Hans Jonas – O Princípio da Responsabilidade

Hans Jonas – O Princípio da Responsabilidade

Ubirajara T Schier

 

I. O Exemplo da Antiguidade

1.O Homem e a Natureza:

“A violação da natureza e civilização do homem caminham de mãos dadas. Ambas enfrentam os elementos. Uma, na medida em que ele se aventura na natureza e subjuga as suas criaturas; a outra, na medida em que erige no refúgio da cidade e de suas leis um enclave contra aquelas. O homem é o criador de sua vida como vida humana. Amolda as circunstâncias conforme sua vontade e necessidade, e nunca se encontra desorientado, a não ser diante da morte.” (JONAS. pg.32)

“O que ali não está dito, mas que estava implícito para aquela época, é a consciência de que, a despeito de toda grandeza ilimitada de sua engenhosidade, o homem,confrontado com os elementos, continua pequeno:é justamente isso que torna as suas incursões naqueles elementos tão audaciosas e lhe permite tolerar a sua petulância. Todas as liberdades que ele se permite com os habitantes da terra, do mare do ar deixam inalterada a natureza abrangente desses domínios e não prejudicam suas forças geradoras. Elas não sofrem dano real quando, das suas grandes extensões, ele recorta o seu pequeno reino. Elas perduram, enquanto os empreendimentos humanos percorrem efêmeros trajetos. Ainda que ele atormente ano após ano a terra com o arado,ela é perene e incansável; ele pode e deve fiar-se na paciência perseverante da terra e deve ajustar-se ao seu ciclo. Igualmente perene é o mar. Nenhum saque das suas criaturas vivas pode esgotar-lhe a fertilidade, os navios que o cruzam não o danificam,e o lançamento de rejeitos não é capaz de contaminar suas profundezas. E, não importa para quantas doenças o homem ache cura, a mortalidade não se dobra à sua astúcia. Tudo isso é válido, pois antes de nossos tempos as interferências do homem na natureza,tal como ele próprio as via, eram essencialmente superficiais e impotentes para prejudicar um equilíbrio firmemente assentado.” (JONAS. pg.32)

2.A obra humana da “cidade”

Sua vida desenvolveu-se entre o que permanecia e o que mudava: o que permanecia era a natureza, o que mudava eram suas pró- prias obras. A maior dessas obras era a cidade, à qual ele podia emprestar um certo grau de permanência por meios que inventava e aos quais se dispunha a obedecer. Mas essa permanência, artificialmente produzida, não oferecia nenhuma garantia de longo prazo. Na condição de um artefato vulnerável, a construção cultural pode esgotar-se ou desencaminhar-se. A despeito de toda liberdade concedida à autodeterminação, nem mesmo no interior do ambiente artificial o seu arbítrio poderá revogar algum dia as condições básicas da existência humana. Sim, a inconstância do fado humano assegura a constância da condição humana. O acaso, a sorte e a estupidez, os grandes niveladores nos assuntos dos homens, atuam como uma espécie de entropia e permitem que todos os projetos desemboquem por fim na norma eterna. Estados erguem-se e caem, dominações vêm e vão, famílias prosperam e degeneram — nenhuma mudança é para durar.” (JONAS. pg.33)

II. CARACTERÍSTICAS DA ÉTICA ATÉ O MOMENTO PRESENTE

“1. Todo o trato com o mundo extra-humano,isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era — à exceção da medicina — eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto;

2. À significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem,inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda ética tradicional é antropocêntrica.

4. O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam se na ação,seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objetivos era válida tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo da ação era pequeno,o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo e imputabilidade era curto,e limitado o controle sobre as circunstâncias. O comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O longo trajeto das consequências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte,a ética tinha a ver como aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública.

5. Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. Em todas essas máximas, aquele que age e o “outro” de seu agir são partícipes de um presente comum. Os que vivem agora e os que de alguma forma têm trânsito comigo são os que têm alguma reivindicação sobre minha conduta, na medida em que esta os afete pelo fazer ou pelo omitir. O universo moral consiste nos contemporâneos, e o seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. Com horizonte espacial do lugar ocorre algo semelhante, no qual o que age e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos, como superior hierárquico e subalterno, como o mais forte e o mais fraco, e em todos os outros papéis nos quais os homens têm a ver uns com os outros. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera da ação. O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano,concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento,e seu lugar completo é sempre o presente.” (JONAS. pg.35-37)

III. NOVAS DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE

1.A vulnerabilidade da natureza

Tome-se, por exemplo, como primeira grande alteração ao quadro herdado, a crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção técnica do homem — uma vulnerabilidade que jamais fora pressentida antes de que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos. A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não se serre 0 galho sobre o qual se está sentado? Mas“este” que aqui se senta e que talvez caia no precipício — quem é? E qual é o meu interesse no seu sentar ou cair? Enquanto for o destino do homem, dependente da situação da natureza, a principal razão que torna o interesse na manutenção da natureza um interesse moral, ainda se mantém a orientação antropocêntrica de toda ética clássica. Mesmo assim,a diferença é grande. Desaparecem as delimitações de proximidade e simultaneidade, rompidas pelo crescimento espacial e o prolongamento temporal das sequências de causa e efeito, postas em movimento pela práxis técnica mesmo quando empreendidas para fins próximos. […] Toda ética tradicional contava somente com um comportamento não cumulativo.” (JONAS. pg.39-40)

“Mas a autopropagação cumulativa da mudança tecnológica do mundo ultrapassa incessantemente as condições de cada um de seus atos contribuintes e transcorre em meio a situações sem precedentes, diante das quais os ensinamentos da experiência são impotentes.” (JONAS. pg.40)

2.0 novo papel do saber na moral

Sob tais circunstâncias, o saber torna-se um dever prioritário, mais além de tudo o que anteriormente lhe era exigido, e o saber deve ter a mesma magnitude da dimensão causal do nosso agir. […] O hiato entre a força da previsão e o poder do agir produz um novo problema ético. Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre o nosso excessivo poder. Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, inclusive à existência da espécie.” (JONAS. pg.41)

3. Um direito moral próprio da natureza?

Ao menos deixou de ser absurdo indagar se a condição da natureza extra-humana,a biosfera no todo e em suas partes, hoje subjugadas ao nosso poder, exatamente por isso não se tornaram um bem a nós confiados, capaz de nos impor algo como uma exigência moral — não somente por nossa própria causa, mas também em causa própria e por seu próprio direito. Se assim for, isso requereria alterações substanciais nos fundamentos da ética. Isso significaria procurar não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano. Nenhuma ética anterior (além da religião) nos preparou para um tal papel de fiel depositário — e a visão científica de natureza, menos ainda.” (JONAS. pg.41)

IV. TECNOLOGIA COMO “VOCAÇÃO” DA HUMANIDADE

1. Homo faber acima do homo sapiens

Se retornarmos às ponderações estritamente inter-humanas, há ainda um outro aspecto ético no fato de que a techne, como esforço humano, tenha ultrapassado os objetivos pragmaticamente delimitados dos tempos antigos. Aquela época, como vimos,a técnica era um tributo cobrado pela necessidade, e não o caminho para um fim escolhido pela humanidade — um meio com um grau finito de adequação a fins próximos, claramente definidos. Hoje, na forma da moderna técnica, a techne transformou-se em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento mais significativo. Somos tentados a crer que a vocação dos homens se encontra no contínuo progresso desse empreendimento, superando-se sempre a si mesmo, rumo a feitos cada vez maiores. A conquista de um domínio total sobre as coisas e sobre o próprio homem surgiria como a realização do seu destino. Assim,o triunfo do homo faber sobre o seu objeto externo significa, ao mesmo tempo,o seu triunfo na constituição interna do homo sapiens, do qual ele outrora costumava ser uma parte servil. […] Sua criação cumulativa, isto é, o meio ambiente artificial em expansão, reforça, por um contínuo efeito retroativo,os poderes especiais por ela produzidos: aquilo que já foi feito exige o emprego inventivo incessante daqueles mesmos poderes para manter-se e desenvolver-se, recompensando-o com um sucesso ainda maior — o que contribui para o aumento de suas ambições. […] Não há nada melhor que O sucesso, e nada nos aprisiona mais que o sucesso. O que quer que pertença à plenitude do homem fica eclipsado em prestígio pela extensão de seu poder, de modo que essa expansão, na medida em que vincula mais e mais as forças humanas à sua empresa, é acompanhada de uma contração do conceito do homem sobre si próprio e de seu Ser.” (JONAS. pg.41)

