CAPÍTULO IX – Dos diferentes objetos do conhecimento
Quanto às duas espécies de conhecimento:
“Há duas espécies de conhecimento: um dos quais é o conhecimento dos fatos, e o outro o conhecimento das conseqüências de uma afirmação para outra. O primeiro está limitado aos sentidos e à memória, e é um conhecimento absoluto, como quando vejo um fato ter lugar, ou recordo que ele teve lugar; é este o conhecimento necessário para uma testemunha. Ao segundo chama-se ciência, e é condicional, como quando sabemos que se a figura apresentada for um círculo, nesse caso qualquer linha reta que passe por seu centro dividi-la em duas partes iguais. Este é o conhecimento necessário para um filósofo, isto é, para àquele que pretende raciocinar.” (HOBBES. pg.33)
CAPÍTULO X – Do poder, valor, dignidade, honra e merecimento
Quanto à definição de poder: “O poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro. Pode ser original ou instrumental.” (HOBBES. pg.33)
Quanto à definição de poder natural: “O poder natural é a eminência das faculdades do corpo ou do espírito; extraordinária força, beleza, prudência, capacidade, eloquência, liberalidade ou nobreza.” (HOBBES. pg.33)
Quanto à definição de poder instrumental: “Os poderes instrumentais são os que se adquirem mediante os anteriores ou pelo acaso, e constituem meios e instrumentos para adquirir mais: como a riqueza, a reputação, os amigos, e os secretos desígnios de Deus a que os homens chamam boa sorte.” (HOBBES. pg.33)
Quanto à natureza do poder instrumental: “Porque a natureza do poder é neste ponto idêntica à da fama, dado que cresce à medida que progride; ou à do movimento dos corpos pesados, que quanto mais longe vão mais rapidamente se movem.” (HOBBES. pg.33)
Quanto à definição do poder de um Estado: “O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado.” (HOBBES. pg.33)
Quanto à definição: o valor de um homem é o seu preço
“O valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é seu preço; isto é, tanto quanto seria dado pelo uso de seu poder, Portanto não absoluto, mas algo que depende da necessidade e julgamento de outrem.
Um hábil condutor de soldados é de alto preço em tempo de guerra presente ou iminente, mas não o é em tempo de paz. Um juiz douto e incorruptível é de grande valor em tempo de paz, mas não o é tanto em tempo de guerra., E tal como nas outras coisas, também no homem não é o vendedor, mas o comprador quem determina o preço. Porque mesmo que um homem (coro muitos fazem) atribua a si mesmo o mais alto valor possível, apesar disso seu verdadeiro valor não será superior ao que lhe for atribuído pelos outros.” (HOBBES. pg.34)
Quanto ao valor que nos atribuímos: “A manifestação do valor que mutuamente nos atribuímos é o que vulgarmente se chama honra e desonra. Atribuir a um homem um alto valor é honrá-lo, e um baixo valor é desonrá-lo. Mas neste caso alto e baixo devem ser entendidos em comparação com o valor que cada homem se atribui a si próprio.” (HOBBES. pg.34)
Quanto ao valor que é atribuído pelo Estado:
“O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os homens vulgarmente chamam dignidade. E esta sua avaliação pelo Estado se exprimo através de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos, ou pelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor.” (HOBBES. pg.34)
Quanto à definição de honra civil:
“Portanto a fonte de toda honra civil reside na pessoa do Estado, e depende da vontade do soberano. Consequentemente é temporária, e chama-se honra civil. É o caso da magistratura, dos cargos públicos e dos títulos e, em alguns lugares, dos uniformes e emblemas. Os homens honram a quem os possui, porque são outros tantos sinais do favor do Estado; este favor é poder.” (HOBBES. pg.35)
Quanto à definição de honra: “Honrosa é qualquer espécie de posse, ação ou qualidade que constitui argumento e sinal de poder.” (HOBBES. pg.35)
Exemplos do que leva à honra ou à desonra:
“Por conseguinte, ser honrado, amado ou temido por muitos é honroso, e prova de poder. Ser honrado por poucos ou nenhum é desonroso.
O domínio e a vitória são honrosos, porque se adquirem pelo poder; a servidão, que vem da necessidade ou do medo, é desonrosa.
A boa sorte (quando duradoura) é honrosa, como sinal do favor de Deus. A má sorte e a desgraça são desonrosas.
A riqueza é honrosa, porque é poder. A pobreza é desonrosa.
A magnanimidade, a liberalidade, a esperança, a coragem e a confiança são honrosas, porque derivam da consciência do poder. A pusilanimidade, a parcimônia, o medo e a desconfiança são desonrosos.
A decisão ou resolução oportuna do que se precisa fazer é honrosa, pois implica ‘desprezo pelas pequenas dificuldades e perigos. A irresolução é desonrosa, como sinal de excessiva valorização de pequenos impedimentos e pequenas vantagens. Porque quando um homem ponderou as coisas tanto quanto o tempo permite, e não se decidiu, a diferença de ponderação é ínfima, logo se ele não se decide é porque sobrevaloriza pequenas coisas, o que é pusilanimidade.
