FICHAMENTO: Artigo de ZINGANO, Marco. Particularismo e Universalismo na Ética Aristotélica (1996).

REFERÊNCIA

ZINGANO, Marco. Particularismo e Universalismo na Ética Aristotélica. Analytica vol. 1, número 3, 1996.

 


RESUMO

I

A ausência de uma moral dos deveres em Aristóteles foi assinalada pelos comentadores faz muito tempo; alguns até mesmo o censuraram abertamente por isso. Mais recentemente, porém, tentou-se mostrar que este era justamente o ponto forte da ética aristotélica. Se Aristóteles parece dar sua preferência antes ao homem prudente que mostra o que é preciso fazer do que ao moralista que justifica seus atos apoiando-se num conjunto previamente dado de regras práticas, a razão é que – tentou-se mostrar – ele teria fortes razões para crer que um tal conjunto de leis tem um papel secundário na decisão prática. Essas leis seriam algo como uma bula ou sumário de exercícios de percepção ética ou de apreciação moral das situações nas quais nos encontramos. Seriam, assim, indicações grosso modo, de que pode servir-se o prudente, mas que não podem tomar o lugar precisamente de sua apreciação circunstancial do que deve ser feito. Mais ainda, elas não poderiam, de qualquer modo, apreender tudo, de modo que, em certos casos, dados importantes do ponto de vista moral lhes permaneceriam exteriores, inapreensíveis pelas leis morais, embora presentes no olhar do prudente.

Haveria assim, certamente, um modo correto de agir para cada situação, mas não haveria leis que determinariam previamente o que fazer. A ética aristotélica foi assim sentida como introduzindo um ar fresco nos sistemas morais rígidos, fundados em cânones a seguir, cuja expressão máxima se encontraria na noção kantiana de dever.

No lugar de mandamentos ou de leis a serem seguidas quase religiosamente, a ética aristotélica organizar-se-ia em torno de duas teses mais flexíveis e estreitamente ligadas:

(i) a da prioridade da percepção moral em relação à regra moral e

(ii) a das circunstâncias com valor moral que não se deixariam apreender completamente por generalizações.

Estas duas teses constituem o que se pode chamar de núcleo duro da recente atribuição a Aristóteles de um ponto de vista particularista em ética. Gostaria de analisar esse núcleo duro. De um lado, essa reivindicação de particularismo apreende um ponto importante da ética aristotélica; de outro, porém, não deixa também de distorcer a lição aristotélica.

Quero fazer minha análise a partir de dois temas: primeiramente, investigarei a natureza da norma prática e seu objeto em Aristóteles; em segundo e último lugar, as condições de sua aplicação e avaliação. Estes dois pontos estão intimamente conectados e sua separação é somente um artifício de análise. Pretendo sugerir, como conclusão, que o particularismo, embora apreenda um aspecto importante da tese aristotélica, pode tornar-se muito facilmente um leito de Procusto para esse mesmo sistema.

(ZINGANO, 1996. p.75-76)

 


FICHAMENTO

I

Em I, o autor avança em uma linha de argumentação procurando encontrar as justificativas para considerar o particularismo moral na ética aristotélica:

Primeiro: São apresentadas as acepções do conceito de “necessário” de Aristóteles, que se apresentam em 3 sentidos:

(i) o necessário é dito daquilo sem o que uma outra coisa não poderia existir ou ocorrer, como a respiração e a alimentação são necessárias para o animal;
(ii) é necessário tudo o que ocorre por coação ou força, como quando alguém é forçado a fazer algo contra sua vontade; finalmente,
(iii) quando uma coisa não pode ser diferente do que é, diz-se que é necessário que seja como é.

