FICHAMENTO: Artigo de Ribeiro, Hyppolyto. Epistemologia Moral Particularista em Aristóteles e Dancy. (2018)

REFERÊNCIA

RIBEIRO, H. R. S.. Epistemologia Moral Particularista em Aristóteles e Dancy. CONTROVÉRSIA (UNISINOS), v. 14, p. 2, 2018.


RESUMO

Investigo o particularismo moral na teoria das razões contribuintes de Dancy. Apresento o particularismo como basicamente uma teoria de epistemologia moral acerca da função das razões práticas na deliberação, delineando os aspectos fundamentais da influência do particularismo epistemológico e ético aristotélico na filosofia moral de Dancy. (RIBEIRO, 2018).

Palavras-chave:
Particularismo; Ética; Epistemologia Moral; Razões Práticas; Deliberação.


SUMÁRIO

1. Particularismo em Dancy

2. Aspectos conceituais do particularismo epistemológico aristotélico em Dancy

3. Considerações Finais

 


FICHAMENTO

1. Particularismo em Dancy

O particularismo contemporâneo, em que pese suas diversas nuances, constitui basicamente uma teoria de epistemologia moral acerca da natureza contingente do conhecimento prático e da própria ética, concebida como ciência eminentemente prática. Seu postulado básico consiste na crença de que problemas e juízos práticos são epistemologicamente complexos, não sendo redutíveis a um conjunto de princípios ou normas universais e necessárias. Nessa perspectiva, as circunstâncias objetivas (contexto empírico) e subjetivas (condições pessoais do agente) do caso, acrescidas ao contexto social e cultural particular da ação, constituem os objetos fundamentais da investigação ética.

(RIBEIRO, 2018. p.1)

Ribeiro apresenta a argumentação de alguns filósofos acerca do particularismo moral:

Garfield (2003, p. 195), em Particularity and Principle: The Structure of Moral Knowledge: ressalta a função da experiência prática no conhecimento moral;

Bakhurst, em Ethical Particularism in Context: propõe uma aproximação entre o particularismo de Dancy e o contextualismo de Macintyre, enfatizando que a natureza histórica do conhecimento moral e a complexidade epistemológica da realidade moral não pode ser adequadamente capturada por “princípios”.

Bakhurst (2003, p. 164) delineia o holismo e o particularismo de Dancy:
Dancy é um pluralista e holista acerca da relevância moral; isto é, ele argumenta que há uma irredutível pluralidade das características potencialmente relevantes para a compreensão moral das ações e para a constituição de razões morais, e o fato de que tais propriedades são relevantes em alguns casos, e como elas funcionam, são determinados holisticamente pela interação entre as várias características do caso. O que é significativo em um caso – talvez tão significativo para constituir uma razão suficiente para agir – pode em outros casos ser irrelevante.

Crisp, em Particularizing Particularism, reconhece a inspiração aristotélica na teoria particularista de MacDowell desenvolvida em Virtue and Reason, situando sua origem filosófica na tese da impossibilidade da codificação moral. MacDowell sustenta que o raciocínio prático não é redutível a princípios universais.

Crisp (2003, p. 27) ressalta a influência decisiva de Aristóteles no particularismo moral ao tratar do problema da universalização na ética, remetendo a teoria epistemológica que reivindica a natureza retrospectiva ou indutiva dos princípios morais:

Aqui, como temos visto, Aristóteles ao invés de Wittgenstein é a influência […] Qualquer sistema de normas pode apenas ser baseado unicamente na experiência passada, e a complexidade e imprevisibilidade dos assuntos humanos são tais que surgirão circunstâncias nas quais as normas serão inapropriadas para determinar o que devemos fazer. O agente virtuoso necessitará não apenas ser capaz de determinar o que fazer em cada ocasião conforme ela se apresenta, mas também ser sensível a uma ‘lista de virtudes em evolução e situacionalmente relativa.

Dancy, em Ethics Without Principles, desenvolve sua concepção particularista da moralidade sustentando que princípios ou normas morais seriam pouco relevantes, ou mesmo inúteis, no processo epistêmico das deliberações práticas, sugerindo que juízos morais particulares operam satisfatoriamente sem a necessidade do recurso a generalizações. Reivindicando a inexistência de qualquer vínculo epistemológico necessário entre a condição de agente plenamente ético e a adoção de princípios ou normas morais nas deliberações práticas. Dancy (2004, p. 1) refuta a acusação recorrente de ceticismo moral, sustentando que a recusa de uma função predominante para os princípios e normas gerais na ética não significa necessariamente uma atitude moral cética, mas importa, ao contrário, numa defesa da moralidade mediante o esclarecimento filosófico de sua natureza epistemológica fundamental: “Particularistas […] pensam que a moralidade está em perfeita forma e funcionando bastante satisfatoriamente, e que o abandono do vínculo equivocado entre moralidade e princípios nada mais é que uma defesa da moralidade ao invés de um ataque contra ela”