Todas as ações e palavras que derivam, ou parecem derivar de muita experiência, ciência, discrição ou sagacidade são honrosas, pois todas estas últimas são poderes. As ações ou palavras que derivem do erro, da ignorância ou da insensatez são desonrosas.” (HOBBES. pg.35)
Quanto à separação de honra do que é justo ou injusto:
“Não altera o caso da honra que uma ação (por maior e mais difícil que seja, e consequentemente sinal de muito poder) seja justa ou injusta, porque a honra consiste apenas na opinião de poder. Por isso os antigos pagãos não pensavam que desonravam, mas que grandemente honravam os deuses, quando os introduziam em seus poemas cometendo violações, roubos, e outras grandes mas injustas e pouco limpas ações. Por nada é Júpiter tão celebrado como por seus adultérios, ou como Mercúrio por suas fraudes e roubos. E o maior elogio dos que se fazem, num hino de Homero, é que, tendo nascido de manhã, inventou a música ao meio-dia, e antes do anoitecer roubou o gado de Apolo a seus pastores.
Também entre os homens, antes de se constituírem os Estados, não se considerava desonra ser pirata ou ladrão de estrada, sendo estes pelo contrário considerados negócios legítimos, não apenas entre os gregos, mas também nas outras nações, como o prova a história dos tempos antigos. E nesta época, e nesta parte do mundo, os duelos são e sempre serão honrosos, embora ilegais, até que venha um tempo em que a honra seja atribuída aos que recusam, e a ignomínia aos que desafiam.” (HOBBES. pg.36)
CAPÍTULO XI – Das diferenças de costumes
Quanto à definição:
“Entendo aquelas qualidades humanas que dizem respeito a uma vida em comum pacífica e harmoniosa. Para este fim, devemos ter em mente que a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito. Pois não existe o finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais. E ao homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo. Sendo a causa disto que o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro.” (HOBBES. pg.37)
Quanto à tendência geral do homem da busca ao poder:
“Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda. E daqui se segue que os reis, cujo poder é maior, se esforçam por garanti-lo no interior através de leis, e no exterior através de guerras. E depois disto feito surge um novo desejo, em alguns, de fama por uma nova conquista, em outros, de conforto e prazeres sensuais, e em outros de admiração, de serem elogiados pela excelência em alguma arte, ou outra qualidade do espírito.
A competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro.” (HOBBES. pg.37)
Quanto à consequência geral da ignorância das causas:
“A falta de ciência, isto é, a ignorância das causas, predispõe, ou melhor, obriga os homens a confiar na opinião e autoridade alheia. Porque todos os homens preocupados com a verdade, se não confiarem em sua própria opinião deverão confiar na de alguma outra pessoa, a quem considerem mais sábia que eles próprios, e não considerem provável que queira enganá-los.” (HOBBES. pg.39)
Quanto á ignorância do significado das palavras: “A ignorância do significado das palavras, isto é, a falta de entendimento, predispõe os homens para confiar, não apenas na verdade que não conhecem, mas também nos erros e, o que é mais, nos absurdos daqueles em quem confiam. Porque nem o erro nem o absurdo podem ser detectados sem um perfeito entendimento das palavras.” (HOBBES. pg.39)
Quanto à ignorância da constituição original do direito: “A ignorância das causas e da constituição original do direito, da eqüidade, da lei e da justiça predispõe os homens para tomarem como regra de suas ações o costume e o exemplo, de maneira a considerarem injusto aquilo que é costume castigar, e justo aquilo de cuja impunidade e aprovação pode apresentar um exemplo, ou (como barbaramente lhe chamam os juristas, os únicos que usam esta falsa medida) um precedente. Como crianças pequenas, que têm como única regra dos bons e maus costumes a correção que recebem de seus pais e mestres, salvo que as crianças são fiéis a essa regra, ao passo que os homens não o são; porque, tendo-se tornado fortes e obstinados, apelam, do costume para a razão, e da razão para o costume, conforme mais lhes convém, afastando-se do costume quando seu interesse o exige, e pondo-se contra a razão todas as vezes que a razão fica contra eles. É esta a causa devido à qual a doutrina do bem e do mal é objeto de permanente disputa, tanto pela pena como pela espada, ao passo que com a doutrina das linhas e figuras o mesmo não ocorre, dado que aos homens não preocupa qual é a verdade neste ultimo assunto, como coisa que não se opõe á ambição, ao lucro ou à cobiça de ninguém.” (HOBBES. pg.39)
Quanto à ignorância das causas remotas: “A ignorância das causas remotas predispõe os homens para atribuir todo evento às causas imediatas e instrumentais, pois são estas as causas que percebem. E daí se segue que em todos os lugares onde os homens se vêem sobrecarregados com tributos fiscais, descarregam sua fúria em cima dos publicanos, isto é, os recebedores recolhedores e outros funcionários da renda pública, e se associam àqueles que censuram o governo civil; e assim, depois de se terem comprometido para além dos limites de qualquer justificação possível, se voltam também contra a autoridade suprema, por medo ao castigo ou por vergonha de receber perdão.” (HOBBES. pg.39)