O primeiro sentido (i) por sua vez é apresentado de 2 formas:

– o que é absolutamente necessário;

– algo é necessário em função da existência de outra coisa, sem carregar necessidade absoluta de existência, a saber: necessidade hipotética;

A necessidade hipotética é então analisada de 3 formas:

A primeira como operador quantificador: ” ‘Bom número de As são B’, ou seja, será verdadeiro se e somente se a maior parte dos As forem B. É perfeitamente aceitável que, apesar disso, alguns A não sejam B, mas é incompatível com o fato que raros A sejam B”;

a segunda como operador temporal: “seria o que, não sendo sempre, ocorre porém na maior parte das vezes; é frequentemente assim, embora possa ser, em certos momentos, não assim“;

a terceira como operador modal: “oposto ao mesmo tempo ao impossível e ao necessário

Segundo: É caracterizado o conceito de “contingente” em 2 sentidos

– Num primeiro sentido, é tudo que não tem existência contínua, no sentido em que o contingente não existe sempre – por exemplo, o homem não existe sempre

– Num segundo sentido, o contingente não é somente aquilo a que a existência pode falhar, mas o que, quando existe, pode ser ao mesmo tempo assim e não assim. O primeiro sentido responde ao critério de poder não existir ou ser o caso.

Terceiro: Zingano sugere que das 3 formas de caracterização da necessidade hipotética decorrem uma definição de 2 novos modos do ser contingente:

O contingente natural e o contingente indeterminado (ação e acaso)

O primeiro passo para esclarecê-lo consiste no reconhecimento que Aristóteles distingue dois tipos de contingente e põe as ações no segundo tipo. Nos Primeiros Analíticos I 13, após ter considerado o contingente natural (pefuk“j), aquele que é o mais das vezes assim e não não-assim, embora sempre possa ser não assim, Aristóteles nos diz que há um outro contingente, a saber, o contingente indeterminado (¢“riston), que não é mais assim do que não assim. Ele dá então dois exemplos, um evento que ocorre por acaso (um terremoto que ocorre quando saio a caminhar) e uma ação (minha caminhada). Com isso, ele põe sob uma mesma rubrica ação e acaso, opondo-os ambos ao contingente natural.

Ação e acaso são, porém, muito diferentes. Basta lembrar, por exemplo, o fato que ninguém delibera sobre o acaso para dar-se conta da distância que os separa. Por que então são postos sob a mesma insígnia? A razão é que, apesar de suas diferenças, nem um nem outro é naturalmente antes isso do que seu oposto. Tudo o que ocorre por acaso não é mais isso do que aquilo. No tocante às ações, elas também não são mais isso do que seu contrário, pelo menos não naturalmente. Uma ação é sempre tal que, se você pode fazê-la, então você tem de poder não fazê-la, de modo que, se você fez isso, então foi possível não tê-lo feito. Este ponto é sublinhado na Ethica Nicomachea:

Lá onde depende de nós agir, depende também de nós não agir, e lá onde depende de nós dizer não, depende também de nós dizer sim; por conseguinte, se agir, quando a ação é boa, depende de nós, não agir, quando é vergonhosa, dependerá também de nós, e se não agir, quando a abstenção é boa, depende de nós, agir, quando a abstenção é vergonhosa, dependerá também de nós (EN III 7 1113b7-11). 

(ZINGANO, 1996. p.81)

Quarto: Sobre das ações que podem ser deliberadas (as que não são obra do acaso), da disposição prática em deliberar e da criação do hábito:

A potência racional para a ação é sempre uma potência de contrários: toda potência acompanhada de razão é capaz dos dois efeitos (Met. Q 2 1046b5). Uma ação não pode ser por si mesma mais isso do que aquilo. Isto não somente não é incompatível com o fato que o sujeito das ações adquira uma tendência de agir assim antes do que não isso, como é também sua pressuposição. As virtudes ou os vícios são o resultado da repetição de atos num sentido antes do que num outro. Pela repetição de atos, adquire-se primeiramente uma tendência de agir assim e não não assim.

