? Em virtude de que comparações entre eles e nós chega à conclusão de que são estúpidos? Quando brinco com minha gata, sei lá se ela não se diverte mais do que eu.”
“Constatamos que na maior parte de seus trabalhos e obras os animais nos são superiores e que nossa arte não consegue imitar-lhes com grande êxito as realizações, e no entanto no que fazemos, inferior ao que fazem os bichos, pomos toda a nossa alma e apelamos para todas as nossas faculdades. Por que não acreditarmos que agem de igual maneira? Que motivo nos leva a atribuir a não sei que instinto natural e servil tais obras que somos incapazes de levar a cabo, nem por instinto nem com a ajuda da razão?”
“A natureza cuida igualmente de todas as suas criaturas. Não há nenhuma que ela não tenha abundantemente provido de meios necessários à sua conservação. E as recriminações que ouço (pois a licença de nossas opiniões ora nos eleva acima das nuvens ora nos rebaixa aos antípodas) carecem de fundamento. Dizem essas queixas que o homem é o único animal abandonado nu sobre a terra nua. Chega amarrado, arrochado, e para se armar e se defender precisa recorrer aos despojos de outrem. A natureza revestiu todas as criaturas de carapaças, casca, pelos, lã, espinhos, couro, escamas, seda, segundo suas necessidades; armou-as de garras, dentes e chifres para o ataque e a defesa, ensinando-lhes ainda nadar, correr, voar, cantar, ao passo que o homem não pode, sem aprendizado, andar, falar, comer. Apenas sabe chorar.”
“Mas as exigências desregradas dos nossos apetites crescem mais do que a nossa possibilidade de satisfazê-los. Quanto às armas, a natureza nos deu maior número do que aos animais. Nossos membros são capazes de mais movimentos e deles tiramos melhor partido, sem mesmo nos termos exercitado antes. E os homens que se habituaram a combater nus enfrentam os mesmos perigos que nós; e se alguns animais levam vantagem sobre nós, em relação a muitos outros a vantagem é nossa. E a precaução de aumentar nossa força e de nos proteger por meios artificiais é em nós instintiva. O elefante afia os dentes que emprega na luta (tem-nos especialmente para tal fim); o touro envolve-se em uma nuvem de pó que levanta raspando o solo com os cascos; o javali aponta suas defesas; quando o mangusto resolve atacar o crocodilo, cobre o corpo com uma camada de lama bem compacta e amassada, que forma uma espécie de couraça. Será menos natural o fato de fabricarmos armas de madeira e ferro? Quanto à linguagem, pode-se dizer que se não é natural tampouco é imprescindível. Penso que uma criança entregue a si mesma e criada em pleno isolamento, sem relações com outros seres humanos (experiência difícil de se realizar) inventaria uma espécie de palavra para se exprimir. Não é admissível que a natureza nos tenha negado esse instrumento que deu a muitos outros animais, pois que outra coisa será, senão uma linguagem, isso que lhes permite queixar-se ou manifestar sua alegria, chamar por socorro, ou para o amor, o que fazem por meio da voz? Por que não falariam conosco? E não falamos com eles? Quantas coisas dizemos nós aos cães, que eles compreendem e a que respondem! A linguagem que com eles empregamos não é a mesma que nos serve para falar aos pássaros, aos porcos, aos bois, aos cavalos. Mudamos de idioma segundo o animal a que nos dirigimos.”
Disse tudo isso para estabelecer a semelhança que há entre os seres da criação e ecolocarmos-nos entre as demais criaturas. Não estamos acima nem abaixo delas. Tudo o que existe sob os céus está sujeito à mesma lei e às mesmas condições: ”Indupedita suis fatalibus omnia vinclis” ”Tudo se prende ao destino” [Lucrécio] Há diferenças, ordens e graus diversos, mas de um modo geral os caracteres essenciais são os mesmos:
Res quæque suo ritu procedit, et omnes Foedere naturæ certo discrimina servant – Cada coisa tem sua organização própria, e todas conservam as diferenças estabelecidas pela natureza. [Lucrécio]”
“Eis por que eu não digo que não haja razão para pensar que os animais fazem instintivamente e determinadamente o que nós mesmos fazemos por vontade e invenção próprias. Os mesmos resultados decorrem de idênticas faculdades, e quanto mais ricos os resultados mais ricas as faculdades, o que nos leva a concluir que raciocínios e meios idênticos aos que acompanham nossos atos acompanham os atos dos animais, os quais têm, ocasionalmente, faculdades superiores às nossas. Por que imaginar que neles a ação é maquinal e em nós mesmos não? Além do que, é muito mais fácil ser obrigado a agir acertadamente, por natural e inevitável constituição, o que nos aproxima ainda mais de Deus, do que agir acertadamente por livre e espontânea vontade, exposto a erros e temeridades. Nestas condições, o melhor seria abandonarmos à natureza o cuidado de orientar nossa maneira de fazer. Mas somos tão presunçosos que preferimos dever o que somos capazes de fazer a nossas forças a dever à liberalidade divina nosso valor e nossas possibilidades. E enriquecemos os animais com bens naturais a que renunciamos, achando mais honrosos e nobres os que nos cumpre adquirir; e isso, a meu ver, por simplicidade de espírito, pois apreciaria muito mais prendas inatas e pessoais do que as que precisasse mendigar e exigissem aprendizado. Não está ao nosso alcance obter melhor recomendação que a de ser favorecido por Deus e pela natureza.”
“Dizemos que graças à ciência e à razão, o homem obtém os conhecimentos necessários para distinguir as coisas úteis à sua alimentação, e ao tratamento de suas enfermidades, das que lhe são nocivas. Assim pode saber quais as virtudes do ruibarbo e do polipódio. Mas quando vemos que as cabras de Cândia, ao se ferirem, escolherem entre mil ervas o ditamno para sua cura; a tartaruga que comeu víbora, procurar o orégão para se purgar; o dragão limpar os olhos com funcho; a cegonha ministrar-se clisteres de água do mar; os elefantes retirarem do seu próprio e dos corpos de seus companheiros, e até dos de seus donos (como temos o exemplo no Rei Porus vencido por Alexandre) os dardos e flechas, com uma destreza sem igual; como não atribuir tais fatos igualmente à ciência e à sabedoria dos animais? Alegar, para amesquinhá-los, que obedecem simplesmente à natureza, sua orientadora, realmente não significa que careçam de saber e discernimento, significa, isso sim, que possuem essas qualidades em mais alto grau do que nós, graças a tão admirável professora.”
“Ensinar os outros exige maior raciocínio do que aprender. “
“O fato seguinte, citado pelo filósofo Cleantes, apresenta alguma analogia com o que nós mesmos praticamos. Viu ele formigas carregarem para outro formigueiro o corpo de uma companheira morta. Deste segundo formigueiro saíram várias formigas que foram ao encontro das primeiras como a parlamentar. Depois de uns instantes juntas, voltaram as últimas, talvez para conferenciar com as companheiras de seu próprio formigueiro. Assim fizeram duas ou três vezes, provavelmente em conseqüência de dificuldades nas negociações. Finalmente trouxeram uma minhoca, dir-se-ia a fim de resgatar o corpo da morta. As primeiras carregaram então o verme, deixando o pequeno cadáver às outras. Cleantes vê nisso uma prova de que, embora certos animais não tenham voz, não são desprovidos de meios de comunicação. E considera uma inferioridade nossa não podermos participar dessas relações, e uma tolice arvorarmo-nos em juízes. Os animais fazem ainda muitas coisas que ultrapassam de muito aquilo de que somos capazes, que não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos permite sequer conceber.”