“[…] o homem atual é cada vez mais o produtor daquilo que ele produziu e o feitor daquilo que ele pode fazer; mais ainda, é o preparador daquilo que ele, em seguida,estará em condição de fazer. […] Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública. Nunca antes a política pública teve de lidar com questões de tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão longas. De fato, a natureza modificada do agir humano altera a natureza fundamental da política.” (JONAS. pg.42)

2.A cidade universal como segunda natureza e o dever ser do homem no mundo

Pois a fronteira entre “Estado”(pólis) e “natureza” foi suprimida: a “cidade dos homens”, outrora um enclave no mundo não-humano,espalha-se sobre a totalidade da natureza terrestre e usurpa o seu lugar. À diferença entre o artificial e o natural desapareceu, o natural foi tragado pela esfera do artificial; simultaneamente, o artefato total, as obras do homem que se transformaram no mundo,agindo sobre ele e por meio dele, criaram um novo tipo de “natureza” isto é, uma necessidade dinâmica própria com a qual a liberdade humana defronta-se em um sentido inteiramente novo.” (JONAS. pg.44)

“A presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível de onde partia toda ideia de dever referente à conduta humana: agora,ela própria tornou-se um objeto de dever — isto é, o dever de proteger a premissa básica de todo o dever, ou seja, precisamente a presença de meros candidatos a um universo moral no mundo físico do futuro; isso significa, entre outras coisas, conservar este mundo físico de modo que as condições para uma tal presença permaneçam intactas; e isso significa proteger a sua vulnerabilidade diante de uma ameaça dessas condições.” (JONAS. pg.45)

V. VELHOS E NOVOS IMPERATIVOS

“1. O imperativo categórico de Kant dizia: “Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral” Aqui, o “que tu possas” invocado é aquele da razão e de sua concordância consigo mesma: a partir da suposição da existência de uma sociedade de atores humanos(seres racionais em ação),a ação deve existir de modo que possa ser concebida, sem contradição, como exercício geral da comunidade. Chame-se atenção aqui para o fato de que reflexão básica da moral não é propriamente moral, mas lógica: o “poder” ou “não poder” querer expressa autocompatibilidade ou incompatibilidade, e não aprovação moral ou desaprovação. Mas não existe nenhuma contradição em si na ideia de que a humanidade cesse de existir, e dessa forma também nenhuma contradição em si na ideia de que a felicidade das gerações presentes e seguintes possa ser paga com a infelicidade ou mesmo com a não-existência de gerações pósteras — tampouco,afinal, como a ideia contrária, de que a existência e a felicidade das gerações futuras seja paga com a infelicidade e mesmo com eliminação parcial da presente. O sacrifício do futuro em prol do presente não é logicamente mais refutável do que o sacrifício do presente a favor do futuro. A diferença está apenas em que, em um caso,a série segue adiante e, no outro, não. Mas que ela deva seguir adiante, independentemente da distribuição de felicidade e infelicidade,e até com o predomínio da infelicidade sobre a felicidade, e mesmo com o da imoralidade sobre a moralidade,* tal não se pode deduzir da regra da coerência no interior da série, por maior ou menor que seja a sua extensão. Trata-se de um mandamento de um tipo inteiramente diferente, externo e prévio àquela série, e cujo fundamento último só pode ser metafísico.” (JONAS. pg.47)

“2. Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou, expresso negativamente: “Aja de modo a que os feitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou, simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”; ou, em um uso novamente positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer”.” (JONAS. pg.48)

