FICHAMENTO: RUIZ, Castor Bartolomé. A Filosofia como forma de vida. Revista IHU On-line 461

REFERÊNCIA

RUIZ, Castor Bartolomé. A Filosofia como forma de vida. Revista IHU On-line, São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos. Ano XV. Nº461. 23 de Março de 2015. Acesso em: 13/06/2022.

 


FICHAMENTO

#filosofia como forma de vida : introdução

A filosofia moderna, como o resto das áreas de conhecimento, sofreu o impacto da segmentação dos saberes. A ela foi atribuído um segmento específico do saber (a especulação conceitual) e dela foram retiradas outras formas de fazer filosofia que eram inerentes às culturas clássicas. Entre as dimensões podadas da filosofia moderna interessa-nos analisar a estreita relação da filosofia antiga com a forma-de-vida. Ou seja, a questão que se colocava era como a filosofia deveria ajudar a criar uma forma de vida regida por princípios de conhecimento (gnose) apropriados. Esta questão era, na verdade, o objetivo principal da filosofia, ao menos desde Sócrates, século V a.C. até a hegemonia da cultura cristã, século V d.C.

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O objetivo da filosofia, para Sócrates, não era saber muito ou argumentar melhor, senão saber e argumentar para viver. O estilo de vida, e não o saber, tornava a pessoa um verdadeiro filósofo. O verdadeiro filósofo se distinguia por sua forma de vida. O modelo socrático da filosofia como forma de vida perdurou, como dizíamos, até o século V d.C. As diversas escolas filosóficas que se sucederam e permaneceram ao longo dos séculos: platônicos, neoplatônicos, aristotélicos, estoicos, epicuristas, cínicos e céticos, divergiam entre si no conteúdo teórico e no método do conhecimento, mas todas elas coincidiam num ponto: a filosofia tem por objetivo construir uma forma-de- -vida. Cada escola tinha um ideal de forma-de-vida a ser perseguido e para o qual se direcionava todo o conhecimento desde a física à ontologia, da retórica à lógica, passando pela ética e a política. Os métodos e o ideal da forma de vida eram diferentes, mas todas as variantes de forma de vida propostas tinham outro ponto em comum: conseguir a eudaimonia (felicidade).

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Para os aristotélicos o ideal de vida era atingir o bios teoreticos (vida contemplativa), para os estoicos era conseguir a ataraxia (não perturbar-se, permanecer impassível, não sofrer) através do controle do hegemonikon (princípio diretor da vontade); para os epicuristas a felicidade se conseguia também atingindo a ataraxia, porém o meio proposto era o desfrute inteligente, comedido e harmonioso dos prazeres da vida; os céticos também propunham a ataraxia como meta da forma de vida, para eles se atingia através da suspensão do juízo, pois nada é verdadeiro ou falso, tudo é relativo. Para os cínicos, o ideal da filosofia deve ser uma forma de vida segundo a natureza, despojando- -se de todos os artifícios sociais que escravizam o ser humano. Seu objetivo era conseguir a autarkeia (autonomia), ser livres ao máximo dos entraves sociais e depender o mínimo das necessidades naturais praticando a apatheia (suspensão dos sentimentos).

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Por diversas causas que neste momento não podemos desenvolver, esse estreito vínculo da filosofia com a criação de uma forma de vida foi esquecido ou deixado de lado como algo muito secundário, na filosofia moderna.

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A bem da verdade, ao longo da história da filosofia, muitos grandes filósofos dedicaram parte de suas reflexões a esta questão, mas quase sempre como um apêndice menor submetido ao objetivo maior que era o aparato conceitual. Para os filósofos clássicos, durante mais de mil anos, a relação era inversa. O ingente aparato conceitual das diversas escolas filosóficas tinha por objetivo implementar uma forma-de- -vida. O desenvolvimento argumentativo da ontologia, da física, da cosmologia, da lógica, entre outras, só se entendia como saberes auxiliares da forma de vida. Por isso, todas elas enfatizavam a constituição do ethos como objetivo da filosofia e a criação da polis como uma forma coletiva de vida.

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Na filosofia contemporânea, alguns pensadores, por diversos motivos, voltaram seu olhar para esta questão esquecida ou mutilada da filosofia, qual seja a responsabilidade por criar uma forma de vida. Entre estes pensadores destacamos as obras de Pierre Hadot, Michel Foucault e Giorgio Agamben. Cada um deles voltou-se sobre a problemática da filosofia como forma- -de-vida e para a ética do “cuidado de si” (epimeleia heatou). Neste texto propomos apresentar alguns elementos da obra de Hadot sobre a filosofia como forma de vida.