Esse estado provisório é dito uma “di£qesij”; quando o sujeito tem o hábito de agir assim a um ponto tal que é como se a outra possibilidade estivesse excluída, então ele adquiriu uma disposição prática, uma õxij, de agir assim antes do que não assim. […]. No entanto, falando propriamente, o hábito é difícil de extirpar porque, mediante repetição e exercício, ele se assemelha à natureza. Isto é uma observação sobre a psicologia dos homens. O hábito não é natural, embora possa resistir como se fosse. Do ponto de vista lógico, o fato é que o hábito só pode ser adquirido supondo a base dos contrários como suas possibilidades. Mesmo que o hábito esteja profundamente enraizado, resta que a ação, tomada singularmente, é sempre tal que, se se pode A, então se pode não-A. Este ponto é assinalado expressamente na Ethica Nicomachea:

As ações não são voluntárias do mesmo modo que nossas disposições, pois somos senhores de nossas ações do início ao fim, quando conhecemos as circunstâncias particulares; por outro lado, no tocante às disposições, elas dependem sim de nós no início, mas a sequência não é conhecida em suas particularidades, como no caso das doenças; no entanto, porque dependia de nós fazer tal ou tal uso, por esta razão nossas disposições são voluntárias (EN III 8 1114b30-15a3).

(ZINGANO, 1996. p.82)

 

Ação e acaso estão sob a mesma rubrica, mesmo se o homem, por hábito, aja antes assim do que não assim: o fato é que, para cada ação, ela não é mais assim do que não assim, o que vale também para o acaso. A mesma tese pode ser vista nas discussões sobre a determinação ou não total da natureza. Para Aristóteles, nem tudo é ou ocorre necessariamente. […] A partir do que é claramente indeterminado, Aristóteles quer mostrar que nem tudo está determinado (e isto para o conjunto dos fenômenos naturais). Esse duplo dispositivo está presente no resumo que o De Interpretatione faz do ponto:

De toda evidência, por conseguinte, não é verdade que tudo é ou ocorre necessariamente: algumas coisas são como ocorrem (tƒ mùn —p“ter’ útuce) e nem a afirmação nem a negação é mais verdadeira do que a outra; no tocante a outras, é antes assim, isto é, o mais das vezes assim, mas é sempre possível que o oposto ocorra e não assim (tƒ dù m’llon mùn kaà Êj ôpà t’ pol› q£teron, oŸ mæn ¢ll’ ôndöcetai gönesqai kaà q£teron, q£teron dù m») (De Interp. 9 19a18-21).

(ZINGANO, 1996. p.82)

Quinto: Do entendimento de que as ações morais seriam como as ações naturais:

A ação é assim caracterizada por Aristóteles como um indeterminado, assim como o acaso, opostos em bloco ao contingente natural. Se se quiser sugerir que as regras práticas são do tipo “bom número de As são B” porque as ações são naturalmente B, a consequência não pode ser senão o ceticismo: a ação é um indeterminado e, a este título, opõe-se ao Êj ôpà t’ pol⁄ tomado como naturalmente isto em detrimento daquilo. E se se disser que as normas morais são do tipo Êj ôpà t’ pol⁄ porque são frequentemente isto e não aquilo, a resposta é duplamente insatisfatória. Primeiro, porque ser frequentemente depende e se funda em ser naturalmente; segundo, porque se há um lugar onde a infrequência possa ser o caso sem por isso obnubilar o dever de ser diferentemente, este é certamente o domínio da ação moral.

A ação é de natureza tal que não é mais isso do que aquilo7. Como então introduzir o Êj ôpà t’ pol⁄ nas normas? Certamente não pode ser introduzido à base do naturalmente assim ou do frequentemente assim; por outro lado, parece claro que é uma noção de base para a ciência natural e também para a ética. Quero sugerir que a razão para introduzir o Êj ôpà t’ pol⁄ nas ações é diferente daquela para introduzi-lo no mundo natural: é Êj ôpà t’ pol⁄ não porque natural ou frequente, mas porque é racional ser assim. A razão é, no homem, natural; ele dá preferência, por sobre a indeterminação da ação, antes a isso do que àquilo, o mais das vezes a isso do que àquilo. A razão toma isso em detrimento daquilo por deliberação; ela pesa as reivindicações rivais, ordena a busca de meios em função de um fim, decide em favor disto a despeito daquilo. Com efeito, a análise da deliberação como escolha racional disto em detrimento daquilo (o ato pesar razões) permite a Aristóteles inscrever a razão como uma causa ao lado das outras causas já reconhecidas.