“3. É fácil perceber que a infração desse tipo de imperativo não conduz a nenhuma contradição. Eu posso querer o bem presente ao preço do sacrifício do bem futuro. Eu posso querer, assim como o meu próprio fim, também o fim da humanidade. Sem cair em contradição, posso preferir, no meu caso pessoal, bem como no da humanidade, uma breve queima de fogos de artifício que permita a mais completa auto-realização, à monotonia de uma continuação interminável na mediocridade. Mas o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade; que Aquiles tinha, sim, o direito de escolher para si uma vida breve, cheia de atos gloriosos, em vez de uma vida longa em uma segurança sem glórias (sob o pressuposto tácito de que haveria uma posteridade que saberia contar os seus feitos); mas que nós não temos o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco. Não é fácil justificar teoricamente — e talvez, sem religião, seja mesmo impossível — por que não temos esse direito; por que, ao contrário, temos um dever diante daquele que ainda não é nada e que não precisa existir como tal e que, seja como for, na condição de não-existente, não reivindica existência. De início, o nosso imperativo se apresenta sem justificativa, como um axioma.” (JONAS. pg.48)

“O novo imperativo clama por outra coerência: não a do ato consigo mesmo, mas a dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana no futuro. E a “universalização” que ele visualiza não é hipotética, isto é, a transferência meramente lógica do “eu” individual para um“todos” imaginá- rio, sem conexão causal com ele (“se cada um fizesse assim”): ao contrário, as ações subordinadas ao novo imperativo, ou seja, as ações do todo coletivo, assumem característica de universalidade na medida real de sua eficácia.” (JONAS. pg.49)

VI. ANTIGAS FORMAS DA “ÉTICA DO FUTURO”

1. Ética da consumação no mais-além

Quando se pergunta, portanto, por que a renúncia radical deste mundo é tão meritória a ponto de poder pretender aquela compensação ou recompensa, uma resposta seria a de que a carne é pecadora, o prazer é mau e o mundo, impuro. Neste caso, assim como no caso ligeiramente diferente, em que a individuação como tal seja considerada má, o ascetismo apresenta um agir instrumental autêntico e um caminho para aquela realização interior almejada pela ação pessoal. Ele é o caminho da impureza para a pureza, do pecado para a salvação, da servidão para a liberdade, do egoísmo para a renúncia de si; sob tais condições metafísicas, o ascetismo é a melhor forma de se viver. Com isso, no entanto, retornaríamos à ética da imediaticidade e da simultaneidade, à ética da auto perfeição, mesmo se egoísta e individualista, na qual, em momentos de iluminação espiritual resultantes de seus esforços, é possível até mesmo gozar da recompensa eterna na vivência mística do absoluto.” (JONAS. pg.52-53)

“Sem dúvida, louva-se o legislador também pela durabilidade de sua criação, mas não por planejar previamente algo que só deve tornar-se realidade para os pósteros, sendo inalcançável para os contemporâneos. Seu esforço consiste em criar uma estrutura política viável, e a prova da viabilidade está na duração, a mais inalterada possível, do que foi criado. O melhor Estado ,assim se imaginava, é também o melhor para o futuro, pois o seu equilíbrio interno atual garante o futuro; […] Por isso,o legislador não propõe o Estado perfeito em termos ideais, mas o melhor em termos reais,isto é, o melhor Estado possível, tão possível e tão ameaçado hoje quanto o será no futuro. Tal perigo, que ameaça toda ordem com a desordem das paixões humanas,torna necessário que o estadista, no exercício do governo, exercite uma sabedoria estável, para além da sabedoria única e fundadora do legislador.” (JONAS. pg.53)

“A previsão do estadista consiste na sabedoria e na moderação que ele devota ao presente: esse presente não está aí com vista a um futuro de outra espécie, mas, na hipótese mais favorável, a um futuro que se mantém igual a ele e precisa justificar-se a si mesmo hoje, tanto quanto naquele futuro. A duração é um efeito secundário do bem atual, válido para sempre. A ação política possui um intervalo de tempo de ação e de responsabilidade maior do que aquele da ação privada, mas, na concepção pré-moderna, a sua ética não é nada mais do que uma ética do presente, embora aplicada a uma forma de vida de duração mais longa.” (JONAS. pg.54)