 

#pierre hadot

Pierre Hadot (1922-2010) foi um filósofo que dedicou a maior parte de suas investigações aos estudos da filosofia antiga com ênfase nos estoicismo, epicurismo e no platonismo. A originalidade dos estudos de Hadot reside em que este autor não se limitou a expor de forma erudita o pensamento das escolas antigas, mas mostrou com insistência e agudeza a inextricável relação que existia na antiguidade entre a filosofia e a vida, ao extremo de sustentar a tese de que o objetivo de toda escola filosófica era criar uma forma de vida. Fora desse objetivo, a filosofia perdia seu sentido e se transformava em outra coisa, num saber especulativo qualquer, mas que não poderia ser denominado de filosofia.

#pierre hadot, foucault e agamben : relação entre os autores

Hadot mostrou que a filosofia era uma forma de vida e que para atingir o ideal proposto era necessá- rio gnosis correta, techne condizente e uma askesis apropriada. As pesquisas de Hadot tiveram uma grande influência no pensamento de Foucault, principalmente na guinada que este autor realizou na década de 1980 para o estudo da ética do cuidado de si na filosofia antiga. Atualmente, Agamben vem publicando uma série de obras com o tema central da forma-de-vida, embora nelas não faz referência a Hadot. Mesmo assim se percebe que Agamben dá continuidade às pesquisas de Foucault em âmbitos que este autor não explorou tanto, mais concretamente a noção de forma-de-vida no cristianismo primitivo e até medieval. Para Foucault e Agamben as pesquisas sobre “o cuidado de si” e “a forma-de-vida” se vinculam à política, concretamente aos modos de resistência contra os dispositivos biopolíticos de controle social. A prática ética do “cuidado de si”, para Foucault, é uma referência para pensar a constituição histórica da autonomia no seio dos dispositivos biopolíticos de controle. As genealogias de algumas práticas que criaram uma forma-de-vida, em Agamben, sinalizam a possibilidade de uma outra política ou da “política que vem”, aquela que não mais captura a vida como elemento útil, pois a vida consegue criar sua própria forma-de-vida, por isso talvez uma forma impolítica.

#pierre hadot, foucault e agamben : relação entre os autores

Nos diversos enfoques destes três filósofos contemporâneos sobre a filosofia e a forma de vida há alguns aspectos comuns, entre eles o estudo de algumas técnicas específicas que os diversos saberes filosóficos e práticas utilizaram para criar uma forma de vida. A filosofia, para conseguir constituir uma forma de vida, necessita criar e utilizar corretamente algumas techne e realizar frequente e corretamente determinadas askesis. Técnicas como os hypomnémata (escritos de si, diários), a melete (meditação), os retiros, os aconselhamentos com um outro, a direção de consciência, a confissão, os jejuns, viver despojado, austeridade de vida, enkrateia (domínio de si) em situações limite, entre outras, eram technes utilizadas pelas diversas escolas filosóficas, cada uma de um modo diverso, para conseguir criar uma forma de vida específica. O sentido da arete (virtude) estava vinculado à consecução da excelência (arete) nas habilidades necessárias para criar em si mesmo uma forma de vida. As hexis (habilidades) requeridas pela arete só poderiam ser adquiridas através de uma askesis persistente e bem direcionada.

#pierre hadot : acerca das diferenças entre as escolas e o objetivo único comum

Apesar das divergências teórico- -metodológicas entre as escolas, todas elas pretendiam fazer da filosofia uma forma de vida cujo ideal era a liberdade. Embora também houvesse divergências sobre o sentido da liberdade entre as escolas (por exemplo, os estoicos defendiam um determinismo natural dos acontecimentos e, mesmo assim, seu escopo era conseguir a única liberdade possível: a moral), todas as formas de vida enfatizavam a importância da austeridade libertando-se de dependências desnecessárias. A austeridade propiciava o máximo de liberdade. Talvez foram os cínicos quem mais radicalmente viveram a liberdade através do desprendimento de tudo que não era estritamente necessário.

#pierre hadot, foucault e agamben : relação entre os autores

Se toda filosofia é uma filosofia do presente, a aproximação de cada autor à problemática da filosofia como forma de vida é regida por um interesse específico. No caso de Hadot, seu interesse consiste em devolver à filosofia contemporânea parte das capacidades que tinha na filosofia antiga e foram perdidas ao longo do tempo. Hadot, diferentemente de Foucault, entende que a filosofia perdeu sua capacidade de criar forma de vida quando foi assimilada pela cultura cristã, a partir do século VI, e a teologia se impôs como saber primeiro deixando à filosofia um lugar secundário.

