FICHAMENTO: Artigo de ZINGANO, Marco. Particularismo Moral e a Ética Aristotélica (2012).

REFERÊNCIA

ZINGANO, Marco. Particularismo Moral e a Ética Aristotélica. Dissertatio [36] 221-252, 2012.

 


RESUMO

Este artigo pretende examinar questões centrais no particularismo moral de Jonathan Dancy a partir de uma comparação de suas principais teses com a ética aristotélica. Embora Dancy não reivindique uma linhagem aristotélica, será argumentado que tal comparação pode ser esclarecedora para o particularismo moral, bem com o para a ética aristotélica, especialmente no que concerne às regras que parecem não admitir qualquer exceção, como a proibição moral de agir com crueldade, ou o assassinato. (ZINGANO, 2012. p.1)

Resumos dos Capítulos:

Introdução

Capítulo I – sobre o particularismo moral em Dancy

Capítulos II, III – sobre o particularismo moral e a ética Aristotélica

Capítulo IV – problemas do particularismo moral na ética Aristotélica

Capítulo V – soluções para os problemas do particularismo moral na ética Aristotélica

Capítulo VI – conclui retomando a ética de Dancy

 


FICHAMENTO : CAPÍTULOS II à V

Sobre Aristóteles


CAPÍTULO II

sobre o particularismo moral e a ética Aristotélica

II-1. Definição da estrutura geral básica da Ética Aristotélica: As generalizações “nas mais das vezes”:

Para a maioria dos comentadores, os preceitos morais em Aristóteles seguem uma estrutura geral básica, que é melhor descrita como generalizações ‘nas mais das vezes’, ou, para mencionar a expressão grega escolhida por Aristóteles, generalizações do tipo ‘hôs epi to polu’. Tal estrutura refere-se a uma espécie de regularidade que carece de necessidade, e está, consequentemente, aberta a exceções. Ela pode ser expressa proveitosamente como ‘a maioria dos F são G’. A maioria dos F são G é compatível com poucos F não são G. As exceções, os Fs que não são Gs, podem algumas vezes serem expressas por sub-regras, as quais, por sua vez, estão abertas à novas exceções. Podemos assim esperar um amplo e, por vezes, vasto complexo de regras e sub-regras.

(ZINGANO, 2012. p.8)

 

II-2. Dos 2 tipos de exceções existentes:

Dois tipos de exceções são assim distinguidas: (i) um primeiro conjunto é composto pelas que podem ser capturadas em novas sub- generalizações (e, dado que as exceções moralmente relevantes não são necessariamente incontáveis, pode-se presumir sub generalizá-las todas); (ii) um segundo conjunto é, entretanto, feito de exceções tais que não são mais assim do que não assim. Essas últimas exceções não seguem um padrão regular; elas são produtos da indeterminação radical que a matéria introduz no mundo sub-lunar. Por isso Aristóteles escreve que:

“algumas coisas acontecem por acaso, e da afirmação e da negação nenhuma é mais verdadeira do que a outra; com outras coisas, nas mais das vezes uma é mais suscetível de ocorrer do que a outra, mas ainda é possível para a outra ocorrer em vez desta.” (De interp. 9 19ª19-22)

Isto é, há dois modos diferentes de não preencher os requisitos da necessidade: ou seguir uma regra ‘nas mais das vezes’, ou ser radicalmente indeterminado, e o último não apenas afasta a necessidade do mundo sublunar, mas também torna as generalizações irredutíveis a um conjunto exaustivo de regras e sub-regras.

(ZINGANO, 2012. p.8-9)

 

II-3. Passagens nas quais Aristóteles propõe o uso das generalizações “nas mais das vezes” para assuntos práticos:

Mas que não deveríamos dar a preferência em todas as coisas para a mesma pessoa é bastante claro; e nós devemos nas mais das vezes devolver o benefício antes que obsequiar os amigos, do mesmo modo que devemos pagar um empréstimo a um credor em vez de emprestar a um amigo.”

(EN IX 2 1164b30-34)

 

generalizações ‘nas mais das vezes’ produziriam sentenças do tipo ‘a maior parte dos F são G’.

 

II-4. Vantagens das generalizações “nas mais das vezes”:

(i) a universalização estrita é evitada, de modo que os preceitos morais podem ser mais facilmente compatíveis com exceções – ou as que possam ser, nelas mesmas, generalizadas em sub-regras ou as que resistem a quaisquer generalizações. Sentenças como ‘sempre dizer a verdade’ ou ‘sempre manter suas promessas’ soam demasiado estritas para serem consideradas seriamente como conselhos práticos bem formulados ou realmente criteriosos. Mas, ‘dizer a verdade nas mais das vezes’ parece bem promissor para uma ética humana;

(ii) insuficientes no sentido de leis universais estritas, regras morais, contudo, nos dão diretrizes gerais que são muito proveitosas na vida diária, estendendo-se de regras práticas a quase-generalizações, como algumas mencionadas nas passagens do tratado da Ética Nicomaquéia sobre a amizade citadas acima. Assim, não há razão para não organizar as ‘regras nas mais das vezes’ em códigos e na legislação, pois servem como um bom gráfico moral para a agência humana; 