“3.A utopia moderna c. Somente com o progresso moderno, com o fato e ideia, surge a possibilidade de se considerar que todo o passado é uma etapa preparatória para o presente e de que todo o presente é uma etapa preparatória para o futuro. Quando essa representação (que, sendo ilimitada, não privilegia nenhum estado como definitivo, deixando a cada um a imediaticidade do presente) liga-se a uma escatologia secularizada que atribui ao absoluto, definido em termos seculares, um lugar demarcado no tempo — isso se acrescentando a concepção de uma dinâmica teleológica que conduz ao estado definitivo —, então estão dados os pressupostos teóricos para a política utópica.” (JONAS. pg.56)

“O agir ocorre em função de um futuro que não será usufruído nem por seus atores, nem por suas vítimas ou contemporâneos. A obrigação para com o presente provém de lá, e não do bem-estar ou do mal-estar de seu mundo contemporâneo; e as normas do agir são tão provisórias e mesmo tão “inautênticas” quanto a situação que ele pretende superar.”(JONAS. pg.57)

“Portanto, já existe o caso de uma ética do futuro, o marxismo, comportando uma distância da previsão, uma extensão temporal da responsabilidade assumida, uma ampliação do objeto (toda a futura humanidade) e uma preocupação profunda (toda a essência futura do homem).” (JONAS. pg.57)

“Nossa comparação se deu comas formas históricas da ética da simultaneidade e da imediaticidade, para as quais a ética kantiana serviu de exemplo. O que está em questão não é a validade delas no próprio domínio, masa suficiência delas para as novas dimensões do agir humano, que lhes transcendem. Nossa tese é de que os novos tipos e limites do agir exigem uma ética de previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações com as quais ela tem de lidar. Vimos que estas são as situações que emergem das obras do homo faber na era da técnica. Mas ainda não mencionamos a classe potencialmente mais funesta dessas obras de nova espécie. Situamos a techne apenas em sua aplicação no domínio não-humano. Mas o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto.” (JONAS. pg.58)

VII. O HOMEM COMO OBJETO DA TÉCNICA

1.Prolongamento da vida

Hoje, porém,certos progressos na biologia celular nos acenam com a perspectiva de atuar sobre os processos bioquímicos de envelhecimento, ampliando a duração da vida humana, talvez indefinidamente. A morte não parece mais ser uma necessidade pertinente à natureza do vivente, mas uma falha orgânica evitável; suscetível, pelo menos, de ser em princípio tratável e adiável por longo tempo.” (JONAS. pg.59)

“Antes de tais questões últimas colocam-se as questões mais práticas de saber quem deve se beneficiar com a hipotética bênção: pessoas de valor e mérito especial? De eminência e importância social? Aqueles que podem pagar por isso? Todos? A última opinião pareceria a única justa. Mas a conta seria paga na extremidade oposta, na fonte. Pois está claro que, na escala demográfica, o preço por uma idade dilatada é um retardamento proporcional da reposição, isto é, um ingresso menor de vida nova. O resultado seria uma proporção decrescente de juventude em uma população crescentemente idosa. Isso será bom ou ruim para a condição geral do homem? Com isso ganharia ou perderia a espécie? Em que medida seria justo barrar o lugar da juventude, ocupando-o? Ter de morrer liga-se ao ter nascido: mortalidade é apenas o outro lado da fonte duradoura da natalidade (Gebiirtlichkeit, para utilizar uma expressão cunhada por Hannah Arendt). As coisas sempre foram assim; mas agora o seu sentido deve ser repensado no domínio da decisão. Para se tomar o extremo: se abolirmos a morte, temos de abolir também a procriação, pois a última é a resposta da vida à primeira. Então teríamos um mundo de velhice sem juventude e de indivíduos já conhecidos, sem a surpresa daqueles que nunca existiram. Mas talvez seja exatamente esta a sabedoria na severa disposição de nossa mortalidade: a de que ela nos oferece a promessa, continuamente renovada, da novidade,da imediaticidade e do ardor da juventude, e ao mesmo tempo uma permanente oferta de alteridade como tal. Não há substituto para tanto numa acumulação maior de experiência prolongada: ela nunca poderá reconquistar a prerrogativa única de se ver o mundo pela primeira vez e com olhos novos, nem reviver o espanto (para Platão, o princípio da filosofia) ou a curiosidade da criança, que raramente se transmuda em ânsia de saber no adulto, até que ela ali se paralise. Esse eterno recomeçar, que só se pode obter ao preço do eterno terminar, pode muito bem ser a esperança da humanidade, que a protege de mergulhar no tédio e na rotina, sendo a sua chance de preservar a espontaneidade da vida.”(JONAS. pg.60)

