Princípios Utilitaristas: Pragmaticamente autoritários ou democraticamente utópicos

Princípios Utilitaristas: Pragmaticamente autoritários ou utópicos

Handout de Ubirajara T Schier

 

Meu objetivo nesse trabalho é argumentar que as teorias utilitaristas, em sua grande maioria – quais sejam: aquelas em que se visa o maior bem-estar em cada situação ou qualquer outro objetivo em que prevaleça o interesse coletivo sobre o interesse do indivíduo – são, sob o ponto de vista pragmático, autoritárias ou utópicas.

1. Ponto de partida:

Os Contratos e o Estado de Natureza

O ponto de partida necessita assegurar as condições em que se estabelece uma ética normativa. O indivíduo, quando em sociedade, estabelece entre eles – em comum acordo – contratos. Contratos são regras que possibilitam que as diferenças entre os indivíduos possam ser toleradas e respeitadas e, acerca delas, permitir que cada um tenha a liberdade de estabelecer o modo de vida que achar melhor. Não podemos ignorar, desta forma, os contratos firmados entre os indivíduos em sociedades, pois são esses contratos que estabelecem as normas de conduta ética.

Outro ponto importante que necessita ser considerado é que os contratos e regras se estabelecem de acordo com o estado de natureza dos indivíduos que compõe a sociedade em que os mesmos são estabelecidos. Nesse ponto, há de se considerar dois pontos de vista: em um primeiro ponto de vista, o indivíduo, em seu estado de natureza, coloca como prioridade seu interesse individual sobre o interesse coletivo; em um segundo ponto de vista, o contrário, os indivíduos terão como prioridade o interesse coletivo sobre seus interesses individuais.

Tentarei argumentar que o primeiro ponto de vista é a regra e o segundo, uma exceção à regra. Em situações trágicas, extremas, ou seja, em situações de “exceção” à normalidade, ambos os pontos de vista “saltam aos olhos”, como, por exemplo, nas duas situações abaixo:

  • Durante o lockdown imposto por muitos governos durante a pandemia, as pessoas correram aos supermercados, procurando fazer o máximo de estoque em itens básicos, gerando escassez no abastecimento destes produtos e, assim, provocando a falta dos mesmos nas prateleiras. Nesse sentido, os indivíduos procuraram assegurar seu interesse individual em primeiro lugar, pouco importando o interesse coletivo (se por exemplo iria causar desabastecimento dos produtos comprados em excesso para as outras pessoas);
  • Em tragédias como enchentes por exemplo, vê-se a manifestação solidárias de pessoas em prol daqueles que foram atingidos. Essas pessoas de certa forma, em virtude da tragédia, colocaram o interesse coletivo como prioridade sobre o interesse pessoal (sacrificando-se de certa forma para ajudar o próximo). Tal situação, porém é sutilmente diferente da primeira: neste caso, cada indivíduo solidário tem condições prévias de controlar e determinar o quanto ele irá abrir mão de seu interesse individual para ajudar o coletivo (possivelmente ele o fará até um determinado limite de forma a não se colocar em uma situação de escassez).

Constituo assim a premissa que adoto como ponto de partida:

“Os contratos firmados entre os indivíduos que vivem em sociedade são firmados estabelecendo os limites de convivência de acordo com seu estado de natureza”.

2. Análise pragmática das teorias utilitaristas:

Sob o ponto de vista pragmático, ou seja, na ideia em se adotar uma teoria utilitarista como algo normativo, vamos tomar como exemplo a seguinte: “salvar o maior número de vidas”.

2.1. A aplicação dos princípios utilitaristas em caráter de exceção:

Esta premissa utilitarista é comumente aceita em caráter de exceção, como por exemplo, em pandemias, tragédias etc. Por outro lado, tentarei argumentar, não seriam aceitas em caráter de regra.

Sempre haverá exceções às regras e até aí tudo bem. Isso é uma coisa. Outra coisa é tornar a exceção uma regra, como por exemplo, adotar como norma geral o princípio utilitarista de “salvar o maior número de vidas”.

2.2. A revisão dos contratos firmados:

Será necessário argumentar também que, para normatizar uma nova diretriz é necessária uma revisão dos contratos já  firmados entre os indivíduos.

Para que isso ocorra, só vejo duas formas:

  • de forma autoritária: a prioridade do interesse coletivo sobre o individual é imposta aos indivíduos de uma sociedade mesmo quando o indivíduo, em seu estado de natureza, têm seus interesses individuais à frente dos interesses coletivos;
  • de forma democrática:  a prioridade do interesse coletivo sobre o individual é aceita ou até mesmo proposta pelos indivíduos de uma sociedade quando este, em seu estado de natureza, têm seus interesses da coletividade à frente dos seus interesses particulares.

Os argumentos que defendem a normatização de princípios utilitaristas encontram facilmente objeções, pois são inúmeras as exceções à uma regra genérica, tal como, salvar SEMPRE o maior número de vidas.

Procurarei argumentar que os princípios utilitaristas não poderiam, assim, ser denominados princípios, no sentido de regra geral, pois se aplicam somente em casos particulares. Muitas vezes, nem mesmo os utilitaristas que defendem um determinado princípio aceitariam se submeter ao mesmo se caso a eles fossem aplicados como regra geral.