(RIBEIRO, 2018. p.2)

 

Dancy (2004, p. 3) desenvolve uma crítica filosófica contra as estratégias tradicionais de justificação epistêmica da ética, opondo-se especialmente à teoria da subsunção, tese eminentemente universalista:

Começo com uma opção que acredito estar largamente desacreditada. Podemos denominála de opção subsuntiva. A qual entende o raciocínio e o julgamento moral como a subsunção do caso particular sob algum princípio universal. A ideia é que, se estamos realizando apropriadamente nosso raciocínio moral, cotejamos um novo caso com um conjunto de princípios, e verificamos sob qual desses princípios o caso recai.

Dancy rejeita a tese subsuntiva elementar reivindicando que princípios morais possam ser aplicados dedutivamente, imediata e automaticamente, aos casos particulares concretos, sugerindo que o raciocínio moral apropriado exige um processo de deliberação particular caso a caso, mediante o qual são sopesadas as razões que favorecem este ou aquele curso de ação conforme o contexto holístico de cada caso prático. Nesse sentido, o equívoco epistemológico essencial da teoria da subsunção residiria na concepção de que em qualquer problema prático sempre haveria um único princípio moral a ser corretamente aplicado, ou que, no caso de existirem vários princípios aplicáveis, todos indicariam uniformemente a realização da mesma ação.

(RIBEIRO, 2018. p.4)

 

A epistemologia moral de Ross sugere que deveres prima facie constituem uma instância do conhecimento moral empírico cuja relevância não se restringe a um caso concreto particular. O agente poderia sempre, mediante uma espécie de indução intuitiva, estabelecer que certa característica moral relevante, reconhecida em um caso particular, provavelmente manterá o mesmo valor moral em futuras situações semelhantes. Desse modo, o agente, após discernir racionalmente as razões práticas mais relevantes num caso particular, estabelecendo a sua polaridade moral nesse contexto, poderia imediatamente induzir intuitivamente, a partir desse conhecimento das características empíricas moralmente relevantes do caso concreto, que certa característica moralmente relevante provavelmente manteria a mesma polaridade moral uniforme em casos futuros assemelhados. Ross sugere que, por meio de uma indução epistemológica, o conhecimento moral particular pode ser universalizado. A teoria de Ross, diferente da teoria da subsunção, parece admitir que princípios morais prima facie sejam justificados pela experiência empírica de casos concretos:

O conhecimento desse fato universal é o conhecimento de um dever geral prima facie, e conhecendo esse fato universal conhecemos um princípio moral. Mas não conhecemos aquele princípio diretamente; desde que inferimos isso a partir do que discernimos em um caso particular, casos particulares podem atuar como testes para princípios (Dancy, 2004, p. 6-7).

Dancy rejeita a teoria dos deveres prima facie como explicação geral sobre a natureza do raciocínio moral e da deliberação prática. A principal razão dessa objeção consiste na recusa peremptória a possibilidade epistemológica da universalização normativa indutiva a partir de juízos particulares acerca de características moralmente relevantes estabelecidas num caso particular. […] Particularistas enfaticamente não admitem que uma razão relevante num caso seja necessariamente relevante em outro de maneira similar, em vista do pressuposto epistemológico fundamental da variabilidade da polaridade moral das razões práticas caso a caso.

O particularismo de Dancy sugere basicamente que o juízo e a deliberação moral não dependem da existência e aplicação de princípios morais. O holismo de Dancy, por sua vez, postula que uma característica moral relevante que constitui uma razão prática favorável em um caso pode não representar razão nenhuma em outro, ou até mesmo alterar sua polaridade tornando-se uma razão contrária em outro contexto. Assim, uma razão prática pode alterar seu valor moral conforme as circunstâncias de cada caso particular. Dancy sustenta que razões práticas devem ser necessariamente estabelecidas, ajuizadas e ponderadas conforme o contexto particular das características moralmente relevantes de cada caso e seu valor moral particular somente pode ser apropriadamente estabelecido conforme as circunstâncias de cada ação. Dancy rejeita o generalismo moral consistente na teoria de que o juízo e o conhecimento moral dependeriam necessariamente da existência de princípios morais, recusando igualmente o atomismo moral consistente na tese de que razões práticas possuiriam valor moral invariável, de modo que uma característica que constitui uma razão em um determinado caso necessariamente se mantem a mesma razão em outro caso, preservando a mesma polaridade moral.

