Filosofia como Forma de Vida e sua relação com as Estruturas de Poder – Ubirajara T Schier

Filosofia como Forma de Vida e sua relação com as Estruturas de Poder

Ubirajara T Schier

  1. Introdução:

Antes mesma da filosofia ser tratada como uma área de conhecimento, ela surgiu originalmente na Grécia antiga não como um conhecimento meramente teórico, mas também um conhecimento prático, a saber, que atuava no desenvolvimento do modo de vida daqueles que partilhavam do seu conhecimento. Várias escolas e movimentos surgiram com esse propósito, onde, apesar das diferenças, todas partilhavam de um objetivo final comum: alcançar a felicidade (Eudaimonia). A filosofia e a prática da filosofia, eram, portanto, uma coisa só. Entretanto, a Filosofia como forma de vida foi esquecida definitivamente a partir da modernidade, porém resgatada posteriormente na contemporaneidade por filósofos como Pierre Hadot, Michel Foucault e Giorgio Agamben. O resgate minucioso desses autores da filosofia como forma de vida trouxe, além dos detalhes relacionados ao desenvolvimento e evolução destas das formas de vida filosóficas, também a caracterização da forma como estas se relacionavam com as estruturas de poder de cada época.

Neste trabalho, focaremos a filosofia como forma de vida e suas relações com as estruturas de poder. Primeiramente as escolas de Platão e Aristóteles, relacionadas à estrutura política da pólis. Em um segundo momento abordaremos as escolas helenistas onde, devido à expansão do império grego por Alexandre Magno para o oriente, ocorreu uma mudança da estrutura de poder: de uma pólis centralizada para uma estrutura de poder distribuída, abrangendo todos os territórios conquistados.  Posteriormente, com o advento do cristianismo, uma nova estrutura de poder surge e assume a caracterização das formas de vida que antes estavam sob o domínio da filosofia. Por último, com a modernidade e a divisão dos saberes em diferentes áreas de conhecimento, a forma de vida passou a ter um propósito de entendimento do indivíduo enquanto sua utilidade. Essa forma de vida que constitui o indivíduo a partir de sua utilidade perdura também atualmente, definindo a forma como os indivíduos vivem e se relacionam em sociedade. Pretendemos dessa forma, através de uma identificação mais detalhada da relação da forma de vida filosófica com as estruturas de poder, contribuir no desenvolvimento dos elementos necessários para constituição de uma forma de vida contemporânea, que devolva ao indivíduo, sua liberdade.

  1. Desenvolvimento:
    • As escolas de Platão:

            Para Hadot (2014) o objetivo de Platão é político. Trata-se do desenvolvimento de uma forma de vida adequada para “mudar a vida política pela educação filosófica dos homens influentes na cidade”. Platão reconhece a necessidade de capacitar politicamente os indivíduos influentes para atuar como administradores das cidades gregas, segundo ele, carentes de uma boa administração. Nesse sentido, os filósofos plantonistas eram formados para o agir político, com propósito de atuação direta nas estruturas de poder das polis gregas.  Segundo Hadot (2014):

Para Platão, seu “ofício de filósofo” consiste em agir. […] Muitos alunos da academia desempenharam efetivamente um papel político em diferentes cidades, seja como conselheiros de soberanos, seja como legisladores, seja ainda como opositores da tirania. Os sofistas pretenderam formas os jovens para a vida política, Platão quis fazer isso dotando-os de um saber superior àquele que os sofistas poderiam fornecer-lhes, de um saber que, de uma parte, será fundado sobre um método racional rigoroso e, de outra, segundo a concepção socrática, será inseparável do amor do bem e da transformação interior do homem, Ele não quer só formas hábeis políticos, mas homens. (HADOT, 2014. p. 94)

As escolas plantonistas se dedicavam assim à uma espécie de “formação integral” do “filósofo-político”. Apesar de determinar com isso uma forma de viver, a orientação tem um propósito definido: servir à pólis. Trata-se, portanto, do desenvolvimento de uma filosofia como forma de vida visando o desenvolvimento de uma estrutura de poder – ainda que esta venha a promover o desenvolvimento integral do indivíduo este desenvolvimento existe para atender ao propósito político da pólis-.