“O camaleão toma a cor do meio em que se encontra. O polvo vai mais longe: colora-se da cor que bem entende segundo as circunstâncias, seja para fugir a um animal que teme, seja para atingir o que deseja pegar. No camaleão, a mudança não se subordina à sua vontade; no polvo, sim. Nosso rosto também muda por vezes de cor sob a influência do terror, da cólera, da vergonha e outras emoções e sentimentos; resulta de uma causa que a impõe, como no caso do camaleão. Sob o efeito da icterícia tudo amarelece, independentemente de nossa vontade. Essas coisas que os animais podem fazer e que não conseguimos igualar são uma prova de que, em certos pontos, eles possuem meios mais desenvolvidos do que os nossos, e de nós ignorados. E é possível – e provável – que outros haja cuja existência nada nos revele.”
“Quanto ao resto, a parte mesma dos benefícios da natureza que concedemos aos animais é vantajosa a estes. Atribuímo-nos bens imaginários e sobrenaturais, bens futuros e remotos, e de cuja posse o homem é incapaz de se assegurar; ou bens que em virtude do desregramento de nosso espírito pretendemos falsamente possuir, como a razão, a ciência, a honra. Aos outros seres deixamos, em compensação, os que são materiais e palpáveis: a paz, o repouso, a segurança, a inocência, a saúde, o mais admirável e rico presente que podemos receber da natureza, pois até a filosofia estóica declara que se Heráclito e Ferecides tivessem podido trocar sua sabedoria pela saúde e livrar-se com isso, um da hidropisia e outro da doença cutânea que o atormentava, houveram-no feito de bom grado. Do que se deduz que dão maior valor ainda a essa sabedoria, que comparam à saúde, do que nesta outra proposição igualmente deles filósofos: se Circe tivesse apresentado a Ulisses dois filtros com a propriedade, um deles,64 de tornar um louco sábio e o outro um sábio louco, devia Ulisses preferir a loucura a ver-se metamorfoseado à semelhança de um animal, pois a própria sabedoria teria dito: ”deixa-me, abandona-me, de preferência a alojar-me em um corpo de asno”. E eis nossos filósofos a darem menor importância à grande e divina ciência que à carcaça de nosso corpo nesta terra! Não são pois a razão, a reflexão ou a alma que nos tornam superiores aos animais; são nossa beleza, nossa linda tez, a harmônica disposição de nossos membros, ao lado do que nossa inteligência, nossa prudência e o resto são de pouca valia. Tomo nota de tão ingênua e franca confissão, pois significa que reconhecem que as prendas de que tanto nos vangloriamos não passam de fantasia. E assim, ainda que os animais tivessem todas as virtudes, a ciência, a sabedoria, a inteireza dos estóicos, continuariam animais e não poderiam ombrear com um homem miserável, mau e insensato! A meu ver, em suma, tudo o que não se nos assemelha nada vale. Deus mesmo, e é um ponto a que tornaremos, vale somente porque é feito a nosso modo. Disso se conclui que não é em virtude de um raciocínio judicioso, mas unicamente por orgulho e obstinação que nos sobrepomos aos animais e nos afastamos de sua companhia. Voltemos ao nosso assunto. Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com o futuro, inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga, da curiosidade. Pagamos pois bem caro a tão decantada razão de que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar.”
“Cem artesãos conheci, e cem lavradores, mais prudentes e felizes do que professores universitários. Com os primeiros gostaria de me parecer. A meu ver, a erudição deve incluir-se entre as coisas necessárias à vida, como a glória, a nobreza, a grandeza, a dignidade, a beleza e a riqueza. Talvez, mas não de um modo essencial. Os princípios de moral e as leis não nos são muito mais indispensáveis para vivermos em comum do que seriam aos grous e às formigas, muito organizados embora careçam de erudição. Se o homem fosse sensato, a cada coisa daria um valor, segundo sua utilidade e sua adequação à vida. Quem nos julgasse por nossos atos e nossa conduta, observaria maior número de indivíduos perfeitos entre os ignorantes do que entre os sábios e isso em relação a quaisquer virtudes. A antiga Roma parece-me ter sido muito superior, na paz como na guerra, à Roma sábia que se arruinou por suas próprias mãos; e ainda que admitíssemos terem sido iguais, a probidade, a pureza predominariam na primeira em conseqüência da simplicidade que aí reinava. Para encerrar esta dissertação que nos levaria muito longe, limitemo-nos a constatar que só a humildade e a submissão engendram homens de bem. Não é possível deixar ao livre arbítrio de cada um a escolha de seu dever; é preciso prescrever-lho. De outro modo, dada a variedade infinita de opiniões e inteligências, forjaríamos deveres que nos impeliriam a nos destruirmos uns aos outros, como diz Epicuro. A primeira lei que Deus impôs aos homens foi obedecer; uma ordem simples, sem complicações, poupando o trabalho do conhecimento e do raciocínio. A obediência é, aliás, a condição natural de uma alma que reconhece em Deus seu superior e benfeitor. Obedecer e submeter-se são o princípio de todas as virtudes, como a presunção é o princípio de todos os pecados. Foi indo de encontro a esse princípio que o homem experimentou sua primeira tentação e que o diabo pôde inocular-lhe seu primeiro veneno, prometendo-lhe ciência e saber: ”Serás como os deuses quando conheceres o bem e o mal” [Gênesis]. Em Homero, as sereias, a fim de enganar Ulisses e atraí-lo a seus perigosos recantos, oferecem-lhe a ciência. O mal no homem está em pensar que sabe, por isso nossa religião recomenda-nos com tanta insistência a ignorância como meio adequado a determinar em nós a fé e a obediência: ”cuidai de que ninguém vos iluda com a filosofia, nem com as vãs seduções das doutrinas do mundo” [São Paulo].”
“Mas ainda que a ciência produzisse os resultados que os filósofos lhe atribuem, ainda que atenuasse a violência dos males a que estamos expostos, que poderia fazer a mais do que faz a ignorância, e melhor? O filósofo Pirro, vítima de uma tempestade no mar, não achou coisa melhor para animar seus companheiros de infortúnio senão incitá-los a imitar a serenidade de um porco que estava a bordo e contemplava o fenômeno sem se apavorar. A filosofia, como último recurso, apresenta à nossa consideração os exemplos do atleta e do arrieiro que, em geral, não temem a morte nem os tormentos e são capazes de maior resolução do que a ciência pôde jamais impor a nenhum homem não predisposto naturalmente à resistência física. Que é que faz, se não a ignorância, que se amputem os membros delicados de uma criança, ou os de um cavalo, mais facilmente do que os nossos? E quanta gente fica doente unicamente por efeito da imaginação! É freqüente vermos quem se faça sangrar, purgar, medicar para curar males que só existem porque os imagina ter. Quando nos faltam males verdadeiros, a ciência no-los fornece. Pela cor de nosso rosto devemos estar sob a ameaça de alguma doença catarral; o calor da estação predispõe-nos a um acesso de febre; a linha de vida de nossa mão esquerda apresenta um aspecto que pressagia séria e próxima indisposição. A ciência ataca mesmo de frente a saúde: temos uma vitalidade, uma força que não pode continuar, é preciso que nos tirem algum sangue e nos enfraqueçam, sem o que a saúde poderá voltar-se contra nós mesmos. Compare-se a existência de um homem escravizado a essas idéias imaginárias com a de um lavrador que se entrega ao fluxo normal da vida, levando em conta as coisas no momento em que ocorrem e sem se preocupar com o que diz a ciência, sem se prender às conjeturas; que só adoece quando a doença chega, ao passo que outros já trazem os cálculos na alma antes que alcancem a bexiga, antecipando-se pela imaginação aos sofrimentos reais, correndo ao seu encontro como se não lhes sobrasse tempo para sofrer na hora certa. O que digo dos efeitos nefastos da medicina aplica-se igualmente a qualquer outra ciência. Daí a opinião de certos filósofos antigos que consideravam como felicidade suprema termos consciência da fraqueza de nosso julgamento.