#pierre hadot, foucault e agamben : relação entre os autores

Cabe assinalar que esta derivação teológica cristã da forma de vida filosófica foi estudada por cada um dos autores aqui mencionados. Hadot dedicou vários ensaios a este tema. Hadot sublinha, no ensaio “Os exercícios espirituais e a filosofia antiga”1, a similaridade que há entre os exercícios espirituais de Santo Inácio e aqueles desenvolvidos na Grécia antiga. Foucault também dedica várias aulas e vários momentos à rela- ção da ética do cuidado de si com o cristianismo2. Sua morte prematura lhe impediu de concluir o projeto de fazer uma genealogia das formas de subjetivação no cristianismo medieval, o que ele chegou a denominar de “pecados da carne”. Para Foucault, as práticas do cristianismo a partir do século V assumem uma parte significativa das práticas filosóficas do cuidado de si, porém essa versão do cristianismo provocou uma inversão radical no sentido das práticas e no modo de subjetivação. Se a prática do cuidado de si nas escolas filosóficas visava a constituição da autonomia do sujeito e a promoção de sua vida livre, no cristianismo medieval prevalece o objetivo da obediência e o modelo de subjetivação do súdito. Com isso, as práticas do cuidado de si se voltarão sobre a suspeita da alma para decifrar as tentações do sujeito; nessa matriz, o melhor modo de garantir a reta conduta será a estrita obediência ao superior. Agamben também pesquisou a forma-de-vida no cristianismo primitivo destacando o inédito da problemática que nas novas formas religiosas se estabeleceu entre a regra e a vida3. Inicialmente, os grupos cristãos que problematizaram a regra em relação com a vida tinham o princípio de que cada forma-de-vida tinha que criar sua regra própria. Era a regra que tinha que se submeter à vida e não o contrário, como posteriormente ocorre na atualidade na normatização biopolítica da vida cotidiana.

#filosofia como forma de vida: problematização contemporânea

As sociedades do século XXI não mais vivem uma hegemonia religiosa qualquer, elas se caracterizam por serem sociedades pós-metafísicas, contudo nelas a procura pelo sentido da vida não pode ser abolida. A filosofia dificilmente voltará a ser uma escola que requer discípulos, mas também não tem por que ficar reduzida a mera especulação teórica. No vácuo entre o saber e o viver, a filosofia contemporânea tem muito a oferecer para refletir sobre diversas possibilidades de pensar formas de vida, ethos diferentes daqueles que, por exemplo, a sociedade massificada impõe como normais. Com este objetivo, pensadores como Foucault e Agamben decidiram ampliar as pesquisas sobre as formas de subjetivação e as forma-de-vida a fim de explorar nestas práticas possibilidades outras de os sujeitos serem diferentes. A forma-de-vida refere-se ao ethos do sujeito. O ponto comum destas perspectivas filosóficas é que a subjetividade humana se constrói como resultado do ethos vivido pelos sujeitos. O ethos não é um elemento externo à vontade ou uma dimensão periférica do sujeito, a vontade e o sujeito são resultados do ethos vivido. As formas de subjetivação, formas-de-vida, são produzidas pelos modelos de ethos que os sujeitos vivem. Pensar a filosofia como forma-de-vida significa conferir à ética a dimensão de prática de vida (ethos), sem reduzi-la a normatividades, leis, ou princípios metafísicos ou naturalistas. Estes aspectos teóricos são muito relevantes para iluminar a prática ética, mas a ética não deve confundir-se com eles, pois ela é uma forma-de-vida. Este, talvez, seja um dos principais desafios da filosofia do século XXI: como possibilitar que a ética se torne uma forma-de-vida através da qual os sujeitos possam decidir seus modos de constituir-se com liberdade? Esta é a tarefa da ética entendida como ethos, a se constituir numa forma-de-vida. Se a filosofia se recusar a assumir esta “missão”, esse vácuo estará sendo ocupado, entre outros, pela mídia de massas, os folhetins de autoajuda, etc., discursos em que predomina o doutrinamento massificador e a normalização adestradora. A lógica biopolítica utiliza-se das técnicas de massificação e normalização dos sujeitos como meios para produzir formas de subjetivação fáceis de conduzir. A filosofia como foma-de-vida tem a responsabilidade de pensar e viver formas-de-vida críticas, dentro do pluralismo inerente aos modos de viver. O olhar para a filosofia antiga como forma de vida não deveria ser mera erudição, mas uma visita preocupada com alterar nosso presente.

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