Na análise do diálogo de Sócrates com Alcebíades, Foucault (2006), recupera o contexto desse diálogo que, assim como para Hadot (2014), o contexto envolvia a preocupação quanto à capacidade dos jovens aristocratas atenienses em exercer o ofício de governar os outros. Conforme Foucault (2006):

Um contexto muito familiar a todos os diálogos de juventude de Platão – denominados diálogos socráticos -, uma paisagem política e social: é a paisagem, o pequeno mundo dos jovens aristocratas que, por seu status, são os primeiros da cidade e estão destinados a exercer sobre sua cidade, sobre seus concidadãos, um certo poder. Jovens que, desde a mocidade, são devorados pela ambição de prevalecer sobre os outros, sobre seus rivais na cidade, assim como sobre seus rivais de fora da cidade, em suma, de passar a uma política ativa, autoritária e triunfante. O problema, porém, está em saber se a autoridade que lhes é conferida por seu status de nascimento, seu pertencimento ao meio aristocrático, sua grande fortuna – como era o caso de Alcibíades -, se a autoridade que lhes é assim de saída conferida, também os dota da capacidade de governar como convém. Trata-se, pois, de um mundo em que se problematizam as relações entre o status de “primeiros” e a capacidade de governar: necessidade de ocupar-se consigo mesmo na medida em que se há que governar os outros. (FOUCAULT, 2016. p. 56)

Dessa forma, o resgate da filosofia das escolas platônicas enquanto forma de vida também se caracteriza por apresentar um determinado propósito bem definido: o de servir às estruturas políticas de poder.

  • A academia Aristotélica:

Diferentemente das escolas Platônicas, as academias Aristotélicas para Hadot (2014) tinha o propósito principal de preparação para uma vida filosófica. Ao mesmo tempo, também proporcionava o ensino prático e político para àqueles de fora da academia, interessados na capacitação prática para fins de organização da pólis. Para o autor, Aristóteles faz uma distinção entre vida política e vida filosófica. A primeira conduz à felicidade de uma vida ativa; a segunda, para HADOT(2014):

[…] à uma “felicidade filosófica que corresponde à teoria, isto é, a um gênero de vida consagrado totalmente à atividade do espírito, que se situa na excelência e na virtude mais elevada do homem, o espírito, e subtraída aos inconvenientes que comporta a vida ativa. (HADOT, 2014, p. 121).

Percebe-se, assim, que as academias Aristotélicas tinham um propósito muito maior que o de servir à pólis: o desenvolvimento de uma forma de vida puramente filosófica visando a liberdade e independência do indivíduo. Segundo HADOT (2014), a vida filosófica:

Conduz a prazeres maravilhosos, que não são misturados a dor ou a impurezas, mas estáveis e sólidos. Esses prazeres são, por outro lado, maiores para aqueles que alcançam a verdade e a realidade do que para aqueles que ainda a buscam. Ela assegura a independência em relação ao outro, na medida em que, especifica Aristóteles, em contrapartida, assegura a independência em relação às coisas materiais. Aquele que se consagra à atividade do espírito depende unicamente de si mesmo: sua atividade será, talvez, melhor caso tenha colaboradores; porém, quanto mais se é sábio, mais se poderá ser só. A vida segundo o espírito não procura outro resultado senão a si mesma, é amada por si mesma, é para si mesma seu próprio fim e, poder-se-ia dizer, sua própria recompensa. (HADOT 2014, p. 121).

Fica claro dessa forma em HADOT(2014) que a forma de vida Aristotélica servia de forma secundária às estruturas políticas de poder das pólis, mas, entretanto, não consistia em seu propósito fundamental: o desenvolvimento de uma forma de vida filosófica para servir ao indivíduo.

  • As escolas Helenistas:

O assim chamado período helenístico durou cerca de trezentos anos – do século IV a.C. até o final do século I a.C. – e teve início em virtude das conquistas e expansão do império grego por Alexande Magno para além das fronteiras gregas, estendendo sua influência e presença para outras regiões e povos do mundo e  compreendendo assim uma vasta área desde o mar Mediterrâneo oriental até a Ásia Central. Pode-se entender a partir de REALE, que a expansão do domínio grego caracterizou uma espécie de “globalização”, transferindo a importância da cidade-estado – “polis” – para o indivíduo “globalizado”. Segundo o mesmo:

A grande expedição de Alexandre Magno (334-323 a.C.) para o Oriente e as sucessivas conquistas territoriais, com a formação de um império vastíssimo e a teorização de uma monarquia universal divina, tiveram como efeito imediato o de colocar em gravíssima crise a Pólis (a Cidade-Estado). Não se tratou apenas de revolução política, mas também e sobretudo de revolução espiritual e cultural, a partir do momento que na dimensão política (isto é, na vida dentro da Pólis) se reconheciam todos os grandes filósofos gregos, os quais justamente sobre este fundamento construíram seus sistemas morais e sua antropologia.

