FICHAMENTO: Artigo de Hobuss, João. Epieikeia e o Particularismo na Ética de Aristóteles (2010).

REFERÊNCIA

HOBUSS, João. Epieikeia e Particularismo na Ética de Aristóteles. Ethic@, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 163 – 174, Dez. 2010.

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RESUMO

Este texto buscará demonstrar o caráter fundamental desempenhado pelas circunstâncias da ação ou das particularidades do caso na ética aristotélica, especialmente quando Aristóteles analisa a concepção de epieikeia (equidade). Na discussão da epieikeia, é ressaltada a relação das particularidades e das regras gerais, deixando antever a prioridade da primeira em função da opacidade das últimas. Isto não significa afirmar um particularismo estrito, pois as regras ou princípios gerais ainda têm um papel a desempenhar, ainda que não seja um papel determinante. (HOBUSS, 2010).

Palavras-chave: epieikeia, particularismo estrito, regras, particularismo moderado.


SUMÁRIO

I

II

III


FICHAMENTO

I

As circunstâncias são inelimináveis no que concerne à ação do agente moral, do prudente (phronimos), que deve observá-las para bem realizar a referida ação. Exatamente por isto, o prudente […] possui como característica essencial o fato de possuir a experiência (empeiria) e a percepção (aisthêsis) moral das circunstâncias relevantes. (HOBUSS, 2010. p. 1)

 

A mesma estrutura se dá quando Aristóteles analisa a noção de equidade e equânime no livro V da Ethica Nicomachea. O equânime é o que corrige a lei em função da generalidade da mesma, generalidade que a impede de dar conta dos casos particulares. Isto não ocorre por falha da lei ou do legislador, mas pela natureza mesma da esfera prática, marcada pela irregularidade, o que faz com que a lei tenha de se limitar ao que ocorre o ‘mais das vezes’ (hôs epi to polu).

 

Logo, parece haver uma identidade de abordagem entre o âmbito moral e o âmbito propriamente jurídico: de um lado, a generalidade expressa na premissa ‘o mais das vezes’, de outro, o apelo às circunstâncias da ação e às particularidades do caso.

(HOBUSS, 2010. p. 1-2)

 

Este texto defenderá, grosso modo, a plausibilidade da existência de regras ou princípios gerais em Aristóteles, mas entendendo-os como destituídas de conteúdo forte, sem terem a possibilidade de servirem de guias suficientes para a ação. O conteúdo da ação somente poderia ser adquirido quando levamos em conta as circunstâncias, ou particularidades, da ação. Isto não significa advogar um particularismo estrito, pois tal concepção não descura do geral, embora dê mais peso às particularidades do caso. Neste sentido, a investigação buscará sustentar a tese de um particularismo mitigado, dada a importância das circunstâncias no âmbito moral e no âmbito jurídico, aqui caracterizado pelo papel exercido pela epieikeia.

(HOBUSS, 2010. p. 2)

 

II

Deste modo, quando uma lei não prevê os casos particulares que podem ocorrer em dadas circunstâncias, em função da não previsão dos mesmos pelo legislador, é necessário que haja uma correção da lei, levando em consideração, é importante ressaltar, o que o próprio legislador teria dito quando confrontado a este caso particular, ou o que teria prescrito na lei se tivesse conhecido o que está em questão5. Cabe, então, ao equânime corrigir a lei em função de sua deficiência, deficiência causada por sua generalidade (eparnothôma nomou hêielleipei dia to katholou)6. Conforme Aristóteles, nem tudo pode ser determinado pela lei, já que em determinadas matérias, sobretudo nas de ordem prática, a lei é ineficaz, sendo necessária a consecução de um decreto (hôste psêphismatos dei).