(ZINGANO, 1996. p.82)

Sexto: Da que se extrai que a razão é o princípio (causa) para a ação resultante de uma deliberação:

O homem, escreve ele na Ethica Eudemia, é um princípio de movimento, a saber, da ação, pois a ação é um movimento (EE II 6 1222b28-29), e o homem é princípio desse movimento porque a deliberação prática é tal que não é preciso procurar outros princípios para a ação do que os que estão em nós mesmos: mæ úcomen eÑj ¥llaj ¢rcƒj ¢nagageãn parƒ tƒj ôn „mãn, EN III 7 1113b19-218. Há um eu que decide e que determina por razões os meios para obter o fim desejado. Na Física, Aristóteles escreve:

Quem deliberou é causa, assim como o pai é causa de seu filho, e, em geral, o agente é causa do que fez, assim como o que produz o movimento é causa do que mudou (Phys. II 3 194b29-32).

Tudo isso permite-lhe inscrever a razão na lista de causas:

Com efeito, parece serem causas a natureza, a necessidade e o acaso, e, além deles, a razão e tudo o que é feito pelo homem (EN III 5 1112a31-33).

Se se volta agora ao objeto de ação, ele é certamente um contingente. Isso é verdadeiro, mas pouco satisfatório; é preciso ainda mostrar que é um contingente especial, de tipo indeterminado. Tanto quanto se possa falar de uma base metafísica da ação, é preciso reconhecer o caráter preciso da contingência em questão: a ação é algo que não é mais isso do que aquilo e que se torna isso e não aquilo por uma deliberação racional que escolhe isso em detrimento daquilo. Parece-me necessário reconhecer esse caráter preciso de contingência para poder compreender mais exatamente a doutrina aristotélica das normas práticas. Sobre a base da indeterminação natural ou frequência de seu objeto, a razão impõe, sob forma de dever, um dos termos em detrimento do outro. A norma não se deixa assim compreender nem como frequentemente isto, nem como naturalmente isto, mas como racionalmente isto. Ela decide, e decide inteiramente, a respeito de algo que não é por si mesmo mais isso do que aquilo.

(ZINGANO, 1996. p.85-86)

 

Sétimo: Diferenças entre Kant e Aristóteles:

Zingano estabelece as diferenças entre a tese Kantiana e Aristotélica. Enquanto que para o primeiro a ação moral deve ser movida independente das consequências, para Aristóteles a ato de deliberar implica justamente, conforme o autor:

A deliberação é precisamente esse processo de buscar, a partir de um fim, os meios adequados para obtê-lo, e isso inclui necessária e explicitamente uma avaliação das consequências da ação tão longe quanto possa ir a análise. A deliberação não é somente sobre meios a título de instrumentos, mas – e mesmo sobretudo – do modo como agir, e isto inclui as consequências da ação. Como pensador antigo, Aristóteles não nega o mundo das intenções, ele somente dá maior peso às conseqüências refletidas de um ato do que às supostas intenções do agente, pois não há para ele outro lugar do que o mundo dos agentes onde deva justificar suas ações.

(ZINGANO, 1996. p.90)

Nesse sentido o autor conclui que o Particularismo não encontra morada nesta tese, pois apresenta a razão enquanto princípio para a ação:

A escolha deliberada é o princípio da ação – não o princípio final, mas o princípio de onde começa o movimento -, o princípio da escolha deliberada sendo o desejo e a representação de um fim (EN VI 2 1139a31-33)

(ZINGANO, 1996. p.91)

Como resultado, a tese aristotélica da razão como princípio para deliberação da ação exclui, assim, a ideia de particularismo moral.