O ideal da Pólis, portanto, é substituído pelo ideal “cosmopolita” (o mundo inteiro é uma Pólis), e o homem-citadino é substituído pelo homem-indivíduo; a contraposição grego-bárbara em larga medida é superada pela concepção do homem em uma dimensão de igualitarismo universal. (REALE 2003, p. 249)

Decorrente dessa transformação acabaram se formando as escolas helenistas, entre as mais influentes além do estoicismo, segundo REALE (2003): o cinismo, o epicurismo, o ceticismo, o aristotelismo, o platonismo. Todas essas escolas têm em comum o fato de terem sido “concebidas” a partir de uma nova estrutura de poder, porém, cabe agora, avaliar essa relação que se constitui entre elas.

Para Hadot (2014), apesar da mudança de poder ter transacionado entre um regime democrático para um regime monárquico, tal mudança não implicou em uma redução da “presença filosófica” nas atividades sociais e políticas. Conforme Hadot (2014):

“Apresentou-se muitas vezes o período helenístico da filosofia grega como uma fase de decadência da civilização grega corrompida pelo contato com o Oriente. Várias causas podem explicar esse juízo severo: […] em segundo lugar, a ideia segundo a qual, com a passagem do regime democrático ao regime monárquico e o fim da liberdade política, a vida pública das cidades gregas ter-se extinguido. Os filósofos, abandonando o grande esforço especulativo de Platão e Aristóteles e a esperança de formar homens políticos capazes de transformar a cidade, ter-se-iam resignado então a propor aos homens, privados da liberdade política, um refúgio na vida interior.

[…]

Com efeito, é totalmente errôneo representar essa época como um período de decadência. O epigrafista Louis Robert, ao estudar atentamente as inscrições encontradas nas ruínas das cidades gregas da Antiguidade, mostrou muito bem, em toda a sua obra, que as cidades continuavam a ter, tanto sob as monarquias helenísticas como depois no Império Romano, intensa atividade cultural, política, religiosa e mesmo atlética.

[…]

A pretensa perda de liberdade das cidades não provocou a diminuição da atividade filosófica. (HADOT, 2014. P. 141-142)

            Entretanto, é preciso considerar:  o fato da mudança na estrutura de poder não ter de certa forma diminuído a participação da filosofia, isso não implica que a forma de relação entre ambas não tenha se alterado. Para Hadot (2014), a formação filosófica parece seguir com seu “propósito político” nas escolas helenistas de tradição Socrática, como o estoicismo, o platonismo e o aristotelismo. Nestas escolas, continua presente o “propósito político” na relação entre o modo de vida defendido por cada uma e sua relação com a estrutura de poder. Para Hadot (2014):

Nas três escolas que, acabamos de dizer, se predem à tradição socrática, o platonismo, o aristotelismo e o estoicismo, o ensino sempre teve, apesar da transformação das condições políticas, a dupla finalidade que tivera na época de Platão e Aristóteles: formar, direta ou indiretamente, os cidadãos, melhor ainda, se possível, os dirigentes políticos, mas formar também os filósofos. […] Eis por que muitos alunos se dirigem para Atenas, vindos da Grécia, do Oriente Próximo, da África e da Itália, para receber uma formação que lhes permita posteriormente exercer uma atividade política em sua pátria. (HADOT, 2014. P. 155-156)

Já segundo o mesmo autor, o ceticismo (inicialmente reconhecido pelo movimento que deu origem, o pirronismo) e o cinismo, se caracterizam por não se constituírem na forma de escolas. São, em sua essência, modos de vida. Em suas palavras:

É necessário acrescentar outras duas correntes que parecem extremamente diferentes das quatro escolas: o ceticismo, ou melhor o pirronismo – porquanto a ideia de ceticismo é um fenômeno relativamente tardio – e o cinismo. Nenhuma das duas tem dogmas. Mas são dois modos de vida – o primeiro proposto por Pirro, o segundo por Diógenes, o Cínico – e, desse ponto de vista, inteiramente duas haireseis, duas atitudes de pensamento e de vida.  (Hadot, 2014. P. 154)

Podemos assim, entender que pelo fato do cinismo e do ceticismo constituírem correntes de pensamento e formas de vida e não, por assim dizer, escolas de formação, não poderiam estas exercer também a finalidade de formação política  como nas outras escolas. Percebemos em Hadot (2014), que dentro do que se reconhece como escolas do período helenístico, o platonismo, o aristotelismo e o estoicismo constituem escolas com formação filosófica para um modo de vida com propósito político, enquanto no cinismo e no ceticismo isso não ocorre.

            Já para Foucault (2006) o estoicismo é percebido de forma diferente que para Hadot (2014). Para Foucault, no estoicismo a formação de um modo de vida que propõe o desenvolvimento da arte de “governar a si” que dá condições para “governar os outros”, porém, a formação filosófica e o seu modo de vida não têm o propósito político. Entendemos que no estoicismo para Foucault parece se tratar de uma “consequência lógica”, como se perguntássemos: “como alguém pode governar os outros se não consegue governar nem a si mesmo?” a resposta negativa parece ser óbvia. Então parece não ser o caso do governar a si para governar os outros, mas um governar a si que pode também governar os outros.  Em Foucault em Dossiê “Gouvernement de soi et des autres”:

Neste contexto, a prática de si certamente desempenhou um papel: não o de oferecer, na vida privada e na experiência subjetiva, um substituto para a atividade política doravante impossível; mas o de elaborar uma arte de viver’, uma prática de existência, a partir da única relação de que se é mestre, a relação consigo. Esta se torna o fundamento de um êthos que não constitui a outra opção relativamente à atividade política e cívica; ela oferece, ao contrário, a possibilidade de definir-se a si mesmo independente da função, papel e prerrogativas, e por isto mesmo poder exercê-los de maneira adequada e racional. (FOUCAULT, “Dossiê “Gouvernement de soi et des autres”).

Embora não tenhamos como objetivo nesse trabalho detalhar as características de cada modo de vida filosófico, e sim apenas no que tange a relação destas com as estruturas de poder, percebemos a necessidade de verificar se o estoicismo possui finalidade política (como parece afirmar Hadot) ou não (como identificamos em Foucault). De uma maneira geral, podemos dizer que no estoicismo o foco, a prioridade, é o indivíduo e seu bem-estar; e um desenvolvimento de um modo de vida que assegura a tranquilidade de sua alma apesar das circunstâncias externas. Pode-se dizer que, dessa forma, pratica-se enquanto forma de vida à indiferença em relação às coisas externas ao indivíduo e, a política – como elemento da estrutura de poder – como sendo uma das condições que são externas ao indivíduo. Se algo é externo ao indivíduo e este é indiferente ao mesmo, logo, podemos pensar que esse algo externo – as circunstâncias, formação político e a estrutura de poder – não pode ser finalidade (não podemos ser indiferentes a algo que temos como propósito alcançar). Por hora assumiremos a ideia de Foucault, considerando que as escolas ou correntes de pensamento de tradição helenistas como um todo, não possuíam o propósito político na formação de um modo de vida filosófico.

  • A idade média e o Cristianismo:

Na idade média, uma relação entre estruturas de poder e os modos de vida filosóficos foi retratada e resgatada minuciosamente por Agamben. Refere-se aos movimentos religiosos ocorridos entre os séculos XI e XII que nasceram e difundiram-se na Europa. Tais movimentos ergueram-se contra o poder da Igreja e à hierarquia eclesiástica e mais tarde acabaram por constituir novas ordens monásticas – como no resgate feito por Agamben a ordem Franciscana – ou seitas heréticas. Nessa relação, grupos religiosos cresciam e ganhavam voz à medida em que reclamavam por um novo modo de viver as crenças religiosas da Igreja. Os movimentos que deram origem à ordem Franciscana queriam essencialmente renunciar à posse de bens, para poder viver um modo de vida que levasse à perfeição: a “altíssima pobreza”. Os franciscanos não queriam se limitar a preceituar suas crenças, queriam também, viver de acordo com elas. Segundo Agamben (2014):