…
Os animais que devem à sua quietude uma saúde mais robusta do que a nossa, mostram-nos a que ponto a inquietação de espírito pode ser causa de doença. Dizem que no Brasil as pessoas só morrem de velhice, o que se atribui à pureza e à calma do ar que respiram, e que, a meu ver, provém antes da serenidade e da tranqüilidade de suas almas isentas de paixões, de desgostos, de preocupações que excitam e contrariam. Ignorantes, iletrados, sem lei nem rei, nem religião alguma, sua vida desenvolve-se numa admirável simplicidade. Como explicar que os indivíduos mais grosseiros, de espírito mais curto, sejam os mais dados ao amor? E que o amor de um arrieiro seja mais desejável por vezes que o de um fidalgo? Não será porque neste último as agitações do espírito influem nos meios físicos, desequilibram-nos, cansam-nos, enfadam-nos, como cansam e enfadam a própria alma? Que é que torna essa alma desregrada e a impele à loucura, senão a vivacidade e a agilidade que constituem sua força? Que diferencia a loucura mais sutil da mais sutil sabedoria?”
Quereis que um homem seja sadio, ponderado em seus atos, com atitudes seguras e firmes? Envolvei-o nas trevas, na ociosidade e evitai que seu espírito trabalhe. Para sermos sensatos, precisamos atoleimarmo-nos; para nos guiarem devem cegar-nos. Dirão que a vantagem de ser pouco sensível às dores e aos males traz consigo o inconveniente de tornar menos requintado o gozo dos bens e prazeres. Com efeito, mas a miséria de nossa condição é causa de que nos cabe fugir mais do que gozar e um prazer total nos impressiona menos do que uma ligeira dor:
Segnius homines bona quàm mala sentiunt – Os homens são menos sensíveis ao prazer do que à dor. [Tito Lívio]”
“O mal e o bem revezam-se no homem; a dor não o persegue sem descontinuar e ele não corre sem cessar atrás do prazer. Constitui argumento poderoso em prol da ignorância o fato de a própria ciência nos jogar em seus braços quando não encontra o meio de nos tornar superiores ao sofrimento demasiado intenso. Pois a ciência vê-se forçada a transigir recomendando-nos a ignorância e entregando-nos à proteção dela a fim de nos resguardar contra os golpes e insultos da sorte. Não significa outra coisa o que nos diz a ciência quando nos incita a não pensar em nossos sofrimentos e a recordar os prazeres de outros tempos; quando nos consola dos males presentes com a lembrança das alegrias idas; quando opõe, ao que nos oprime hoje, o que ontem nos deu satisfação:
Levationes ægritudinum in avocatione a cogitanda molestia, Et revocatione ad contemplandas voluptates ponit – Epicuro diz que é preciso obviar aos pensamentos tristes e atentar para os alegres. [Cícero]”
”Che ricordar si il ben doppia la noia” ”A recordação da felicidade passada duplica a desgraça presente” [Tasso]
“Então a filosofia que me deve dar armas para combater os azares do destino, que deve temperar-me o caráter para que possa desprezar as adversidades humanas, confessa sua impotência, recorrendo a escapatórias ridículas e covardes? Sim, porque a memória não fixa o que queremos e sim o que lhe apraz. Mais ainda: nada imprime mais profundamente alguma coisa na memória do que o desejo de esquecer. Este é mesmo o melhor meio de gravar em nós alguma coisa.”
”A ignorância que tudo aceita sem discussão é um remédio para os nossos males” [Sêneca]
“E no Eclesiastes se diz: ”Muita sabedoria é fonte de desprazer; quem adquire saber adquire ao mesmo tempo trabalho e tormento”.
“A simplicidade torna a existência mais agradável e a alma mais pura e melhor. Os simples e os ignorantes, diz São Paulo, elevam-se e conquistam o reino dos céus; nós, com todo o nosso saber, afundamos nos abismos do inferno.”
“A falta de educação, a ignorância, a simplicidade de espírito, a franqueza aliam-se em geral à ingenuidade. A curiosidade, a sutileza, o saber acarretam a malícia. A humildade, o temor, a obediência, a bondade elevada até a fraqueza e que constitui o alicerce sobre o qual assenta a conservação da sociedade humana, são peculiares a uma alma vazia, dócil, e presumindo pouco de si. Os cristãos mais do que os outros sabem a que ponto a curiosidade é um mal natural e original no homem. O desejo de aumentar sua ciência foi a causa primeira da queda do homem, que lhe acarretou a danação eterna. O orgulho perdeu-o e corrompeu-o. É o orgulho que expulsa o homem dos caminhos batidos e o induz a abraçar as novidades, a preferir ser chefe de um bando errante, desviado em uma senda de perdição e professor de erros e mentiras, a ser aluno de uma escola em que se ensine a verdade, e a marchar sob a direção de outrem pela estrada larga que leva direito à meta. É sem dúvida o que exprime esta antiga máxima grega: ”a superstição segue o orgulho e lhe obedece como a um pai”.
“Nossos Evangelhos consideram bem miseráveis os que se superestimam: ”És barro e cinza, podes em verdade vangloriar-te?” E ainda: ”Deus fez o homem semelhante a uma sombra; que se pode ver dele quando, em se afastando a luz, desaparece a sombra?” Na realidade nada somos. Muito falta para que possamos atingir as alturas em que paira a divindade, e as obras do Criador que mais evidenciam a Sua presença são as que menos podemos alcançar. Deparar com algo incrível é para o cristão uma oportunidade de crer; tanto mais se aproxima da razão quanto mais escapa à inteligência humana. Se esta o pudesse entender, deixaria de ser milagre, e se fosse análogo a qualquer outra coisa não seria incrível.”
“São emoções, essas, de que somos suscetíveis mas que não podem existir em Deus como as concebemos, do mesmo modo que não concebemos o que Ele possa sentir. Só Deus tem a possibilidade de Se conhecer e de explicar Seus atos, que não se traduzem senão impropriamente em nossa linguagem, a qual Ele emprega entretanto para, abaixando-Se, descer até nós que jazemos na terra. Como a sabedoria, que constitui um ponto de equilíbrio entre o bem e o mal, poderia ser-Lhe inerente, se nem o bem nem o mal O atingem? Que Lhe importam essa razão e essa inteligência que nos permitem deduzir das coisas que mal conhecemos outras nitidamente definidas, a Ele para quem nada é obscuro?
A justiça que tem por objetivo dar a cada um o que lhe cabe, foi engendrada pelos homens em sociedade e não pode figurar entre os atributos divinos. A temperança, que consiste em moderar o gozo dos prazeres materiais, não tem nenhuma relação com a divindade. A coragem, que nos induz a suportar e enfrentar a dor, o trabalho, os perigos, nada tem tampouco com Deus: as três coisas Lhe são estranhas. São considerações idênticas que levam Aristóteles a julgar que Deus está isento de vícios e virtudes:
”Neque gratia neque ira teneri potest, Quód quæ talia essent, imbecilla essent omnia” – Não é suscetível nem de amor, nem de ódio, porque tais coisas são inerentes aos seres frágeis” [Cícero]
A participação grande ou pequena que temos no conhecimento da verdade, não a obtemos com nossas próprias forças; demonstrou-nos Deus, escolhendo no povo gente simples e ignorante para nos revelar Seus admiráveis segredos. Nossa fé, não a adquirimos; é um presente puríssimo de liberalidade alheia. Não foi pelo raciocínio, pela inteligência, que acolhemos nossa religião; foi porque assim o quis uma autoridade situada fora de nós. Ajuda-nos a fraqueza mais do que a força de nosso juízo, e nossa cegueira mais do que nossa clarividência. Graças à nossa ignorância, mais do que ao nosso saber, temos conhecimento das coisas divinas.”