2.3. O exemplo do plano de saúde:

Para exemplificar usarei o exemplo do plano de saúde. Um indivíduo contrata um plano de saúde, paga por ele. Em troca, espera ter o atendimento prometido contratualmente. Um utilitarista, para adequar o plano de saúde ao princípio de “salvar o maior número de vidas”, necessitaria propor alterações do contrato já firmado, qual seja: “com o objetivo de salvar o maior número de vidas, o atendimento de saúde contratado poderá não ser fornecido nas circunstâncias X”. Planos de saúde são uma das poucas coisas em que o indivíduo paga fazendo questão de não precisar utilizar o serviço contratado – paga esperando não precisar usar -; ao mesmo tempo, ele firma esse contrato com o interesse de justamente para que, quando necessitar de atendimento, ele seja fornecido pela empresa conforme previsto.

Nestes termos, em seu estado de natureza, o indivíduo contemporâneo aceitaria essa “alteração contratual” do seu plano de saúde? Cogitaria a possibilidade de colocar até mesmo sua vida em risco para assim garantir um interesse coletivo? Quem contrataria um novo plano de saúde nestas condições?

2.4. O estado de natureza e os princípios utilitaristas:

Argumentando na defesa de um estado de natureza “hobbesiano”, eu diria que seria difícil até mesmo encontrar um utilitarista que aceitasse naturalmente a proposta de mudança do item 2.3. Neste ponto, é necessário argumentar que o ser humano, em seu estado de natureza atual, é individualista por padrão e solidário por exceção. Desta forma, normatizar qualquer princípio utilitarista em que tenha como prioridade um interesse coletivo à frente do interesse particular dos indivíduos parece ir contra o estado de natureza destes indivíduos que estabelecem contratos entre si para vier em sociedade. 

2.5. Alterações de contrato autoritária ou utópicas:

Por esse motivo defendo a ideia de que a normatização de princípios utilitaristas visando o interesse coletivo, no momento presente, só seria possível de duas formas: autoritária ou, então, democrática (utópica).

Argumento que seriam autoritárias porque não haveria a concordância dos indivíduos da sociedade em estabelecer novas regras em que o interesse individual possa ser privado de alguma forma em prol de um interesse coletivo. Uma das formas de normatização de princípios utilitários coletivos seria, portanto, através de uma imposição dos mesmos aos seus indivíduos por meio de uso do poder de uma autoridade.

Outro meio, seria o democrático. Porém argumento que tal alternativa é utópica, pois democraticamente, no momento presente, os indivíduos não promoveriam uma alteração dos contratos jogando contra seus próprios interesses individuais.

2.6. Conclusões:

Princípios utilitaristas, por princípio, não poderiam por assim dizer ser chamados de princípios, pois à estes se entendem como regra geral. Todavia, haverá também inúmeros casos particulares em que “diretrizes” utilitaristas seriam plenamente aplicáveis. Nestes casos, para o uso mais adequado das ideias utilitaristas, argumento que seria o caso de serem chamadas de diretrizes em vez de princípios.

O utilitarismo de Stuart Mill, segundo a leitura Warburton (2018), parece argumentar algo semelhante em defesa do utilitarismo:

A resposta de Mill para este tipo de objeção era que, ao longo da história da humanidade, as pessoas foram tirando ensinamentos da sua experiência, quanto aos diversos rumos prováveis de diferentes tipos de ação. A solução consiste em estabelecer alguns princípios gerais acerca de quais os tipos de ações que tendem a maximizar a felicidade, em vez de recorrer ao Princípio da Maior Felicidade sempre que tiver de se tomar uma decisão moral. Mill sugere, então, que abordar a vida de forma racional implica adotar princípios gerais em vez de calcular sempre as possíveis consequências. Assim sendo, o utilitarismo de Mill processa-se em duas fases: a primeira é a derivação de princípios gerais assente em fundamentos utilitaristas, passando-se, em seguida, à aplicação desses princípios gerais a casos particulares. (WARBURTON, 2018).

Pode-se entender que, para Mill, o princípio de “salvar o número maior de vidas” deveria ser utilizado como princípio geral a ser seguido, como algo semelhante à “preservar a vida”. “Preservar a vida” seria algo a ser atingido, como por exemplo a felicidade e, assim, resultaria em ações tomadas pelos próprios indivíduos nos casos particulares para atingir esse fim. Não poderia ser, nesse caso, algo que fosse estabelecido como norma, além de apresentar uma diferença fundamental: preservar a vida inclui a própria. Segundo Mill, aplicar os princípios utilitaristas aos casos particulares é diferente de estabelecer estes mesmos princípios como regra geral (sua aplicabilidade necessita ser avaliada caso a caso).

Outro ponto que pretendo desenvolver também é a ideia de que cada indivíduo, em seu estado de natureza, possui um “ponto de virada”. Para uma dada situação, haverá um ponto em que o indivíduo inverterá as prioridades, colocando o interesse coletivo à frente do interesse individual. São nestes tipos de situações que os indivíduos, mesmo em seu estado de natureza, aceitam sob o caráter de exceção, que o interesse coletivo se torna prioridade sobre seus interesses individuais.

 


REFERÊNCIAS

HOBBES, Thomas. Leviatã.

WARBURTON, Nigel. Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Ed. Gradiva, 2007.

WARBURTON, Nigel. Grandes Livros de Filosofia. Lisboa: Ed. Edições 70, 2018.

Críticas ao consequencialismo e ao utilitarismo. WIKI Utilitarismo Ético. Disponível em: link. Acessado em 07/07/2022.

LEITURAS COMPLEMENTARES

MILL, Stuart John. Utilitarismo. Porto: Ed. Porto Editora, 2005.

HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral.

CRISP, Roger. Mill on Utilitarianism. Londres: Routledge, 1997.

GLOVER, Jonathan. Utilitarianism and its Critics. Nova Iorque: Macmillan, 1990.

 

Be the first to comment on "Princípios Utilitaristas: Pragmaticamente autoritários ou democraticamente utópicos"

Leave a comment