Como Francisco não cansa de lembrar, o fato é que o que está em jogo na “regra e vida” não tanto o ato de preceituar algo, mas também e sobretudo o ato de seguir alguém (seguir os passos de nosso Senhor Jesus Cristo); ou, com força ainda maior, na assim chamada “última vontade” a santa Clara: “quero seguir a vida e a pobreza do Senhor altíssimo”. Não se trata tanto de aplicar uma forma (ou uma norma) à vida, mas de viver de acordo com aquela forma, ou seja, de uma vida que, no ato de a seguir, ela própria se torna forma, coincide com ela. (Agamben, 2014. p.71)

            Obviamente a reinvindicação desse novo modo de vida entrou em conflito com o modo de vida estabelecido pela Igreja. Os Franciscanos queriam renunciar à propriedade fazendo uso do mínimo necessário para viver, enquanto a Igreja defendia que o uso e posse não poderiam ser dissociados. Por outro lado, os franciscanos defendiam que vida e norma – ou “forma de vida” – deveriam ser vividos como uma coisa só, ou seja, não se deveria viver um modo de vida não condizendo com a norma preceituada, uma “forma vitae”: prática e forma de vida como uma única coisa. Já a Igreja por sua vez, estabelecia o “officium”, onde a prática de uma norma independe da forma de vida.

            A estrutura de poder estabelecida, portanto, conflituou com um novo modo de vida emergente. O conflito perpetuou por muito tempo para permitir que esse novo modo de vida pudesse ser acomodado à estrutura de poder estabelecida, permitindo assim a existência desses movimentos de forma a assegurar a estrutura de poder da Igreja. Em Agamben (2014):

Por isso, confrontada com essa “novidade”, a estratégia da Igreja consistiu, por um lado, em procurar ordená-la, regulá-la e conformá-la de modo a canalizar os movimentos para uma nova ordem monástica ou inseri-los num movimento já existente; por outro lado, quando isso era impossível, deslocar o conflito do plano da vida para o da doutrina, condenando-os como heréticos. Em ambos os casos, o que continuava não pensado era precisamente a aspiração originária que havia levado os movimentos a reivindicar uma vida e não uma regra, uma forma vitae e não um sistema mais ou menos coerente de ideias e doutrinas – ou, mais precisamente, a propor não uma nova exegese do texto sagrado, mas sua pura e simples identificação com a vida, como se eles não quisessem ler e interpretar o Evangelho, mas apenas vivê-lo. (Agamben, 2014. p.67)

            Nos movimentos religiosos minuciosamente resgatados por Agamben, temos o retrato de um modo de vida que clama unicamente por si e por sua identidade, ainda que esta identidade conflitua com a ordem da estrutura de poder estabelecida. Diferente do que vimos até aqui, trata-se de um modo de vida que clama por sua existência “para fora” da estrutura de poder.

  • O homem moderno:

            A idade moderna pós-revolução industrial, marca o início de uma profunda transformação da estrutura de poder. O poder agora concentra-se nas mãos de uma minoria burguesa, controladora dos meios de produção. Esse poder é exercido sobre uma “massa”, que é quem produz e ao mesmo tempo consome, criando um círculo vicioso que é arquitetado pela minoria burguesa. Um modo de vida torna-se, portanto, necessário para dar suporte e sustentar as bases da sociedade moderna. Essa nova “forma de vida”, entretanto, é “imposta” pelo que Adorno (AAAA) classifica como “indústria cultural”. A indústria cultural é planejada para influenciar os indivíduos da sociedade quanto aos seus gostos e desejos e, consequentemente, determinando aquilo que irão consumir e produzir para uma minoria controladora. O indivíduo torna-se escravo em um sistema que estabelece suas necessidades, das quais ele se torna uma peça, juntamente com a natureza, para produzir e atender essas necessidades, melhorando sua condição básica de vida (que na verdade é necessária para assegurar o funcionamento do próprio sistema) mas, em contrapartida, assegurando a riqueza de alguns, no sentido de fazer uso das técnicas científicas para manutenção do sistema que ele mesmo criou quando vislumbrou o uso instrumental da razão para obtenção de riquezas. Segundo Adorno (2006):

O trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu na economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo da autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a autoalienação dos indivíduos, que têm que se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica. Mas isso, mais uma vez, é levado em conta pelo pensamento esclarecido: aparentemente, o próprio sujeito transcendental do conhecimento acaba por ser suprimido como a última reminiscência da subjetividade e é substituído pelo trabalho tanto mais suave dos mecanismos automáticos de controle. (Adorno, 2006. Cap. 1. pág. 42)

 

            O que se consolida após a formação da sociedade moderna é, portanto, o estabelecimento de um modo de vida imposto por uma minoria que comanda e controla a estrutura socioeconômica da assim chamada sociedade moderna. A “massa manipulada” é constituída pela maioria dos indivíduos que produzem e consumem de forma a gerar riquezas para essa minoria, que troca sua liberdade pelo prazer momentâneo que os bens que ela mesma produz proporcionam. Nesta fase, a divisão dos saberes em áreas de conhecimento específicos – necessário para produção científica da sociedade moderna – tirou da filosofia a incumbência da tarefa de refletir acerca da constituição de uma forma de vida para essa sociedade, uma vez que, também, não era do interesse dessa minoria que essa reflexão fosse feita.

            Essa “forma de vida” instituída e determinada pela estrutura de poder se caracteriza, portanto, pelo estabelecimento de uma forma de vida cujo propósito é servir à estrutura de poder. Nessa relação, o indivíduo tem valor apenas por sua finalidade à estrutura de poder.

  1. Conclusões:

Tendo sido apresentado até o momento as principais formas de vida filosóficas e sua relação com as estruturas de poder, pensamos necessário “categorizar” e identificar a natureza destas relações, conforme segue:

  • Os tipos de relações entre as formas de vida filosóficas e as estruturas de poder:

Com base no exposto, encontramos essencialmente quatro tipos de relações entre as estruturas de poder e as formas de vida filosóficas: o primeiro tipo de relação em que a forma de vida filosofia se constitui para servir as estruturas de poder; um segundo tipo, em que a forma de vida é estabelecida e constituída pelas estruturas de poder; um terceiro tipo, em que as formas de vida buscavam uma espécie de uma alienação ao modo de vida social; e, finalmente, um quarto tipo, onde a forma de vida filosófica apresenta uma relação de indiferença em relação à estrutura de poder e as circunstâncias impostas pelo modo de vida social por ela constituído.

Podemos dizer que as formas de vida filosóficas que tem como propósito também servir as estruturas de poder, são, de certa forma, idealistas. A condenação à morte de Sócrates exprime perfeitamente essa relação. Sócrates foi acusado de corromper a juventude ateniense e por isso sentenciado à pena de morte por envenenamento. A lição máxima de Sócrates, que teve oportunidade de fugir do encarceramento, mas não o fez, é a de que o caminho para a mudança das circunstâncias externas parte primeiramente da aceitação destas circunstâncias. Em outras palavras, deve-se respeitar “as regras do jogo” vigentes. A democracia constitui o meio através do qual o indivíduo em seu meio tem de promover mudanças das regras que achar que devem ser mudadas. Nestas formas de vida filosóficas, como as escolas platônicas e aristotélicas, a relação de servir à estrutura de poder implica, entretanto, no poder de participação de indivíduo também na constituição desta estrutura de poder. Pode-se dizer, são relações democráticas. Obviamente, por outro lado, as formas de vida constituídas pelas estruturas de poder se caracterizam pelo o oposto: não tem como interesse a participação do indivíduo. São, portanto, autoritárias. O indivíduo é formado para um determinado fim, seu valor é somente sua finalidade dentro da estrutura de poder. Nestas formas de vida, portanto, o indivíduo não tem valor em si mesmo. A modernidade, mesmo em regimes dito democráticos, é um exemplo desta relação.