“Quem procura alguma coisa acaba por declarar, ou que a encontrou ou que não a pôde descobrir, ou que continua a busca. Toda a filosofia tende a uma dessas três conclusões; seu objetivo é procurar a verdade, penetrá-la e convencer-se dela. Os peripatéticos, os epicuristas, os estóicos e outros pensam tê-la encontrado; estabeleceram o rol dos nossos conhecimentos e os consideram indiscutíveis. Clitômaco, Carnéades e os acadêmicos em geral desesperam de encontrar a verdade e julgam que nossas faculdades são incapazes de descobri-la; daí concluírem pela fraqueza e ignorância do homem. Sua doutrina foi a que mais se expandiu e conta entre seus adeptos os mais nobres espíritos.
Pirro e os outros céticos, cujos dogmas, dizem alguns autores antigos, são tirados de Homero, dos sete sábios, de Arquíloco, de Eurípides, escola a que se filiam Zenão, Demócrito, Xenófanes, acham que a verdade ainda está por se encontrar. Acham que os que acreditam tê-la descoberto laboram em profundo erro, e os que afirmam não serem as nossas forças capazes de alcançá-la são, embora em menor grau, demasiado temerários ainda em sua asserção, pois determinar em que medida podemos conhecer as coisas e ajuizar da dificuldade de um tal conhecimento é ciência tão elevada.”
“A ignorância que se conhece, se julga e se condena não é uma ignorância completa. Para que o fosse, fora necessário que se ignorasse a si mesma, de sorte que a tarefa dos pirrônicos consiste em duvidar das coisas, investigá-las sem afirmar nem assegurar. O espírito concebe, deseja, admite; destas três impressões, aceitam as duas primeiras e mantêm a última em situação ambígua, sem a aprovar por pouco que seja, nem a negar.”
“Não há seita filosófica que não seja forçada a praticar e seguir infinidade de preceitos que não compreende nem aceita, se quer viver no mundo. Quando por exemplo quer viajar por mar tem que o fazer sem saber se terá êxito ou não; calcula que o navio é bom, o piloto experimentado, favorável o vento. São probabilidades apenas a que precisa entregar-se, confiando nas aparências. Tem um corpo e uma alma, impelem-no os sentidos, agita-o o espírito. Ainda que não sinta em si essa competência especial de julgar e reconheça que não pode pronunciar-se com segurança, porquanto tudo pode ser falso embora pareça verdadeiro, não deixa de conduzir sua vida nas condições mais cômodas e melhores.”
“De todos os filósofos, Pitágoras foi o que teve mais vivo o sentimento da verdade, ao considerar que essa causa primeira, esse ser-princípio-de-tudo-o-que-é, não se pode exprimir e submeter-se a qualquer regra ou definição; que é talvez o que a nossa imaginação, em seu mais extremado esforço, concebe como perfeição, cada qual ampliando a idéia segundo sua capacidade. Numa quis orientar nesse mesmo sentido a religião de seu povo, torná-lo devoto de uma crença puramente espiritual, sem objetivo determinado, estranha a tudo o que é material. Mas o projeto era impraticável, o espírito humano não podendo satisfazer-se com a vagueza desse infinito abstrato. Ele precisa adaptá-lo a algo preciso, a seu alcance. A majestade divina consentiu em se deixar circunscrever de certo modo dentro de limites naturais: seus sacramentos sobrenaturais e celestiais manifestam-se em condições acessíveis a nós; nossa adoração exprime-se por meio de cerimônias e palavras compreensíveis ao homem, porque é o homem quem crê e reza. Deixo de lado todos os demais argumentos a favor desta tese: a simples vista do nosso crucifixo, a reprodução desse suplício que desperta a piedade, os ornatos e a pompa do culto em nossas igrejas, as vozes que tão exatamente traduzem nossa devoção, a emoção de nossos sentidos, incutem na alma das multidões uma paixão religiosa real.”
“Cumpre responder-lhe com a razão humana: se os prazeres que nos prometes na outra vida são os que gozamos nesta, nada têm eles em comum com o infinito. Ainda que nossos cinco sentidos recebessem plena satisfação, que nossa alma experimentasse todo o contentamento que pode desejar e esperar – e bem sabemos o de que é capaz – tudo isso não seria nada. Se alguma coisa sobrar de nós, nada terá de divino. Se não passar do que temos nas condições presentes, não valerá a pena. Tudo o que nos é motivo de satisfação antes da morte, é mortal como nós. Se no outro mundo, encontrando parentes, filhos, amigos, isso nos puder comover e ser agradável, não teremos deixado de ser sensíveis às satisfações terrestres de duração limitada. Não podemos conceber dignamente a grandeza das altas e divinas promessas que nos foram feitas, a nós cristãos, se delas temos uma concepção qualquer.”
”Se Deus existe, é um ser animado; se é um ser animado, tem sentidos; se tem sentidos, está sujeito à corrupção. Se não tem corpo, não tem alma e então nada pode: se tem um corpo é perecível”. Em verdade trata-se de argumento peremptório, resistente a qualquer objeção! Somos incapazes de ter feito o mundo, há pois alguma natureza superior que o fez. Seria tola arrogância considerarmo-nos a criatura mais perfeita do universo; há pois algo melhor: Deus. Quando vedes uma rica e luxuosa residência, ainda que não saibais a quem pertence, não dizeis que foi construída pelos ratos; não devemos também acreditar que esse divino edifício, o palácio dos céus, é a residência de alguém maior do que nós? Quem se encontra no degrau superior não é em verdade o mais digno? Por isso nos achamos aqui embaixo. Nada, desprovido de alma e razão, fora capaz de criar um ser provido de razão e suscetível de dar vida; o mundo produz-nos, logo tem alma e razão. Cada fração de nós mesmos é menor do que nós mesmos; somos uma fração do mundo, logo o mundo é dotado de sabedoria e razão e em grau superior ao nosso.”
“No que diz respeito à natureza, os efeitos só em parte dependem das causas; no caso presente, a divindade não depende dela; está demasiado alta, demasiado longe de nós, demasiado superior ao que podemos imaginar, para que nossas conclusões a atinjam e atuem sobre ela. Não será por nós mesmos que conseguiremos esclarecer um tal problema, nosso caminho é por demais rasteiro. Não estamos mais perto do céu sobre o monte Cenis do que se estivéssemos no fundo do mar; se quereis compreendê-lo consultai vosso astrolábio.”
“E é verdade: a filosofia não passa de uma poesia feita com sofismas. Pois de onde tiraram sua autoridade, senão dos poetas, os que a ela se dedicaram na antiguidade? Os primeiros filósofos foram poetas e filosofaram como versificavam. Platão é poeta por vezes; Tímon intitula-o ironicamente: ”grande inventor de milagres”. Todas as ciências que tratam de questões que sobreexcedem a inteligência do homem vestem-se de licenças poéticas. As mulheres usam dentes de marfim quando perdem os dentes naturais; modificam a tez com ingredientes estranhos à pele; condicionam a grossura das pernas com tecidos e feltros, e arredondam suas formas com algodão; sabidamente se embelezam com artifícios. Assim faz a ciência (diz-se mesmo que a do direito admite ficções que constituem o fundamento daquilo que a justiça estabelece como verdade); ela nos oferece, pedindo-nos que as suponhamos verdadeiras, coisas que ela própria declara inventadas. Esses epiciclos, esses círculos excêntricos e concêntricos de que se vale a astronomia para explicar o movimento das estrelas, não os propõe ela senão como o que de melhor pôde encontrar. Do mesmo modo age a filosofia, apresentando-nos, não o que é ou crê ser, mas o que imagina como solução mais elegante e adequada às aparências. Platão, tratando das condições de nosso corpo e do dos animais, assim se exprime: ”afirmaríamos que o que dissemos é exato se um oráculo o houvesse confirmado. Limitamo-nos a assegurar que foi o que achamos mais verossímil para asseverar”. Não é apenas o céu que a filosofia provê de cordas, máquinas e engrenagens. Vejamos o que diz de nós mesmos e de nossa estrutura. Não há em todo o sistema planetário, e nos outros corpos celestes, maiores trepidações, ascensões, recuos e êxtases do que inventaram os filósofos para o nosso misérrimo corpo humano. Nisso merece ele a denominação que lhe deram de pequeno mundo, a tal ponto empregam para o construir peças das mais variegadas formas. Para explicar os movimentos que observam no homem, suas diversas funções e faculdades, em inúmeras partículas fragmentaram a alma! Localizaram-na em múltiplos órgãos! Estabeleceram divisões sem conta – e subdivisões – em nosso pobre ser, além daquelas que são naturais e normalmente perceptíveis, sobrecarregando-as de usos e ocupações! Fazem dela uma espécie de república imaginária. Deramse a liberdade absoluta de desmontá-lo, classificá-lo, remontá-lo, apresentá-lo sob tal ou qual aspecto, segundo sua fantasia, e não chegaram ainda a uma certeza qualquer. Nem mesmo a simples hipóteses em que não se deparem algo manco ou dissonante, por enorme que seja a máquina construída e a despeito dos mil remendos inadequados e fantasistas que lhe aplicam. E não há desculpa para isso. Quando os pintores pintam o céu, a terra, os mares, as montanhas, as ilhas remotas, toleramos que nos apresentem vagos esboços. É isso admissível quanto ao que não conhecemos. Mas se pintam do natural, ou se o que copiam nos é familiar, exigimos deles exata e perfeita reprodução das linhas e das cores; em caso contrário não damos importância à obra.”