 

Portanto, a esfera prática, eivada de contingência, parece não poder ficar dependente da lei, na medida em que esta é, por definição, como mencionado, deficiente devido à sua generalidade. A conclusão desta argumentação, portanto, não surpreende, especialmente quando Aristóteles alude à régua de Lesbos: “Do que é, com efeito, indeterminado, a medida é indeterminada, como a régua de chumbo típica do modo de construir utilizada em Lesbos: de fato, tal régua se adapta à forma da pedra, e não é rígida, assim como um decreto se adapta aos fatos”

(HOBUSS, 2010. p. 3)

 

III

Epieikeia e o particularismo em Aristóteles:

Ora, como foi afirmado, é sensato sustentar, em um primeiro momento, que Aristóteles não advoga um particularismo fundamentalista, exacerbado, que ignora qualquer regra ou princípio geral, mesmo que este não seja capaz de servir imediatamente de guia para a ação. Esta seria, talvez, a lição retirada da argumentação aristotélica sobre a epieikeia, onde aparece a relação particular x geral, e que é consistente com outras passagens da ética de Aristóteles.

(HOBUSS, 2010. p. 3)

Leitura particularista da Ética de Aristóteles de David Wiggins:

“Suponha – com Aristóteles e o senso comum – que o assunto próprio ao âmbito prático é, devido à sua própria natureza, indefinido e imprevisível.” Deste modo, para Wiggins, nenhum agente pode antecipar as circunstâncias nas quais deverá agir, nem tem consciência de que modo lidará com determinados compromissos conflitantes ente si, ou mesmo se persistirá em dado compromisso. Logo, não há uma única regra a seguir, não há uma única norma à qual se apegar para saber como se deve agir nas situações que se apresentam. O mundo real se apresenta de outro modo. Por isto, afirma Wiggins, “será útil transcrever aqui, para o uso do incomensurabilista, a concepção de Aristóteles de prático, como subsiste no mundo real”

(HOBUSS, 2010. p. 3)

Concepção de “prático” de Aristóteles:

Sobre algumas coisas não é possível fazer uma proposição geral o qual deve ser correta. Nestes casos, então, nos quais é necessário falar geralmente, mas em que não é possível fazê-lo corretamente, a lei leva em consideração os casos usuais, embora não ignorando a possibilidade de erro. E não é errado fazer deste modo: pois a falha não está na lei nem no legislador, mas na natureza da coisa, já que a matéria das coisas concernentes à ordem prática é assim desde o princípio (…) Sobre algumas coisas é impossível formular uma lei, assim como um decreto particular é necessário. Pois quando a coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada nas construções de Lesbos: a régua se adapta aos contornos da pedra, e não é rígida. Assim também um decreto se adapta aos fatos particulares. (EN 1137b 14-19, 28-32)

 

É verdade que a argumentação de Wiggins tem por base a epieikeia, mas está pressuposto de modo claro que isto se aplica à filosofia prática aristotélica como um todo12. Neste ponto ele não está absolutamente só. Vejamos o caso de Charles Taylor:

(…) não poderíamos colocar uma condição suficiente para isto ser a razão correta neste caso, a qual teria de ser aplicada mecanicamente, isto é, sem deliberação e pensamento adicional, para outros casos onde esta descrição se aplica. Ou colocando diferentemente, qualquer condição suficiente teria de ser num nível de generalidade onde isto fosse absolutamente inútil (e.g., que a ação fosse “a coisa correta a fazer). Isto é assim em função do contexto da ação, dos tipos de bens em jogo em dado caso, e o peso particular de cada tipo neste caso preciso é infinitamente variável. Qualquer regra geral, derivada de um conjunto de casos, terá de ser considerada novamente e finalmente adaptada em outras situações. (TAYLOR, “Leading a life”, p. 178-179)

 

Particularismo Estrito da Ética de Aristóteles em  Wiggins e Taylor:

A inutilidade da regra, para estes autores, é aplastante. Em todo e qualquer novo caso o agente moral deverá se adaptar e responder às vicissitudes de tal caso, pois não podemos conhecer o que devemos fazer até que nos defrontemos com os fatos em relação aos quais deveremos deliberar e agir. É impossível que o agente moral aja tendo como base generalizações estritas14, pois estas são impossíveis, pois invariáveis. Tudo está fundamentado nos casos particulares, devendo ser recusada toda e qualquer regra caracterizada por sua abstração. Desta maneira, não podemos lançar mão de princípios morais gerais que abarquem todos os casos que apresentem determinada similaridade, em função da indeterminação das circunstâncias que regerão a ação.