No terceiro tipo temos formas de vida filosóficas que, de certa forma, têm como propósito viver acerca das circunstâncias impostas ou definidas pelas estruturas de poder. Os cínicos e por exemplo o movimento franciscano apresentam semelhanças importantes que os colocam, de certa forma, dentro de um mesmo tipo de relação com a estrutura de poder. Os cínicos têm como forma de vida, essencialmente, não viver sob as condições sociais formadas em uma estrutura de poder (seja essas condições determinadas pela estrutura de poder de forma democrática ou autoritária). Trata-se, portanto, de uma forma de vida filosófica que se apresenta na forma de uma recusa radical de uma forma de vida socialmente estabelecida. É uma recusa radical porque determina uma forma de vida isolada, separada, e à parte daquele modo de vida socialmente existente. É radical também porque é desinteressada quanto à intenção de mudar a forma de vida social e a estrutura de poder, enfim, de torná-las melhores.

O quarto tipo, representado pelo estoicismo, apresenta uma relação de indiferença em relação à estrutura de poder e o modo de vida constituído em torno dela. Pode-se dizer que essa indiferença tem como propósito maior e absoluto desenvolver o indivíduo a fim de promover sua preservação e seu bem-estar. Nesta relação com a estrutura de poder, o indivíduo pode, se quiser, agir junto à estrutura de poder e até mesmo servi-la, mas desde que isso não comprometa de alguma forma seu proposito maior. Nesta relação com a estrutura de poder, pode-se dizer que o indivíduo se adapta ao modo de vida social estabelecido. Essa adaptação, entendemos, pode ser simplesmente interna. Nesta o indivíduo aceita, indiferente, as condições externas em que vive e o mesmo está em paz e de acordo: ele adapta seu modo de vida ao modo de vida social. Por outro lado, essa adaptação também pode ser externa, onde o indivíduo adapta suas condições para viver de acordo com suas convicções dentro do meio social estabelecido. Ou então, o que parece mais provável, a ocorrência simultânea de ambas as adaptações: interna e externa. Nesta é o indivíduo primeiro adapta-se internamente para então poder adaptar-se às condições externas.

  • Elementos para a constituição de uma forma de vida contemporânea do indivíduo livre:

Os quatro tipos de relações identificados permitem delimitarmos primeiramente algumas fronteiras para com isso, possibilitar que identifiquemos possíveis limitações de uma forma vida contemporânea em sua relação com, neste trabalho, as estruturas de poder capitalistas democráticas.

Primeiramente podemos definir os extremos das relações de uma forma de vida filosófica com a estrutura de poder. Em um extremo podemos tomar como exemplo os cínicos. Entendemos que a forma de vida cínica caracteriza, essencialmente, uma relação de completa negação em relação à estrutura de poder. O cínico recusa o modo de vida social estabelecido em torno da estrutura de poder. Podemos dizer que o modo de vida cínico é em si um ato de rebeldia. Ao mesmo tempo, a forma de vida cínica não se apresenta e tão pouco se sustenta como uma forma de vida alternativa, por assim dizer, sustentável para os dias atuais. Atualmente talvez possamos identificar dois tipos de formas de vida cínica: um seria a mendicância por opção – se existir – e o idealismo hipócrita. Neste último, trata-se daqueles que recusam e negam o modo de vida social estabelecido em torno da estrutura de poder, mas destas porém, obtêm sem esforço o seu sustento (quando não possuem e/ou fazem uso de bens e serviços que são dispensáveis para sua subsistência). São o que podemos caracterizar como: “os idealistas de iphone”.

Em um outro extremo, identificamos o tipo de relação que se caracteriza por uma completa aceitação do modo de vida social estabelecido em torno da estrutura de poder. Ainda que existam diferenças entre os indivíduos, quais sejam, aqueles que de um lado possuem uma boa ou excelente condição de vida e, de outro, aqueles que possuem uma condição ruim ou péssima, ambos aceitam a forma de vida socialmente estabelecida. As mudanças desejadas são aquelas não visando uma mudança da forma de vida em si, mas apenas visando uma ascensão das condições de vida daqueles que vivem em condições de vida ruins ou péssimas. Já em sociedades capitalistas democráticas desenvolvidas, possivelmente, será possível perceber uma aceitação “plena” do modo de vida social (uma vez que todos aparentemente se encontram em condições de vida boa ou excelentes, ou aqueles que não estão são bem assistidos pelo Estado). De qualquer maneira, entendemos que não podemos encontrar nesse extremo os elementos que permitam promover a liberdade do indivíduo. A aceitação, entendemos, segue em direção contrária à mudança.