“É facílimo construir à vontade sobre alicerces preestabelecidos, pois segundo a lei e a disposição dos princípios o resto do87 edifício ergue-se sem incidir em contradição alguma. Com esse processo nossa razão marcha com segurança e nós discorremos sem necessidade de investigações mais aprofundadas; de antemão nossos mestres prepararam o terreno em nosso espírito para a prova do que bem entendem, como os geômetras que provam suas hipóteses pré-admitidas. Com a anuência e a aprovação que lhes outorgamos, conduzem-nos para a direita ou para a esquerda segundo seu capricho. Quem é acreditado naquilo que pressupõe, é nosso senhor e deus; com tal fundamento amplo e cômodo, pode se quiser elevar-nos às nuvens. Na prática e na transmissão do saber, aceitamos como moeda corrente esta frase de Pitágoras: ”todo especialista deve ser acatado no que respeita à sua arte”. Assim o dialético refere-se ao dramático quanto ao significado das palavras, o retórico toma de empréstimo ao dialético seus argumentos e a arte de os apresentar, o poeta emprega o ritmo do músico, o geômetra vale-se dos cálculos do matemático, o metafísico utiliza as conjeturas do físico, porque todas as ciências assentam seus princípios em hipóteses, o que por todos os lados amarra o raciocínio do homem. Se tentamos derrubar essa barreira que constitui um erro capital, objetamnos logo com este aforismo: ”Não se discute com quem nega os princípios”. Ora, não pode haver entre os homens senão os princípios que Deus lhes revelou; fora dessa revelação o princípio, o meio e o fim de todas as coisas não passam de sonho e fumaça. Aos que, para combater, se apóiam em hipóteses, cumpre opor como axioma as teses contrárias àquelas acerca das quais se discute. Todas as que o homem é capaz de imaginar podem emitir-se; têm todas igual autoridade, se entre elas a razão não estabelece uma diferença. É preciso, pois, examiná-las e compará-las; e antes de tudo as que se apresentam como regras gerais e pesam mais. Querer chegar a uma certeza absoluta é, até certo ponto, prova de loucura e de extrema incerteza. Não há gente mais louca e menos filósofa do que os filodoxos de Platão. Que o fogo seja quente, a neve fria, e nada duro ou mole, não o contradizemos, mas que no-la provem! A tais propósitos contam que os antigos respondiam: quem duvida do calor, jogue-se ao fogo; quem nega o frio da neve, coloque-a sobre o peito. Essas respostas não eram dignas de filósofos. Se nos tivessem deixado em nosso estado natural, aceitando em tudo a aparência das coisas, sem outras necessidades que não as determinadas pelas condições de nossa existência, teriam razões para assim se exprimir, mas foram eles mesmos que nos ensinaram a nos erigirmos em juízes do mundo e nos enfiaram na cabeça a pretensão de que ‘a razão tem o direito de controle sobre tudo o que existe, tanto sob a abóbada celeste como fora dela, que tem o direito de tudo abarcar, porquanto tudo sabe e tudo pode’.”
“Quanto a mim, prefiro crer que esses filósofos só se ocuparam de ciência ocasionalmente, como divertimento. Usaram a razão como instrumento frívolo e vão, avançando toda espécie de idéias estranhas, ora com seriedade, ora com ironia. Esse mesmo Platão, que define o homem como definiria uma galinha, diz, depois de Sócrates, em outro trecho de sua obra, que, em verdade, não sabe o que seja o homem, ”uma das peças do mundo mais difíceis de conhecer”. Tais opiniões variáveis e instáveis constituem uma confissão tácita, mas evidente, de sua vontade de não sair da indecisão. Esforçam-se os filósofos para que seu modo de ver nem sempre apareça com nitidez; escondem-no sob as folhagens que lhes oferecem a fábula e a poesia, ou sob outra máscara qualquer, pois nossa imperfeição faz que a carne crua nem sempre convenha a nosso estômago e se deva deixá- la alterar-se, corromper-se. Assim agem; obscurecem por vezes suas opiniões e seus juízos, falsificam-nos para colocá-los ao alcance de todos. Não querem pronunciar-se francamente acerca da ignorância e da fragilidade da razão humana para não fazer medo às crianças, mas as revelam suficientemente sob a aparência de sua ciência confusa e contraditória. Quando eu estava na Itália, aconselhei a alguém que não sabia italiano que se ativesse, se desejava ser compreendido sem pretender empregar uma linguagem correta, às palavras latinas, francesas, espanholas ou gasconhas que, para lhe exprimir o pensamento, lhe viessem aos lábios, acrescentando-lhes simplesmente uma terminação italiana. Assim se encontrariam por certo com algum dos idiomas do país, o toscano, o romano, o veneziano, o piemontês, ou o napolitano. Direi o mesmo da filosofia. Tem tantas formas diferentes e tanto falou, que abarcou todos os nossos sonhos e devaneios. A fantasia humana nada mais pode conceber que não se depare nela:
”Nihil tam absurde dici potest, Quod non dicatur ab aliquo philosophorum”
Nada se dirá, por mais absurdo, que não tenha sido dito por algum filósofo” [Cícero]
Isso me proporciona maior liberdade ainda para divagar publicamente, tanto mais quanto, embora emanando de mim só, e sem que ninguém mos tenha sugerido, meus propósitos terão sempre alguma relação com outros já mantidos e não faltará quem diga um dia: eis de onde os tirou. Minhas idéias são o que as fez a natureza. Para formá-las procurei não seguir nenhuma regra; e no entanto, por fracas que sejam, quando as quis exprimir e publicar nas melhores condições possíveis, achei de meu dever apoiá-las em raciocínios e exemplos, e maravilhei-me com perceber a que ponto se amoldam a inúmeros raciocínios filosóficos. A que doutrina se ligam? Só o soube depois de as expor e julgar do resultado: pertenço a uma nova espécie, sou um filósofo que se tornou filósofo por acaso e sem premeditação.”