(HOBUSS, 2010. p. 4)

 

O problema é que este particularismo estrito, que recusa a regra, a norma, ou, em outras palavras, toda generalização, parece desconhecer que, por mais frágeis – se aceitarmos esta fragilidade – que sejam as generalizações, estas ainda têm um papel a desempenhar na ética aristotélica, como foi salientado anteriormente.

(HOBUSS, 2010. p. 4)

Evidência de Particularismo em Aristóteles segundo Christoph Horn:

Horn aponta para duas afirmações de Aristóteles que parecem ir de encontro à tese particularista17:

(i) “Primeiramente, Aristóteles explicitamente limita a insuficiência da tese; ele afirma que o problema causado por leis super generalizadas é problema de “alguns casos” (Peri enion, 1137b 14), não de todos”;

(ii) “Em segundo lugar, embora tenhamos dito que a falha da lei escrita é principal, contudo isto não é de significância universal, pois existem casos em que a lei pode ser formulada com sucesso: “os casosmodelo” ou “o mais das vezes” (hôs epi to pleon, 1137b 15-16)”.

Segundo Horn, os dois itens indicam que as regras podem realmente providenciar algo que sirva para guiar a conduta do agente18, o que não pressuporia o particularismo estrito mencionado anteriormente.

Logo, se as regras não estão descartadas do universo argumentativo de Aristóteles, a epieikeia, de algum modo, serviria, ela mesma, como um argumento para desconstruir a tese particularista extrema, na medida em que pode ser analisada como “uma capacidade a qual não substitui, mas em vez disto expande decretos gerais incluindo os casos não padrão, os quais o legislador não tinha em mente quando formulou a regra”19. Isto afastaria o viés particularista e viabilizaria a epieikeia como uma noção que estaria além da simples correção particular originada da generalidade da lei20, que acaba por engendrar sua falha.

(HOBUSS, 2010. p. 5)

 

Argumentação contra o que pode ser entendido como um “particularismo estrito” em Christoph Horn:

Desta maneira, há, em Horn, uma argumentação contra o que pode ser entendido como um “particularismo estrito”, já que haveria, na ética aristotélica, um número considerável de passagens22 que indicam o estabelecimento, por parte de Aristóteles, de regras generalizantes, que seriam válidas sem qualificação23, tais como: “o princípio de que tudo é necessariamente orientado para a felicidade como seu objetivo final, ou o conselho que a virtude sempre consiste em encontrar o meio correto entre o excesso e a deficiência”24, bem como “os elementos universalistas, baseados em regras como os princípios aritméticos e geométricos de determinação da justiça”, ou o princípio encontrado tanto na EN e na Política que sustenta: “mesmos modelos para os mesmos casos, diferentes modelos para diferentes casos”.

Este tipo de raciocínio pode ser encontrado, conforme Horn, se analisarmos de que modo opera a fórmula hôs epi to polu (“válido para a maioria dos casos” na tradução de Horn), que descreveria não o que é mais frequente, mas sim o caso normal, isto é, aquilo que é normalmente válido.
[…]

Deste modo, parece inconsistente o apego dos particularistas aos casos, negando a existência de regras ou princípios gerais. Por conseguinte, a teste particularista, hostil a estes tipos de princípios abstratos, teria muitas dificuldades em se sustentar, especialmente se fossem observadas determinadas passagens do corpus de Aristóteles sobre a epieikeia, os quais indicariam claramente o viés generalista/universalista, especialmente, e Horn socorre-se principalmente delas para assegurar sua tese, os da Retórica I 13 e I 15 (conjuntamente com a Ethica Nicomachea V 10)

(HOBUSS, 2010. p. 6)

 

O que interessa, no momento, é explicitar a discussão entre os defensores do particularismo e os da convivência regras/princípios e casos particulares, indicando, tão somente, uma possível solução que difere, sutilmente, da de Horn, a quem tomamos aqui como o representante desta última corrente. Tal solução consistiria em inverter a concepção deste, centrando o interesse no particular, sem descurar das regras gerais, o que não permitiria reduzir o particularismo a sua vertente estrita, que ignora radicalmente as regras gerais.