O particularismo não é assim favorecido pela tese da indeterminação da ação. Ao contrário, pode mesmo ser muito desfavorecido. Se a razão impõe a ordem lá onde reinava a indeterminação e se o domínio da razão é o domínio do necessário, o particularismo não parece encontrar aqui guarida privilegiada.

(ZINGANO, 1996. p.91)

II

Nesta segunda parte do texto o autor investiga uma nova tese para justificar o particularismo moral em Aristóteles.

Dentro da deliberação da ação, as CIRCUNSTÂNCIAS são indefinidas.

Primeiro: Sobre Particularismo moral e indeterminação  (inexatidão) das circunstâncias na ética:

O particularismo não é assim favorecido pela tese da indeterminação da ação. Ao contrário, pode mesmo ser muito desfavorecido. Se a razão impõe a ordem lá onde reinava a indeterminação e se o domínio da razão é o domínio do necessário, o particularismo não parece encontrar aqui guarida privilegiada. Aristóteles tem, porém, uma segunda tese, graças à qual o particularismo poderá reivindicar sua parte. Para poder aplicar o que a lei ordena, é preciso levar em consideração as circunstâncias no meio das quais nós agimos. De um lado, a norma para a ação obriga a que todos dêem sua adesão; de outro lado, a ação põe em ordem as circunstâncias no interior das quais ela ocorre. Essas circunstâncias são particulares, indefinidas: elas são para a ação o que o acidente é para o ser. A tese aristotélica a respeito das circunstâncias no interior das quais ocorre a ação garante ao particularismo sua reivindicação. A ação é, tomada nela mesma, indeterminada, é um ¢“riston; as circunstâncias nas quais ocorre são indefinidas, e por causa desse caráter ¢di“riston a aplicação da regra é feita segundo o que propõe o particularismo.

Aristóteles escreve que as circunstâncias mais importantes são o que faz o agente e o fim esperado (cf. EN III 3 1111a18-19). Tomando por A o que faz, pode-se formular assim a estrutura de base do juízo em questão: “A é B nas circunstâncias C em vista do fim F”, em que B é um qualificativo moral do tipo “bom”, “mau” etc. No primeiro livro da Ethica Nicomachea, Aristóteles criticou duramente Platão porque este filósofo teria ignorado, em suas análises da noção de bem, que as proposições morais incluem sempre a referência a quem algo é bom. Esta referência não pode ser ignorada porque ela é uma marca de superfí- cie de um comportamento lógico particular do juízo moral. Isto é claramente exposto no De Anima:

O que não inclui ação, i.e. o verdadeiro e o falso, está no mesmo domínio que o bom e o mau; no entanto, diferem em que um é absoluto, o outro é relativo a alguém (De Anima III 7 431b10-12).

(ZINGANO, 1996. p.91-92)

Segundo: “A é B nas circunstâncias C em vista do fim F para todo P”, os limites (extremos) da ética e as circunstâncias entre os extremos

Se introduzirmos esse resultado na estrutura das proposições práticas, então teremos algo como: “A é B nas circunstâncias C em vista do fim F para todo P”, em que P figura pela condição necessária de apreensão do bem a título de toda pessoa para quem algo aparece como bom.