Quanto à ignorância das causas naturais: “A ignorância das causas naturais predispõe os homens para a credulidade, chegando muitas vezes a acreditar em coisas impossíveis. Pois esses nada conhecem em contrário a que elas possam ser verdade, sendo incapazes de detectar a impossibilidade. E a credulidade, dado que os homens se comprazem em escutar em companhia, predispõe-nos para mentir. Assim, a simples ignorância sem ser acompanhada de malícia é capaz de levar os homens tanto a acreditar em mentiras como a dizê-las; e por vezes também a inventá-las.” (HOBBES. pg.39)
Quanto ao que predispõe ou afasta o homem para investigar a causa das coisas:
“A curiosidade, ou amor pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forçosamente deve chegar a esta ideia: que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é eterna; que é aquilo a que os homens chamam Deus. De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma ideia dele que corresponda a sua natureza.” (HOBBES. pg.39)
CAPÍTULO XII – Da religião
Quanto à origem da religião:
“Porque tal como Prometeu (nome que quer dizer homem prudente) foi acorrentado ao monte Cáucaso, um lugar de ampla perspectiva, onde uma águia se alimentava de seu gado, devorando de dia o que tinha voltado a crescer durante a noite, assim também o homem que olha demasiado longe, preocupado com os tempos futuros, tem durante todo o dia seu coração ameaçado pelo medo da morte, da pobreza ou de outras calamidades, e não encontra repouso nem paz para sua ansiedade a não ser no sono.
Este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das causas, como se estivessem no escuro, deve necessariamente ter um objeto. Quando portanto não há nada que possa ser visto, nada acusam, quer da boa quer da má sorte, a não ser algum poder ou agente invisível. Foi talvez neste sentido que alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios) é muito verdadeiro. Mas o reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata desse efeito, e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe (como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome de Deus.” (HOBBES. pg.41)
“E é nestas quatro coisas, a crença nos fantasmas, a ignorância das causas segundas, a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas acidentais como prognósticos, que consiste a semente natural da religião. A qual, devido às diferenças da imaginação, julgamento e paixões dos diversos homens, se desenvolveu em cerimônias tão diferentes que as que são praticadas por um homem são em sua maior parte consideradas ridículas por outro.” (HOBBES. pg.41)
Quanto à origem dos dons adivinhatórios:
“E por último, aos prognósticos dos tempos vindouros, que naturalmente não passam de conjeturas baseadas na experiência dos tempos passados, e sobrenaturalmente não são mais do que revelação divina, os mesmos autores da religião dos gentios, baseando-se em parte numa pretensa experiência, e em parte numa pretensa revelação, acrescentaram inúmeras outras supersticiosas maneiras de adivinhação. E fizeram os homens acreditar que descobririam sua sorte, às vezes nas respostas ambíguas ou destituídas de sentido dos sacerdotes de Delfos, Delos, e Amon, e outros famosos oráculos, respostas que eram propositadamente ambíguas, para dar conta do evento de ambas as maneiras, ou absurdas, pelas intoxicantes emanações do lugar, o que é muito freqüente em cavernas sulfurosas.” (HOBBES. pg.43)
“Às vezes no simples acaso, como no jogo de cara ou coroa, ou na contagem do número de orifícios de um crivo, ou no jogo de escolher versos de Homero e Virgílio, e em inúmeras outras vãs invenções do gênero. Tão fácil é os homens serem levados a acreditar em a qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles, que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância.” (HOBBES. pg.43)
Quanto aos cuidados necessários para manter o povo em obediência e paz:
“Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites.” (HOBBES. pg.43)
“Em segundo lugar, tiveram o cuidado de fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis. Em terceiro lugar, o de prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se- devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses; assim como que da ira dos deuses resultava o insucesso na guerra, grandes doenças contagiosas, terremotos,, e a desgraça de cada indivíduo; e que essa ira provinha da falta de cuidado com sua veneração, e do esquecimento ou do equívoco em qualquer aspecto das cerimônias exigidas.” (HOBBES. pg.43)
“E através destas e outras instituições semelhantes conseguiam, a serviço de seu objetivo (que era a paz do Estado), que o vulgo, em ocasiões de desgraça, atribuísse a culpa à falta de cuidado, ou ao cometimento de erros, em suas cerimônias, ou à sua própria desobediência às leis, tornando-se assim menos capaz de rebelar-se contra seus governantes.” (HOBBES. pg.43)
“Tendo em conta a maneira como a religião se propagou, não é difícil compreender as causas devido às quais toda ela se resolve em suas primeiras sementes ou princípios. Os quais são apenas a crença numa divindade e em poderes invisíveis e sobrenaturais, que jamais poderá ser extirpada da natureza humana a tal ponto que novas religiões deixem de brotar dela, mediante a ação daqueles homens que têm reputação suficiente para esse efeito.” (HOBBES. pg.44)
REFERÊNCIAS
HOBBES, Thomas de M. Leviatã. [tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva].
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