“Admitir essa hipótese é supor que nossas almas já possuem toda sua ciência quando ainda em sua simplicidade e pureza naturais; mas se assim é, estão livres de não se aprisionarem em um corpo, pois para que a reencarnação, se antes de entrar em seu novo corpo já seriam como o serão ao saírem? E, fora preciso ainda que se lembrassem, durante a sua nova vida, do que conheceram na existência anterior, porquanto aprender não é, no dizer de Platão, senão murmurar o que soubemos. Ora, todos sabem, por experiência própria, que uma tal assertiva é falsa. Em primeiro lugar porque, precisamente, não nos lembramos do que aprendemos e que, se a memória cumprisse sua tarefa, nos sugeriria alguma coisa mais do que o que sabemos de início. Em segundo lugar, a ciência que a alma possuiria, seria a ciência perfeita, de sorte que, graças à sua divina inteligência, conheceria todas as coisas na sua realidade. Ora, acontece que se num ponto ou noutro lhe ensinam a mentira ou o vício, ela os retém, não tendo nenhuma reminiscência a opor-lhes porque a imagem e a concepção da verdade nunca entraram nela.
Por outro lado, no caso que nos interessa, são os efeitos produzidos em nós, e não alhures, pela ação da alma que se devem ponderar. Todas as suas demais perfeições são supérfluas e inúteis; pelo seu estado presente é que se deve reconhecer sua imortalidade, não sendo ela responsável senão pela vida do homem ao qual se une. Seria injusto, depois de tirar-lhe os meios de ação, e desarmá-la, julgá-la e condená-la a um castigo de duração exagerada, perpétua, pelo tempo que permanece fechada em sua prisão, fraca e enferma, constantemente sob o efeito do constrangimento que lhe impuseram. Determinar-lhe a sorte em vista de tão curto tempo, por vezes uma hora ou duas, e no máximo um século, um instante enfim comparado com a eternidade, e por causa desse momento dela dispor para sempre, seria estabelecer uma desproporção entre a causa e o efeito, tão iníqua quanto lhe atribuir uma recompensa eterna pelos méritos de tão curta existência.”
“O homem cuida muito de prolongar sua existência. Tudo dispõe para tanto: a conservação do corpo na sepultura; a de seu nome na glória. Preocupado com o que poderia ocorrer, fez tudo o que lhe veio à mente para se reconstruir e consolidar sua presença na terra. Não podendo a alma, em razão de sua fraqueza, encontrar a calma, busca por toda parte consolo, esperança, apoio. Prendese a circunstâncias estranhas a si mesma, e não as abandona. Por insignificantes ou fantasistas que sejam, nelas se aloja e repousa de preferência. É de espantar que os partidários mais convencidos dessa idéia tão justa e clara da imortalidade da alma tenham sido tão incapazes de prová-la com o simples auxílio da razão humana:
”Somnia sunt non docentis, sed optantis”
”São sonhos de um homem que deseja mas não acha” [Cícero]
Pode o homem deduzir, portanto, que deve ao acaso a verdade que por si mesmo descobre, pois mesmo nos momentos em que a tem nas mãos carece de meios para apreendê-la e conservá-la. Tudo o que produzem nossa razão sozinha e nossa inteligência, tanto o verdadeiro como o falso, está sujeito à incerteza e à discussão. É para nos punir de nosso orgulho e fazer-nos sentir nossa miséria e nossa impotência que Deus suscitou a confusão da torre de Babel. Tudo o que empreendemos sem que Sua graça nos ilumine não passa de vaidade e loucura. A própria essência da verdade, uniforme entretanto e constante, nós a corrompemos e ela degenera em virtude de nossa fraqueza, quando a sorte no-la oferece. Qualquer que seja o caminho seguido, Deus o leva à confusão, cuja imagem viva temos no castigo que infligiu a Nemrod, aniquilando sua vã tentativa de construir a pirâmide:
”Perdam sapientiam sapientium, et prudentiam prudentium reprobabo”
”Confundirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes” [São Paulo]
Prossigamos. Nada mais justo e razoável do que recebermos só de Deus e por Sua graça unicamente a possibilidade de conhecer a verdade, pois é de Sua liberalidade que auferimos o que a imortalidade nos oferece de feliz: a beatitude eterna. Confessemos humildemente que somente Deus no-la revelou, e a fé no-la ensina. A natureza e a razão nada têm a ver com isso. E quem, entregue às suas próprias forças, empreenda sondar-se por dentro e por fora, sem levar em conta a revelação divina, e estude o homem sem o embelezar, nada verá, em si, de certo, de provável, impelindo a outra coisa que não à morte, como fim último. Quanto mais damos, devemos e devolvemos a Deus, tanto mais nos conduzimos como verdadeiros cristãos.”
“Além dessa inumerável diversidade de opiniões, é fácil verificar, pela confusão em que nos joga e a incerteza que todos sentem, que nosso julgamento não tem fundamento sólido. Quantas vezes julgamos diversamente as coisas? Quantas vezes mudamos de idéias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível; todas as nossas faculdades, todos os nossos órgãos se apossam dessa opinião e por ela respondem quanto podem; não poderia aceitar outra verdade nem a conservar com maior convicção; a ela dei-me por inteiro. Mas não me aconteceu, e não uma vez porém cem ou mil, e diariamente, ter aceito do mesmo modo alguma coisa que posteriormente considerei falsa? Que ao menos nos tornemos sensatos a expensas nossas! Se tantas vezes fui traído por meu julgamento, se essa pedra de toque é em geral defeituosa, se a balança está mal regulada, que garantia a mais posso ter desta vez? Não será tolice deixar-me enganar por semelhante guia? E no entanto, ainda que o destino nos leve a mudar quinhentas vezes de idéia, a última, a atual será a verdadeira, a infalível. Por esta sacrificaremos nossos bens, a honra, a vida, a salvação:
”Posterior res illa reperta, Perdit, Et immutat sensus ad pristina quæque”
”A última nos desgosta da primeira e a desacredita em nosso espírito” [Lucrécio]”
Dou esse nome de razão a essa aparência de juízo que cada um forja em si mesmo e que a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciações diversas e contraditórias, instrumento feito de chumbo e cera, que se estica e dobra e se ajeita a todas as circunstâncias, a todos os compromissos, e que um pouco de habilidade basta para levar a amoldar-se a quaisquer moldes. Por melhor que seja sua intenção, se não se examinar de perto, o que pouca gente faz, um juiz pode ser solicitado pela benevolência (para com um amigo ou parente) tanto quanto pela idéia de vingança. Sem ir tão longe, uma simples tendência instintiva o impele a uma predileção, ao escolher, sem razão, entre dois objetos idênticos; um imperceptível impulso qualquer pode atuar sobre seu julgamento e o predispor favorável ou desfavoravelmente a dada causa, forçando a balança a pender para um lado ou outro. Eu que me analiso, a fundo, e tenho os olhos sempre voltados para mim mesmo, como quem não tem muito que fazer alhures, mal ouso dizer as falhas e fraquezas que percebo em mim. Tenho o pé tão pouco seguro, fraqueja tão facilmente, titubeia tão sem motivo, e minha vista é tão desregulada, que em jejum me sinto melhor do que depois de comer; se estou satisfeito com minha saúde, se faz bom tempo, eis-me um homem amável; se um calo me dói, fico aborrecido, desagradável, inabordável; um cavalo cujo andar não varia parece-me ora duro ora suave; o mesmo caminho parece-me curto por vezes e por vezes longo; segundo a hora, a forma de um objeto ser-me-á agradável ou não; quero e não quero empreender alguma coisa e o que me apetece agora, contraria-me depois. Mil agitações inoportunas e acidentais verificam-se em mim; ou sou tomado de melancolia ou de cólera; em outro momento é a tristeza que me envolve, mas logo a seguir a alegria vence. Quando pego um livro, certos trechos que considero excelentes me impressionam e encantam; de outras feitas folheio esse mesmo livro e procuro em vão algo que me deleite, tudo se me afigura informe. Nos meus próprios escritos nem sempre redescubro o meu pensamento, não sei mais o que desejei exprimir e não raro me esforço por corrigi-lo, modificá-lo, pois o significado primeiro, por certo mais interessante, me escapa. Não faço senão ir e vir. Meu julgamento não segue uma linha reta, flutua ao léu:
”Velut minuta magno Deprensa navis in mari vesaniente vento”
”Como um frágil barco surpreendido em alto mar por um vento furioso” [Catulo]”
“Conhecendo a instabilidade de meu julgamento, reagi e, excepcionalmente, cheguei a uma certa continuidade de opinião, conservando mais ou menos intactas as que a princípio tivera. Pois, qualquer que seja a aparência de verdade que pode ter a novidade, não mudo de medo de perder na troca. Incapaz de escolher por mim mesmo, confio na escolha de outrem e atenho-me às condições em que Deus me colocou, sem o que não poderia impedir-me de variar amiúde. Assim é que, com a graça de Deus, conservei inteiras, sem inquietações nem casos de consciência, as antigas crenças de nossa religião, a despeito de tantas seitas e divisões observadas em nosso século.