Pode-se então encontrar um lugar preciso para a quantificação no seio mesmo da proposição prática segundo essa estrutura. Algo pode ser bom para os atenienses, mas não para os tebanos; ou mesmo não ser bom para todo ateniense, mas somente para os habitantes do Cerâmico. Dado o domínio, a todo membro desse domínio A é visto como obrigatório. E, quanto ao domínio, pode-se abandonar os limites aristotélicos da pólis e dar lugar ao cosmopolitismo estóico, ou ainda ao ser racional da modernidade: A pode ser B nas circunstâncias C em vista do fim F para todo ser racional. Esta é a tese aristotélica: alargar o domínio não a destrói; porém, amputar uma de suas partes ou alterar suas relações certamente a desfigura. Nela, o fato é que o objeto de dever permanece único; nas circunstâncias C, ele é exatamente o que se deve fazer. E sua natureza é única porque:

O erro é multiforme (pois o mal provém do ilimitado, como os pitagóricos conjecturaram, e o bem, do limitado), enquanto só se pode ter sucesso de um modo: por estas razões também o primeiro é fácil, o outro difícil (EN II 5 1106b28-33).

Creio que se pode ver aqui o núcleo filosófico da tão vilipendiada doutrina do justo meio. Segundo tal doutrina, a virtude é um justo meio primeiramente para nós (e não matemático ou absoluto); segundo, ser um justo meio significa encontrar-se em algum lugar entre dois extremos a evitar. O que é preciso fazer é o melhor em função das circunstâncias no interior das quais a ação ocorre:

Sentir as emoções no momento oportuno, em relação ao que se deve, em vista de quem se deve, pelo fim bom e do modo como se deve, eis o que é ao mesmo tempo o justo meio e o melhor, o que precisamente é a virtude. (EN II 5 1106b21-24)

(ZINGANO, 1996. p.94)

Mas as ações podem ser também indefinidas no sentido em que o que a norma determina tem de ser julgado em função das circunstâncias no interior das quais se produz a ação, de modo que, por trás da regra, há ainda a necessária habilidade de apreender a situação em sua singularidade, o que é distinto de aplicar ao caso dado uma série de regras previamente estabelecidas. A é B nestas circunstâncias; em outras circunstâncias, será preciso apreender a situação para saber o que se deve precisamente fazer. Para que bom número de As sejam B, os As sendo tomados em sua particularidade, é preciso que uma cláusula ceteris paribus se aplique.

Terceiro: Doutrina Aristotélica da lei legal

O mesmo ponto pode ser visto na doutrina aristotélica da lei legal. As leis têm frequentemente a forma “bom número de As são B”. Para explicar esta forma, Aristóteles mostra que essas leis são o produto ao mesmo tempo da prudência e da inteligência do legislador:

A lei dispõe de um poder de coação, sendo uma regra que emana de uma certa prudência e inteligência (EN X 10 1180a21-22).

O legislador tem de falar em geral, mas pode ser o caso que as circunstâncias a serem consideradas escapem a toda generalização. É preciso assim reconhecer que a lei fracassa na medida mesma em que se formula em termos universais.

A lei não fracassa porque é uma generalização no lugar de uma estrita universalização; ela fracassa lá onde ela alcança sucesso, pois tem de visar ao universal ou ao geral quando a matéria sobre a qual versa permanece o mais profundamente singular. Esta parece ser a razão por que a equidade, sendo igual à justiça, é superior a um tipo de justiça, a saber, superior à justiça legal: porque cabe ao homem équo recuperar o caráter particular e único inevitavelmente perdido na formulação generalizante da lei, quando, sem esse caráter, a injustiça pode engendrar-se sob o império da lei. Aristóteles ilustra seu pensamento com o prumo de Lesbos: feito de chumbo, ele se adapta aos contornos da pedra, às rugosidades das circunstâncias.

Isto parece ser, portanto, uma defesa do particularismo: se o caráter indefinido das circunstâncias acrescenta-se à natureza indeterminada da ação, então o particularismo na ética parece impor-se como a boa resposta. E, de fato, impõe-se, sob a condição de acrescentar: mas não em toda a ética. Aristóteles diz que, para certos casos, enquanto a legislação visa ao geral ou universal, o objeto permanece rente ao singular, o que faz com que a lei fracasse lá mesmo onde tem sucesso.