(RIBEIRO, 2018. p.8)

 

Aristóteles é comumente considerado uma das principais influências filosóficas do particularismo ético contemporâneo. Backhurst reconhece a herança aristotélica de Dancy: “[…] o tipo de realismo particularista defendido por Dancy, que também possui raízes em Aristóteles […]” (Backhurst, 2003, p. 158)

(RIBEIRO, 2018. p.10)

 

 

2. Aspectos conceituais do particularismo epistemológico aristotélico em Dancy

 

MacIntyre (2001, p. 302, 303, grifo nosso) ressalta a inadequação do universalismo ao pensamento aristotélico em After Virtue:

Ela requer uma scientia tanto da ordem moral quanto da física, uma forma de conhecimento na qual se pode colocar tudo numa hierarquia dedutiva, na qual o mais alto posto é ocupado por um conjunto de princípios fundamentais cuja verdade pode ser conhecida com certeza. Mas há um problema para quem sustenta essa visão aristotélica do conhecimento, um problema que já ocupou muitos comentadores, pois as próprias explicações aristotélicas das generalizações da política e da ética não se encaixariam em tal teoria dedutiva. Elas não se mantém necessária e universalmente, mas somente hôs epi to polu, em geral e em sua maior parte.

(RIBEIRO, 2018. p.11)

O particularismo de Dancy parece possuir natureza essencialmente metaética: “O livro que escrevi é sobre como entender a forma como as razões funcionam, e lida largamente com teorias acerca das razões ao invés de tratar da vida” (Dancy, 2004, p. 2). Seu projeto filosófico consiste no deslocamento do foco da investigação ética dos “princípios morais” para as “razões contribuintes”. Dancy propõe um holismo epistemológico localizado entre princípios, deveres, razões e características moralmente relevantes das circunstâncias, sustentando que razões contribuem para princípios e deveres e vice-versa, sem ordem de hierarquia ou primazia epistêmica. O particularismo rejeita a prioridade epistemológica dos princípios, negando-lhes qualquer supremacia no raciocínio e no juízo moral, para situá-los numa relação holística com razões contribuintes. Princípios e deveres morais se relacionam com razões contribuintes em consequência das características moralmente relevantes no contexto de cada caso particular.

(RIBEIRO, 2018. p.12)

 

A noção de deliberação prática constitui um conceito fundamental da ética aristotélica, deliberar implica sopesar todas as razões moralmente relevantes potencialmente aplicáveis ao caso, determinar as razões predominantes e particularizar a ação adequada. A interpretação particularista de Zingano a respeito da inexatidão do conhecimento moral em Aristóteles parece compatível com a teoria das razões contribuintes de Dancy:

Isto não elimina generalizações na ética, e Aristóteles fala mesmo aqui de “discurso geral”, o que provavelmente faz alusão a estas generalizações, mas a elas não parece ser dado o papel central que têm, por exemplo, na ética moderna. Muito sucintamente, a forma básica da decisão prática é: A é bom/mau nas circunstâncias C para todo o agente S, e esta forma se distingue de todo A é B, assim como de nas mais das vezes. Em um sentido importante, a primeira fórmula está rente ou próxima ao particular de modo que as duas outras não o estão, nem mesmo a de tipo nas mais das vezes (Zingano, 2008, p. 98-99, grifo nosso).

(RIBEIRO, 2018. p.13)

 

Dessa forma, a doutrina aristotélica da mediedade parece vinculada ao postulado fundamental da teoria das razões contribuintes de Dancy, a crença que razões morais variam sua polaridade conforme as características do caso particular, na medida em que o agente que delibera em cada caso possui características personalíssimas, o meio termo deliberado é necessariamente particular. A mediedade de Aristóteles parece igualmente compatível com o holismo de Dancy (2004, p. 7): “Holismo na teoria das razões: uma característica que é uma razão em um caso pode não ser uma razão, ou uma razão oposta, em outro”.

(RIBEIRO, 2018. p.14)

 

Aristóteles confere centralidade à deliberação na filosofia prática. A deliberação da ação correta e dos meios necessários e suficientes para sua adequada execução constitui função epistemológica moral exclusiva do agente, significando a excelência no emprego da razão prática. Esse tipo de juízo prático, realizado mediante um procedimento psicológico reflexivo e introspectivo, avalia a relevância moral de todas as razões potencialmente relevantes no caso. O agente deve deliberar e agir “aqui e agora”. A deliberação deve necessariamente ser particular, caso a caso, considerando cada contexto peculiar. Deliberar implica um juízo de relevância acerca de todas as razões potencialmente compatíveis com as características moralmente relevantes de cada contexto particular. A deliberação aristotélica concerne às coisas praticáveis, único âmbito de liberdade que resta aos agentes. Eventos necessários e universais logicamente não podem ser objetos de deliberação, deliberamos unicamente a respeito de fenômenos particulares e contingentes:

Ninguém delibera, então, sobre os objetos eternos; por exemplo, sobre o universo ou se a diagonal e o lado são incomensuráveis. Também não sobre os que estão em movimento, mas que se engendram sempre do mesmo modo, seja necessária, seja naturalmente ou por outra causa, como as órbitas e o nascer dos astros. Tampouco sobre os que ocorrem por acaso, como o descobrimento de um tesouro. Também não se delibera, porém, sobre todos os assuntos humanos […] Deliberamos sobre as coisas que estão em nosso poder, i.e., que podem ser feitas: são estas as que restam (EN 1112a, 20-30, grifo nosso).

(RIBEIRO, 2018. p.14)

 

3. Considerações Finais

A teoria das razões contribuintes parece implicar na necessidade de um procedimento deliberativo que envolve pesar razões, pois conforme sua formulação cada caso possui diversas características morais potencialmente relevantes que correspondem a razões para agir. Dancy postula uma relação epistemológica de favorecimento entre razões contribuintes e ações, exigindo capacidade cognitiva do agente para reconhecer as razões predominantes mediante uma avaliação adequada das características moralmente relevantes do caso particular. A deliberação, juízo ou raciocínio prático na teoria das razões contribuintes requer a operação apropriada da razão prática, exigindo habilidade epistemológica para determinar as razões moralmente relevantes potencialmente aplicáveis ao caso concreto. Assim, as razões contribuintes podem alterar seu valor moral conforme as circunstâncias, favorecendo certas ações em um caso e desfavorecendo essas mesmas ações em outro.

Parece claro que, tanto em Aristóteles como em Dancy, a deliberação moral envolve o ato de sopesar razões práticas divergentes, contraditórias ou opostas. A deliberação é epistemologicamente essencial na ética aristotélica justamente pela possibilidade da existência de diversas razões moralmente relevantes divergentes em problemas práticos. O conceito de deliberação em Aristóteles, portanto, parece compatível com a reivindicação epistemológica fundamental da teoria das razões contribuintes. Dancy sugere que características moralmente relevantes correspondem a razões para agir, sendo que o agente deve interpretar adequadamente o valor moral do contexto dessas características ou razões para determinar a ação apropriada.

Problemas práticos normalmente envolvem diversas características morais ou razões para agir, favoráveis ou contrárias a certa conduta. O agente deve deliberar e decidir quais as características e razões predominantes, considerando o contexto holístico, empírico, social e cultural particular do caso concreto. Essa deliberação não anula o valor moral das razões derrotadas, que permanecem moralmente válidas em outros casos. Por fim, ressaltamos que o objetivo principal deste artigo foi delinear alguns aspectos da influência filosófica exercida pela epistemologia moral particularista de Aristóteles no desenvolvimento teórico do particularismo moral de Dancy.

(RIBEIRO, 2018. p.15)

 


REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. The Complete Works of Aristotle. Princeton: Princeton University Press, 1984.
_______. L’éthique a Nicomaque. Louvain: Publications Universitaires de Louvain, 1974.
_______. Éthique a Nicomaque. Paris: Vrin, 1987.
_______. Nicomachean Ethics. 2 ed. Cambridge: Hackett, 1999.
_______. Etica Nicomachea. Roma: Laterza, 1999.
_______. Nicomachean Ethics. Oxford: Oxford University Press, 2002.
_______. Ethica Nicomachea. Oxford: Oxford University Press, 1942.

BAKHURST, D. Ethical Particularism in Context. In: HOOKER, B; LITTLE, M. O (Org.). Moral Particularism. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 157-177.
CRISP, R. Particularizing Particularism. In: HOOKER, B; LITTLE, M. O (Org.). Moral Particularism. Oxford: Oxford University Press. 2003. p. 23-47.
DANCY, J. The Particularist’s Progress. In: HOOKER, B; LITTLE, M. O (Org.). Moral Particularism. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 130-156.
_____. Ethics Without Principles. Oxford: University Press, 2004.
GARFIELD, J. Particularity and Principle: The Structure of Moral Knowledge. In: HOOKER, B;
LITTLE, M. O (Org.). Moral Particularism. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 178-204.
MACINTYRE, A. Depois da Virtude: Um Estudo em Teoria Moral. Bauru: EDUSC, 2001.
ZINGANO, M. Aristóteles: Tratado da Virtude Moral; Ethica Nicomachea I 13 – III 8. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

Indiretas:

  • MacDowell – Virtue and Reason – CRISP
  • A epistemologia moral de Ross – DANCY

 


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