O céu e as estrelas foram durante três mil anos considerados em movimento. Todos acreditaram, até que Cleantes de Samos ou, segundo Teofrasto, Nicetas de Siracusa, se lembrou de sustentar que a terra é que girava em torno de seu eixo, seguindo o círculo oblíquo do zodíaco; e em nosso tempo Copérnico demonstrou tão bem esse princípio, que dele se vale em seus cálculos astronômicos. Que concluir, senão que não temos que nos preocupar com saber qual dos sistemas é o verdadeiro? Quem sabe se daqui a mil anos outro sistema não os destruirá a ambos?”
“Em verdade, considerando o que sabemos de diversas práticas em curso nesta terra, fiquei muitas vezes maravilhado com ver que em tempos e lugares remotos se encontrem, em número tão grande, opiniões populares e costumes e crenças selvagens tão semelhantes, embora não pareçam ter origem no estado atual de nossa inteligência. O espírito humano realiza realmente grandes milagres, mas essa correlação tem ainda algo mais estranho pela similitude de certos nomes e de mil outras coisas; pois neste mundo novo, vêem-se povos que nunca ouviram falar de nós, e entre os quais se pratica a circuncisão. Alguns há cujo governo cabe às mulheres, e entre eles observam-se o jejum e a quaresma, bem como a castidade. Descobriram-se outros que possuíam a cruz como símbolo; outros honram os mortos; outros, ainda, usam a cruz de Santo André como proteção contra as alucinações noturnas e a colocam sobre os leitos das crianças para que as proteja contra feitiços; em certa nação no interior das terras, encontrou-se uma grande cruz de madeira e que era adorada como deus das chuvas.”
“Se a natureza encerra, como o faz com todas as coisas, dentro de suas regras naturais, as crenças, os juízos, as opiniões dos homens; se suas evoluções são determinadas, se têm seu momento, se nascem e morrem como os repolhos; se o céu os agita e varre à vontade, que autoridade segura e permanente lhes atribuiremos? A experiência prova-nos que a nossa organização decorre do ar, do clima, do lugar de nascimento; que não somente a nossa tez, a nossa estatura, a nossa compleição, nossos meios físicos disso dependem mas ainda as faculdades de nossa alma;”
“No fato de o vinho parecer amargo aos doentes e agradável aos sãos; de o remo parecer torto mergulhado na água e reto aos que o vêem fora dela; de muitas coisas assim se mostrarem sob aparências antagônicas, Heráclito e Protágoras apontavam a prova de que cada qual traz em si a causa das aparências. Assim o vinho encerra um princípio amargo, que o torna amargo aos doentes, o remo um princípio torto em relação com quem o vê na água, etc. O que equivale a dizer que tudo está em todas as coisas e por conseguinte nada em nenhuma, pois não há nada onde há tudo. Essa opinião recorda-me o que ocorre em nós. Não há sentido real ou aparente, amargo ou doce, reto ou sinuoso, que o espírito humano não descubra nos escritos que examina de perto. De quantas falsidades ou mentiras uma frase clara, pura e perfeita quanto possível, é ponto de partida! Qual a heresia que nela não achou um testemunho suficiente para que se exibisse e se sustentasse? Por isso os autores de tais erros não querem nunca renunciar às provas, tiradas da interpretação dada aos textos e que podem favorecê-los.”
“Esta dissertação induziu-me a considerar os sentidos como a grande causa e a prova, a um tempo, de nossa ignorância. Tudo o que se conhece, conhece-se pela faculdade de conhecer do indivíduo. Isso é incontestável, porque sendo o julgamento um ato de quem julga, é natural que empregue, em julgar, seus melhores meios e sua vontade; que não seja forçado a reportar-se a outrem, como ocorreria se o conhecimento das coisas se impusesse pela sua natureza própria. Ora, esse conhecimento cheganos pelos sentidos, que são nossos mestres: ”Via qua munita fidei Proxima fert humanum in pectus, templáque mentis” ”São as vias pelas quais a evidência penetra no santuário do espírito humano”. Por eles se inicia a ciência e com eles se afirma. Afinal, seríamos ignorantes como uma pedra, se não conhecêssemos a existência do som, do odor, da luz, do sabor, da medida, do peso, da moleza, da dureza, do amargor, da cor, do tato, da largura, da profundidade, o que constitui a base e o princípio de toda ciência. Tanto assim que, para alguns ciência é sensação.”
“É impossível fazer com que um homem naturalmente cego deseje ver e lamente a ausência do sentido de que carece. Portanto não devemos vangloriar-nos da satisfação de nossa alma com os que temos, pois ela não pode sentir sua imperfeição, se a tem. É impossível, pelo raciocínio, a analogia ou a similitude, fazer que a imaginação de um cego adquira a menor noção do que venham a ser a luz, a cor, a vista. Nada nele pode induzi-lo a uma idéia do sentido que lhe falta. Quando um cego de nascença afirma que desejaria ver, não o faz por compreender o que exprime; di-lo, aponta efeitos e conseqüências, mas ignora, em verdade, o que seja, não o concebe, nem muito nem pouco.”
“Não há sentidos que não sejam de grande importância; e os conhecimentos que devemos a cada um deles são em número infinito. Se a inteligência dos sons, da harmonia e da voz viessem a faltar-nos, haveria incrível confusão em todo o resto de nossa ciência, pois, além do que se prende aos efeitos de cada sentido, tiramos inúmeros argumentos, conseqüências e conclusões da comparação de um com outro. Imagine um entendido o gênero humano desprovido, desde sempre, do sentido da vista, e pesquise a que ponto a confusão conduziria tal lacuna. Quanta treva e cegueira em nossa alma! Julgar-se- á por aí quanto importa ao conhecimento da verdade a privação de um ou mais sentidos. Concebemos a verdade sob um aspecto para o qual contribuem nossos cinco sentidos. Talvez para que seja a verdadeira, e que tenhamos a certeza de apreender integralmente, careçamos de oito ou dez.”
“O homem não pode impedir que os sentidos não sejam os soberanos mestres dos conhecimentos que possui; mas estes não oferecem certeza e sempre podem induzi-lo em erro. É preciso insistir nesse ponto. Na falta do que deveria dar-lhe força, ele o supre com a obstinação, a temeridade, a impudência. Se os epicuristas estão certos, isto é, ‘se a ciência não existe visto que as aparências comunicadas pelos sentidos são falsas’, e se o que dizem os estóicos é igualmente verdadeiro, ‘que as aparências transmitidas pelos sentidos são tão falsas que não podem criar nenhuma ciência’, somos levados a concluir que não há ciência. Quanto ao erro e à incerteza das operações dos sentidos, não faltam exemplos à mão, tão abundantes são essas falhas e ilusões. Em virtude do eco no vale, o som da trombeta parece vir de frente quando na realidade vem de trás.”