Quarto: Doutrina Aristotélica da lei legal x Particularismo Moral

Mas Aristóteles não diz que isto é sempre o caso. É uma tese aristotélica a da natureza indefinida do valor moral das circunstâncias. A consequência é que, para as ações deste tipo, as generalizações são secundárias, parasitárias, funcionando como resumo das considerações que o prudente faz. Um sinal disso é que Aristóteles desenvolveu longamente a descrição das virtudes particulares pondo em relevo essa função do homem prudente em apreender o que é preciso fazer em função das circunstâncias no meio das quais a ação ocorre, e isto em detrimento de um conjunto de regras previamente estabelecidas que se deveria simplesmente aplicar aos casos particulares. Ainda, Aristóteles escreve que, já que o homem prudente julga corretamente o que aparece de modo tão diferente a outros homens, talvez ele se distinga dos outros pelo fato de ver a verdade dos fatos “como se fosse sua norma e medida” (EN III 6 1113a33: Øsper kanºn kaà mötron aŸtÓn Œn). Ele é nosso único critério para saber o que se deve fazer; ora, uma tal tese põe em muita relevância a habilidade que tem o prudente de apreender a situação em seu caráter moral único em função das circunstâncias de valor moral indefinido, o que é uma defesa forte do particularismo na ética.

Quando a situação é indefinida, assim é também a regra, mas isso não implica que tudo seja indefinido. No livro IX da Ethica Nicomachea, Aristóteles procura uma resposta às questões do tipo se se deve obedecer ao pai ou, como em casos de doença, seguir o conselho do médico, ou se se deve ajudar antes um amigo do que outra pessoa, ou se se deve mostrar gratidão de preferência a um amigo em detrimento de um benfeitor em relação a quem se tem uma dívida. A resposta é:

Todas estas questões são difíceis de responder com precisão, pois comportam um grande número de distinções de todos os tipos, segundo a importância maior ou menor do serviço feito e a nobreza ou a necessidade de agir. Mas que não estamos obrigados a conceder tudo à mesma pessoa, eis um ponto fora de dúvida. De outro lado, devemos, no mais das vezes (Êj ôpà t’ pol⁄), devolver as vantagens que recebemos antes de fazer favores aos amigos, assim como temos a obrigação de reembolsar um empréstimo a um credor antes de dar dinheiro a um camarada (EN IX 1164b27-33).

Toda lei é universal, mas sobre certas coisas não é possível pôr um enunciado universal com retidão (EN V 14 1137b13-14; grifo meu).

(ZINGANO, 1996. p.95-97)

 

É preciso observar que Aristóteles limita o particularismo a certas ações. O homem équo não está acima de qualquer lei, ele não pode corrigir toda lei. A Retórica apresenta a equidade como um tipo de correção dos erros das leis escritas. Se um enunciado preciso é impossível, mas se a legislação é necessária, a lei é enunciada em termos gerais, o que supõe uma correção para certos casos que ficaram de fora. O homem équo deverá corrigi-la, mas não corrige toda lei; o que Aristóteles chama de lei universal na Retórica está fora de sua alçada. A equidade não se aplica em todos os casos, mas nos casos onde o perdão é possível; a equidade nos torna toleráveis à fraqueza humana, ele nos faz lembrar antes dos benefícios do que das perdas etc. O particularismo pode mesmo estar em muitos lugares, mas não está em todos.

Quinto: Equidade e os limites do particularismo

Esta passagem da Retórica nos leva a um segundo caso em que o particularismo não é o caso. Certas regras práticas têm bem a forma “bom número de As são B”. E, o que é mais notável, a ética não somente contém de pleno direito generalizações, como possui também universalizações estritas do tipo “todo A é B”. Havia observado que o núcleo filosófico da doutrina do justo meio consiste em tomar as virtudes como estando em algum lugar entre dois extremos, este lugar sendo determinado em função das circunstâncias. As considerações sobre as circunstâncias dão um lugar privilegiado para o particularismo. Ora, se se volta agora aos extremos, vê-se que nenhuma consideração sobre as circunstâncias é feita a seu respeito. Aristóteles sublinha este ponto:

É absurdo supor que cometer uma ação injusta ou covarde ou desregrada comporta uma mediedade, um excesso e uma falta, pois haveria assim uma mediedade do excesso e da falta, um excesso do excesso e uma falta da falta. Mas (…) para as ações de que falamos, não há nem mediedade, nem excesso, nem falta, mas, qualquer que seja o modo como as realizemos, constituem faltas, pois, de um modo geral, não existe nem mediedade do excesso ou da falta, nem excesso e falta da mediedade (EN II 6 1107a18-27).