[…]

O que nos dizem as regras ou os princípios sobre como atingir a felicidade, a mediedade ou a justiça? Nada, efetivamente, porque são as particularidades do caso que determinarão, na ação, o que fazer. Isto não descarta de todo nem as regras nem os princípios, mas lhes dá uma posição secundária na sua relação com o particular, com as circunstâncias nas quais o agente moral estará inserido.

[…]

A experiência e a percepção desempenham um papel fundamental na consecução da ação moral, pois permitem ao prudente discernir, entre os particulares (a prudência concerne aos particulares, já que é da ordem da ação: 1141b 14-16, 1142a 23-24), os que possuem relevância moral. Assim, a inversão se realiza, reconhecendo o papel das regras e dos princípios, mas lembrando que as particularidades são o caso. A inversão se dá na ordem da prioridade, que recai antes no particular do que no geral, mas não eliminando nenhuma das instâncias, pois ambas são absolutamente necessárias, o que não parece passível de discussão.

(HOBUSS, 2010. p. 7-8)

 

Esta imbricação do particular e do geral, das regras/princípios, que perpassa a ética aristotélica, pode ser observada na estrutura da proposição prática, na sua análise do justo natural na EN V 14, na doutrina da mesotês etc. Há o reconhecimento da inadequação da regra no sentido de guiar de modo determinante a ação, seja no âmbito jurídico, aqui representado pelo equânime, seja no âmbito moral, representado pelo prudente. Em ambas as esferas, o preponderante são as circunstâncias da ação e as particularidades do caso. Para tal, podemos lembrar a seguinte passagem da EN:

Sobre isto, porém, devemos estar previamente de acordo: todo discurso de questões práticas tem de ser expresso em linhas gerais e de modo não exato, como dissemos igualmente no início que os discursos devem ser exigidos conforme à matéria; o que está envolvido nas ações e nas coisas proveitosas nada têm de fixo, assim como tampouco no que concerne à saúde. O discurso geral sendo deste tipo, ainda menos exatidão tem o discurso sobre os atos particulares, pois não cai sob nenhuma técnica ou preceito, mas os próprios agentes sempre devem investigar em função do momento, assim como ocorre na medicina e na arte de navegar. (EN)

(HOBUSS, 2010. p. 8)

Conclusão:

Com base no que foi desenvolvido neste texto, não há lugar na Ethica Nicomachea, especialmente no que concerne à equidade, para a defesa de um particularismo estrito, que renegue absolutamente o papel de regras gerais, pois inúmeras passagens da ética aristotélica comprovam a relação indissociável existente entre as regras, normas ou princípios gerais, e as particularidades da ação, na esfera propriamente moral, ou do caso, não âmbito especificamente jurídico, que é o que nos interessa quando tratamos da epieikeia.

Do mesmo modo que não podemos abandonar as regras gerais na argumentação de Aristóteles, mesmo limitando o seu alcance, parece bem razoável supor, a partir das evidências textuais, que a inversão supracitada parece mais capaz de dar conta do que Aristóteles sustenta, ou seja, que é nas circunstâncias da ação ou nas particularidades do caso que o phronimos ou o epieikes encontram sua raison d’être38. Se assim não fosse, não haveria motivo para Aristóteles salientar, quanto ao método, que a inextidão é o que perpassa a ordem prática, nem ressaltar o peso da percepção e da experiência, ligadas que estão à relevância do particular.

Por tal razão, podemos utilizar uma passagem de David Wiggins a nosso favor, nos nossos termos, mas rejeitando sua tese particularista estrita:

Generalizando o ponto para além do Livro V [da EN], deixem-nos afirmar que nós vivemos com a variabilidade e a indefinição da ordem dos assuntos práticos ao entrar no espírito de um certo modo de agir e ser incompletamente articulável, mas contextualmente especificável, que adquirimos de algum modo (…) através de um familiar, mas no geral não documentado, processo de ethismos.

(HOBUSS, 2010. p. 9)

 

 


REFERÊNCIAS

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