“Dir-se-ia que a alma se esconde dentro de nós e se diverte em abusar dos sentidos. Assim, o homem é, por dentro e por fora, fraqueza e mentira. Os que compararam nossa vida a um sonho foram mais judiciosos talvez do que pensavam. Em nossos sonhos nossa alma vive, age, exerce todas as suas faculdades, tal qual quando está acordada. Admitamos que o faça de um modo menos eficiente e visível, a diferença ainda não será tão grande quanto entre um dia de sol e a noite, mas apenas como entre esta e o crepúsculo. Se ela dorme durante o nosso sono, cochila mais ou menos quando estamos acordados. Em um e outro caso, permanecemos nas trevas mais profundas. Durante o sono, não vemos com nitidez, mas acordados não é tampouco perfeita a claridade. O sono profundo apaga por vezes os nossos sonhos; despertos, nunca o estamos bastante para nos livrarmos de todos os devaneios que são sonhos de gente acordada e piores do que os verdadeiros. Recebendo nossa razão e nossa alma as idéias e os sentimentos que nascem em nós enquanto dormimos, e prestando-se a eles, como o faz com o que concebemos de dia, como duvidar de que, em pensando e agindo, sonhamos? E estar acordado seja uma forma particular do sono? Se os sentidos são os juízes aos quais nos devemos reportar em primeiro lugar, não são apenas os nossos que devemos consultar. Nesse ponto os dos animais têm os mesmos direitos que os nossos, senão maiores. Pois é certo que alguns têm o ouvido mais sensível, outros a vista, outros o olfato, outros o tato ou o paladar. Demócrito dizia que as faculdades pelas quais experimentamos as sensações são mais perfeitas nos deuses e nos animais. Há em verdade enorme diferença entre os efeitos dos sentidos nestes últimos e em nós. Nossa saliva, por exemplo, que limpa e seca as nossas chagas, mata as serpentes.”
Mas a quem caberá julgar as diferenças? Dizemos que quando se trata de controvérsias religiosas seria necessário um juiz neutro, isento de preconceito ou preferência, o que não se encontra entre os cristãos. O mesmo fato repete-se aqui. Se o juiz é um ancião, não pode imparcialmente julgar o que sente a mocidade, estando ele próprio interessado no debate. Se é um jovem, idêntico é o caso; como idêntico o será se o juiz for doente, ou são, se estiver acordado ou cochilando. Fora preciso alguém que nunca tivesse estado em nenhum desses casos para que se pronunciasse sem prevenção por uma ou outra das diversas opiniões em presença. Ora, um juiz desse tipo não existe. Para aquilatar das aparências das coisas, precisaríamos de um instrumento aferidor; para controlar esse instrumento necessitaríamos de experiências e mais um instrumento para comprová-las. E eis-nos em um impasse. Se os sentidos não podem decidir serem imperfeitos, é preciso que a razão decida. Mas nenhuma razão se aceitaria sem que outra lhe demonstrasse a validez; e eis-nos de volta ao ponto de partida. Nossa imaginação não se exerce diretamente sobre as coisas que estão fora de nós; é levada a elas pelos sentidos; estes não se ocupam do que lhes é estranho, mas somente do que é objeto de suas impressões. E como a imaginação e a aparência que concebemos das coisas não vêm destas, mas sim dos nossos sentidos, e estas sensações são variáveis, ocorre que quem julga pelas aparências julga por outra coisa que não o próprio objeto. Diremos que as impressões dos sentidos fornecem à alma uma imagem fiel dos objetos. “
“Em suma, nós mesmos e os objetos não temos existência constante. Nós, nosso julgamento, e todas as coisas mortais, seguimos uma corrente que nos leva sem cessar de volta ao ponto inicial. De sorte que nada de certo se pode estabelecer entre nós mesmos e o que se situa fora de nós, estando tanto o juiz como o julgado em perpétua transformação e movimento. Nada conheceremos de nosso ser, porque tudo o que participa da natureza humana está sempre nascendo ou morrendo, em condições que só dão de nós uma aparência mal definida e obscura; e se procuramos saber o que somos na realidade, é como se quiséssemos segurar a água; quanto mais apertamos o que é fluido, tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda coisa estar sujeita à transformação, a razão nada pode apreender na sua busca do que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existência e não está inteiramente formado, ou começa a morrer antes de nascer.”
“E nós, tolos que somos, tememos uma forma particular da morte quando já conhecemos tantas outras; pois, como ressalta Heráclito, não somente a morte do fogo engendra o ar e a do ar engendra a água, como o podemos ver de maneira mais evidente pelo que se verifica em nós, mas também a flor da idade morre ao chegar a velhice, a infância ao surgir a adolescência, etc. Hoje assinala a morte de ontem, amanhã assinalará a de hoje. Nada é imutável. Admitamos com efeito que sejamos e permaneçamos o que somos; como se explicaria que nos alegremos ou nos entristeçamos com a mesma coisa segundo o momento? Como explicar que gostemos de coisas contrárias, que as detestemos, e as louvemos? Se demonstramos sentimentos diferentes diante de uma mesma coisa, é porque nosso pensamento se modifica, pois não é verossímil que sem mudança em nós variem os sentimentos. O que a mudança afeta já não é mais o mesmo. Cessando de ser idêntico a si mesmo, cessa pura e simplesmente de existir, torna-se outro. Portanto, os sentidos mentem e se enganam acerca da natureza das coisas, quando tomam a aparência pela realidade, e não sabem o que seja esta. Que há então que seja realmente tal qual o vemos? Somente o que é eterno, isto é, o que nunca teve começo e não terá fim; o que não muda sob o efeito do tempo, pois o tempo é móvel e surge como uma sombra arrastando consigo a matéria fluida, instável, sempre em transformação. Ao tempo se aplicam estas palavras: ‘Antes ou depois’, ‘foi ou será’, as quais já mostram à evidência que não se trata de uma coisa que é, porque seria tolice dizer que é algo que ainda não é ou já não é mais. A idéia que temos de tempo exprime-se nestas palavras: ‘Presente, instante, agora’, as quais parecem constituir-lhe a base. Mas que a razão se detenha nela e de imediato o conjunto rui; desde o primeiro instante a razão o destrói, repartindo-o em passado e futuro e recusando-se a aceitar qualquer outra divisão. O mesmo se dá com a natureza que se mede; nada há nela tampouco que permaneça, subsista. Tudo o de que se compõe foi ou está nascendo ou morrendo. Eis por que seria pecado dizer que só Deus é, foi e será, porque são termos que implicam mudanças, transformações, vicissitudes próprias ao que não dura e cuja existência não é contínua. Daí dever-se concluir que ‘só Deus é’, não segundo uma medida qualquer do tempo, mas segundo a eternidade imutável e fixa, que não é função do tempo e não está sujeita a variações. Nada O precedeu, nada se Lhe seguirá, e nada é mais novo e recente; Ele é realmente, agora e sempre, o que para Ele são a mesma coisa. Nada a não ser Ele existe verdadeiramente, de que se possa dizer ‘foi e será’, porquanto Ele não teve começo e não terá fim”. A essa conclusão tão religiosa de um pagão, acrescentarei apenas para terminar tão longa e aborrecida digressão sobre assunto em verdade inesgotável, isto que disse outro filósofo pagão e que apresenta afinidade com o que se transcreveu: ”Vil e abjeta coisa o homem, se não se eleva acima da humanidade!” Eis uma reflexão inspirada em bom sentimento e no desejo de ser útil, e no entanto absurda. É com efeito impossível e contrário à natureza, um punhado maior do que o punho, uma braçada maior do que o braço, um passo maior do que a perna. Não pode tampouco ocorrer que o homem se eleve acima de si mesmo e da humanidade, porque só pode ver com seus olhos e apreender com seus próprios meios. Elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e de se deixar erguer e elevar-se unicamente pelos meios que lhe vêm do céu. É nossa fé cristã, e não a virtude estóica dos filósofos, que pode operar essa divina e milagrosa metamorfose.”
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