(iii) um terceiro ponto que não pode ser ignorado é que as regras morais do tipo ‘a maior parte dos F são G’ são muito similares às leis nas ciências naturais, como Aristóteles as concebe. […] Ações podem ser extremamente complexas e trazem consigo altos níveis de incerteza, ainda que não pareçam diferir radicalmente do que acontece na natureza, conforme a concepção aristotélica de ciência natural. A similaridade entre ambas as esferas, a prática e a teórica (no que se refere às ciências naturais), provavelmente conta como uma razão suplementar para sustentar que a fórmula básica do conselho moral segue o modelo ‘nas mais das vezes’ tão pervasivo nas ciências naturais, pois, desse modo, podemos encontrar uma forma e estrutura única para ambas, dado que elas não parecem diferir substancialmente uma da outra.

(ZINGANO, 2012. p.10)

 

II-5. Das semelhanças e diferenças entre as esfereas práticas e teóricas (no que se refere às ciências naturais):

Zingano destaca que, apesar da complexidade e dos altos níveis de incerteza das ações – que as tornam semelhantes ao fenômenos da natureza – existe uma diferença no que tange às ações práticas. Ele compara o exemplo do “homem grisalho” com o exemplo “busca do prazer”:

‘A maioria dos homens torna-se grisalha’ é não somente verdadeiro estatisticamente, ou não primariamente verdadeiro estaticamente, mas, também, e de modo mais importante, revela algo sobre a natureza dos homens, ser grisalho faz parte de sua natureza. E como isso revela (parte da) natureza do homem, é frequentemente verdadeiro que os homens tornam-se grisalhos.

(ZINGANO, 2012. p.11)

No exemplo acima, a frequência revela algo sobre a natureza que, por sua vez, é causa da frequência. Por outro lado, as ações práticas (morais), não possui essa obrigatoriedade de correspondência. No caso do exemplo da “busca do prazer”:

A maior das pessoas procura prazer, mas uma vida de prazer não é uma vida digna de ser vivida, ou ao menos na perspectiva moral de viver bem. […] Uma norma moral não procuraria prazer em toda a parte, ainda que a maioria dos homens busque o prazer onde estiver disponível.

(ZINGANO, 2012. p.11)

Uma norma prática pode, portanto, ser contrária à uma natureza causa de um efeito não-desejado. Assim, segundo Zingano:

se esperarmos encontrar uma razão para a frequência não ser um sinal de normatividade, nós indicamos que o mesmo modelo, aproximadamente, deve ser o caso para assuntos teóricos e práticos. E isso é precisamente o que Aristóteles faz.

(ZINGANO, 2012. p.12)

Em outras palavras segundo Zingano, para Aristóteles no modelo para os assuntos teóricos (ciências naturais), a frequência revela a natureza (razão) e a natureza (razão) justifica a frequência. Esse modelo se aproxima assim do modelo dos assuntos práticos (ações morais), na medida em que “podemos esperar encontrar uma razão para a frequência não ser um sinal de normatividade”. 

Ou seja, para os assuntos práticos (ações morais) a razão natural pode justificar uma frequência normativa negativa: algo que é da natureza, porém não deve ser feito.

Podemos, dessa forma, manter a ideia de uma similaridade substancial entre normas práticas e leis naturais.

(ZINGANO, 2012. p.12)

 

II-6. Que o discurso prático deve ser dado em linhas gerais e não precisamente:

Zingano apresenta uma diferença entre os escritos, no que se refere ao discurso do filósofo e do homem prático. Ao primeiro a leitura usualmente aceita é:

“deve ser assumido que agir de acordo com a reta razão é um princípio comum.” 

porém, textos de outros manuscritos podem ser interpretados na visão do homem prático:

“O significado agora é antes a proposição que se faz sobre o que devemos fazer, isto é, o conselho ou ordem proferido pelo prudente ou algo mais concernente a assuntos práticos.”

parece assim, que existe de ordem prática, um proposição anterior, que antecede o agir de acordo com a razão, qual seja, o questionamento do que deve ser feito.

Uma interpretação diferente dos manuscritos indicam, portanto segundo Zingano, que o discurso prático deve ser dado em linhas gerais.

 

II-7. Dos 2 tipos de sentenças proferidas: geral e particular (à exemplo da medicina e da navegação)

Há outro ponto que merece ser examinado aqui. Na passagem citada acima, Aristóteles tem em mente dois tipos de sentenças ou logoi: uma concepção geral e uma particular. De acordo com os nossos resultados, uma está habilitada a afirmar que há dois tipos de sentenças práticas que os homens produzem, uma geral e outra particular. Aristóteles afirma que falta precisão às proposições gerais, e que, portanto, devem ser expressas em linhas gerais, e que até mesmo as proposições particulares são mais carentes de exatidão, já que essas últimas não se subordinam a qualquer arte ou conjunto de preceitos, pois os próprios agentes devem, em cada caso, considerar o que é apropriado à ocasião, como também ocorre na arte da medicina ou da navegação. As últimas, desse modo, não se subordinam a nenhuma arte ou conjunto de preceitos. A palavra, parangelia, é um hapax em Aristóteles; significa a intimação de alguém para ir a um tribunal, ou, como é o caso aqui, um conjunto de regras ou preceitos. Outra vez, o ponto é endereçado primeiramente não ao filósofo enquanto escreve sua filosofia moral, mas ao homem prático, quando ele argumenta sobre o que deve fazer