Entre os dois extremos identificados acima, ou seja, entre a aceitação e a negação, acreditamos que é onde precisamos buscar os elementos necessários para a constituição de uma forma de vida alternativa, que promova a liberdade do indivíduo contemporâneo em um modo de vida socialmente sustentável. Entre as formas de vida estudadas, o estoicismo é a que apresenta algumas destas características. Em primeiro lugar, porque no estoicismo o foco é o indivíduo. Seu meio social e a estrutura de poder são somente circunstâncias externas às quais o estoicismo como forma de vida oferece recursos para que o indivíduo se adapte ao meio sem comprometer a tranquilidade de sua alma. Percebemos que é por meio da indiferença com a qual o estoicismo trata as circunstâncias externas que torna a prática de sua forma de vida plenamente aplicável também para os dias atuais. Também, ao mesmo tempo que o indivíduo integra sua forma de vida ao meio social, ele também a influencia. Não se trata de aceitar ou negar, mas ao mesmo tempo que a forma de vida estoica se adapta ao meio, o meio também se adapta a ela. Apresentamos abaixo algumas passagens (códices) de Epicteto que caracterizam a relação do indivíduo com o meio externo:

[14b] O senhor de cada um é quem possui o poder de conservar ou afastar as coisas desejadas ou não desejadas por cada um. Então, quem quer que deseje ser livre, nem queira, nem evite o que dependa de outros. Senão, necessariamente será escravo.” (Epicteto, pg.44)

Este códice define a relação entre o objetivo maior do indivíduo, sua liberdade, e suas escolhas. Para ser livre, não se deve fazer escolhas em que o faça depender de outros.

 

[4] Frente uma dificuldade, lembrar-se que o importante é atingir o propósito que o impulsionou a agir. Exemplo: “Quero banhar-me e manter a minha escolha segundo a natureza”. E do mesmo modo para cada ação. Pois se houver algum entrave ao banho, terás à mão que “Eu não queria unicamente banhar-me, mas também manter minha escolha segundo a natureza – e não a manterei se me irritar com os acontecimentos.” (Epicteto, pg.40)

Este códice estabelece a relação entre as escolhas do indivíduo e sua natureza interior.

[29.7] Examina essas coisas se queres receber em troca delas a ausência de sofrimento, a liberdade e a tranquilidade. Caso contrário, não te envolvas. Não sejas, como as crianças, agora filósofo, depois cobrador de impostos, em seguida orador, depois procurador de César. Essas coisas não combinam. É preciso que sejas um homem, bom ou mal. É preciso que cultives a tua própria faculdade diretriz ou as coisas exteriores. É preciso que assumas ou a arte acerca das coisas interiores ou acerca das coisas exteriores. Isto é: que assumas ou o posto de filósofo ou o de homem comum. (Epicteto, pg.53)

Este códice estabelece a relação entre as escolhas do indivíduo com as características que promovam a conservação do seu ser: sempre algo que tenha como objetivo reduzir o sofrimento e assegurar a liberdade e a tranquilidade da alma.

[48.a] Postura e caráter do homem comum124: jamais espera benefício ou dano de si mesmo, mas das coisas exteriores. Postura e caráter do filósofo: espera todo benefício e todo dano de si mesmo. (Epicteto, pg.64)

Este códice estabelece a relação de responsabilidade do indivíduo para com ele mesmo, sem atribuir a responsabilidade de nada que lhe ocorra para algo externo a ele.

[33.7] Acolhe as coisas relativas ao corpo na medida da simples necessidade: alimentos, bebidas, vestimenta, serviçais – mas exclui por completo a ostentação ou o luxo. (Epicteto, pg.57)

Este códice estabelece as prioridades para viver uma forma de vida estoica em meio social que lhe é externo.

Podemos perceber que há muito há se explorar na forma de vida estoica dentro de um contexto contemporâneo. Entre as formas de vida tratadas neste trabalho, concluímos que a estoica oferece recursos que podem ser utilizados para promover a libertação do indivíduo contemporâneo. O que parece faltar – e que será objeto de estudo em próximo trabalho – é a contextualização destes recursos para serem aplicados, por exemplo, modelos socioeconômicos capitalistas democráticos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. [tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail]. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006.

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PLATÃO. Banquete, Fédon, Sofista e Político. [trad. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa]. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

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