Os extremos estão sob interdição – e isto absolutamente. Não se deve ser covarde, ou não se deve ser temerário, e isto de modo absoluto: não há uma ocasião propícia para a covardia ou temeridade. Nenhuma consideração sobre as circunstâncias vem perturbar este regime estrito de interdição. As interdições – absolutas, sem apelo – são a outra face do particularismo e encontram na mesma doutrina suas razões de ser. Para o aristotelismo, não somente o particularismo sobre o modo apropriado de agir segundo as circunstâncias não é incompatível com regras estritas de ação, como ainda as interdições absolutas a respeito dos extremos são uma consequência necessária do relativismo do meio termo. Embora negativas, elas são sem apelo: nenhum A é B, e isto de modo absoluto.

Sexto: As leis práticas como prescrições (onde pesam as circunstâncias) e os extremos como interdições morais (onde não pesam as circunstâncias)

Leis práticas do tipo “jamais fazer A” podem corretamente ser enunciadas como prescrições, mais precisamente como interdições morais. Elas dizem respeito aos extremos, sobre os quais não há nenhuma consideração sobre as circunstâncias, nada há de ¢di“riston. Estas interdições têm um papel importante nos sistemas morais; embora não digam o que deve ser feito, delimitam o espaço do fazer estabelecendo os limites entre os quais o justo meio deve ser encontrado. Mas elas também não são as únicas sentenças absolutas. Certas ações não admitem justo meio. Com efeito, certas ações implicam por seu próprio nome o caráter perverso dos atos. Exemplos são a impudência, a inveja, o roubo, o assassinato:

Estas afecções e estas ações, e as outras de mesmo gênero, são todas, com efeito, censuráveis porque são perversas em si mesmas, e não é somente seu excesso ou falta que é condenado. Não é, por conseguinte, jamais possível pôr-se na direita via quanto a elas, mas constituem sempre faltas (EN II 6 1107a12-14).

Seu próprio nome implica a perversidade; eles se fundam em juízos analíticos do tipo “todo assassinato é perverso”. A respeito delas, todo ato é censurável, ústin perà aŸtƒ ¡mart£nein (EN II 6 1107a15). Uma vez mais encontramos a forma universal, sem exceção. Aristóteles dá como exemplo o adultério: não se pode dizer que se cometeu o adultério com a mulher que convinha, ou no momento adequado, mas o simples fato de cometê-lo é censurável. O ponto é que é assim analiticamente: se não se compreende por que assassinar é errado, então provavelmente não se compreendeu o que é assassinar. Compreender o que é assassinar implica compreender que é sempre censurável.

Sétimo: O particularismo no sistema ético Aristotético

O particularismo tem assim seu lugar no sistema aristotélico na medida em que ao caráter indeterminado das ações acrescenta-se a indefinição das circunstâncias com valor moral. A indeterminação é de regra para toda e qualquer ação; mas a indefinição das circunstâncias não é sempre o caso. Às vezes um generalismo se impõe, às vezes um estrito universalismo. Se se estender o particularismo para toda ação, ele se torna rapidamente um leito de Procusto para o sistema aristotélico. Por outro lado, por trás da indefinição das circunstâncias há o fenômeno generalizado de indeterminação da ação. Todo dever é imposto pela razão sobre uma natureza indeterminada da ação.

(ZINGANO, 1996. p.98-100)