“2. Controle de comportamento Decisiva é a questão sobre que tipo de indivíduos tornam valiosa a existência de uma sociedade como um todo. Ao longo do caminho da crescente capacidade de manipulação social em detrimento da autonomia individual, em algum lugar se deverá colocar a questão do valor, do valera-pena de todo empreendimento humano. Sua resposta deve buscar a imagem do homem,da qual nos sentimos devedores. Devemos repensá- la à luz do que hoje podemos fazer com ela ou fazemos a ela e que nunca pudemos fazer anteriormente.” (JONAS. pg.60)

VIII. A DINÂMICA “UTÓPICA” DO PROGRESSO TÉCNICO E O EXCESSO DE RESPONSABILIDADE

“Quando,pois, a natureza nova do nosso agir exige uma nova ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional à amplitude do nosso poder, ela então também exige, em nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade — uma humildade não como a do passado, em decorrência da pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza do nosso poder, pois há um excesso do nosso poder de fazer sobre o nosso poder de prever e sobre o nosso poder de conceder valor e julgar. Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das consequências últimas é motivo para uma contenção responsável — a melhor alternativa,à falta da própria sabedoria. Vale a pena mencionar outro aspecto e justificativa da nova ética da responsabilidade requerida pelo futuro distante: a dúvida quanto à capacidade do governo representativo em dar conta das novas exigências, segundo os seus princípios e procedimentos normais. Pois esses princípios e procedimentos permitem que sejam ouvidos apenas os interesses atuais, que fazem valer a sua importância e exigem ser levados em consideração. Autoridades públicas devem-lhes prestar contas, e essa é a maneira pela qual surge concretamente o respeito aos direitos (à diferença de seu reconhecimento abstrato). Mas c “futuro” não está representado em nenhuma instância; ele não é uma força que possa pesar na balança. Aquilo ‘que não existe não faz nenhum lobby, e os não-nascidos são impotentes. Com isso, os que lhes devem prestar contas não têm por ora nenhuma realidade política diante de si no processo de tomada de decisão; quando aqueles puderem reivindicá-la, nós, os responsáveis, não existiremos mais. Isso recoloca em toda a sua agudeza a velha questão do poder dos sábios ou da força das ideias no corpo político, quando estas não se ligam a interesses egoístas. Que força deve representar o futuro no presente? Essa é uma questão para a filosofia política.” (JONAS. pg.64)

IX. O VÁCUO ÉTICO

“Diante de ameaças iminentes, cujos efeitos ainda podem nos atingir, frequentemente o medo constitui o melhor substituto para a verdadeira virtude e a sabedoria. […] as uma religião inexistente não pode desobrigar a ética de sua tarefa; da religião pode-se dizer que ela existe ou não existe como fato que influencia a ação humana, mas no caso da ética é precise dizer que ela tem de existir. Ela tem de existir porque os homens agem,e « ética existe para ordenar suas ações e regular seu poder de agir. Sua existência é tanto mais necessária, portanto, quanto maiores forem os poderes do agir que ela tem: de regular. Assim como deve estar adaptado à sua magnitude, o princípio ordenador também deve adaptar-se ao tipo de ação que se deve regular. […] É somente sob a pressão de hábitos de ação concretos, e de maneira geral do fato de que os homens agem sem que para tal precisem ser mandados, que a ética entra em cena como regulação desse agir, indicando-nos como uma estrela-guia aquilo que é o bem ou o permitido. Uma tal pressão provém das novas faculdades de ação tecnológicas do homem,cuja utilização está dada pelo simples fato da sua existência.” (JONAS. pg.65-66)


REFERÊNCIAS

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade : ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. [tradução do original alemão Marijane Poco Lisboa, Luiz Barros Barros M Monte] Rio de Janeiro/RJ. Editora Contraponto.

 

 

Be the first to comment on "Hans Jonas – O Princípio da Responsabilidade"

Leave a comment