(ZINGANO, 2012. p.15)

 

II-8. Da distinção entre demonstrar a verdade (ciência) e indicar a verdade (homem prático):

“Ora, as ações nobres e justas, as quais são investigadas pela ciência política, exibem muita variedade e flutuação, de modo que podem ser pensadas como existindo somente por convenção, e não por natureza. E os bens também exibem uma flutuação similar, porque trazem prejuízo para muitas pessoas; anteriormente, homens foram arruinados em razão de sua riqueza, e outros em razão de sua coragem. Devemos nos contentar, por conseguinte, em falar de tais assuntos e com tais premissas para indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais, e em falar sobre coisas as quais são somente nas mais das vezes verdadeiras e com premissas do mesmo gênero para alcançar conclusões do mesmo tipo.” (EN I 3 1094b14-22)

Com base no texto de Aristóteles acima, Zingano conclui:

Novamente, encontramos dois tipos de logoi nessa passagem. Em um deles, a verdade é somente indicada; no secundo, há premissas e silogismos, e consequentemente conclusões derivadas dos silogismos, mas ambas, premissas e conclusões, devem ser afirmadas em generalizações “nas mais das vezes”. No primeiro caso, indicar a verdade encontra-se claramente em oposição a demonstrar a verdade, que é produto da ciência, a qual procede por demonstração estrita, e cujas premissas são necessárias. Indicar a verdade parece referir-se ao ato de exibir a verdade (prática) caso a caso, de apontá-la em cada situação (prática). Nós estamos assim lidando com opostos, uma coisa é demonstrar cientificamente um ponto, outra é indicar a verdade prática. Entre esses opostos encontram-se as proposições ‘gerais’.

(ZINGANO, 2012. p.16)

Ou seja, as proposições gerais, do tipo “nas mais das vezes” (a maior parte dos F são G) são utilizadas com propósitos opostos. Um para demonstrar cientificamente a verdade e outro para indicar a verdade prática.

 

II-9. As duas classes de preceitos morais: as regras do tipo “na mais das vezes”, bem como decisões particularistas (à exemplo da medicina e da navegação):

Nós podemos, então, encontrar lado a lado duas classes de preceitos morais: regras do tipo ‘nas mais das vezes’, bem como decisões particularistas. Ora, Aristóteles afirma enfaticamente que todos os agentes devem, em cada caso, considerar o que é apropriado para a ocasião. Essa é uma alegação particularista forte. Aristóteles não está dizendo que sempre temos de levar em consideração as circunstâncias a fim de aplicar corretamente uma regra (a qual teria sido dada independentemente daquelas circunstâncias), mas mais propriamente que as decisões tomadas pelo agente estão profundamente inscritas nessas circunstâncias, de modo que elas são válidas somente para aquelas exatas circunstâncias, a menos que outras razões nos permitam ver para além das situações que supostamente são determinadas caso a caso. Esse ponto é realçado em muitas outras passagens na ética aristotélica.

(ZINGANO, 2012. p.16)

 

II-10. De que o particularismo moral deriva da doutrina da mediedade:

Na verdade, o particularismo moral, bem como suas proposições hic et nunc, derivam diretamente da celebrada, embora disputada, doutrina da mediedade. Muitas das questões levantadas contra essa doutrina dependem da acusação de que ela é basicamente quantitativa. Mas, como foi mostrado recentemente, se uma leitura primariamente qualitativa é adotada, muitas dessas objeções perdem uma quantidade considerável de sua cogência. Em qualquer caso, o ponto principal dessa doutrina é que decisões devem ser tomadas caso a caso, de modo que nosso melhor critério para ver a verdade em assuntos práticos é seguir o juízo dos que possuem sabedoria prática, pois eles podem ver onde ela se encontra, enquanto que as pessoas comuns são seguidamente enganadas pelas aparências. Essa é uma reiterada tese aristotélica: a virtude reside em um meio, isto é, é encontrada em algum lugar entre dois extremos, mas onde a virtude está exatamente somente pode ser determinada pela percepção moral, pois temos de levar em consideração todas as circunstâncias que circundam a ação. Essas decisões permanecem cerca das circunstâncias, são concebidas para responder a elas, e não vão além delas, a menos que outras razões se apliquem. A doutrina da mediedade deve assim fornecer uma base teorética para a reivindicação particularista em assuntos práticos, atribuindo a ela um lugar proeminente na ética aristotélica.

(ZINGANO, 2012. p.17)

Assim, segundo Zingano, a doutrina da mediedade aplica-se, assim, somente as decisões particularistas (não para a regra “a maior parte dos F são G”)

 

CAPÍTULO III

sobre o particularismo moral e a ética Aristotélica

III-1. Dos 3 modelos para a Linguagem Moral:

Zingano conclui acerca da existência de 3 modelos para a linguagem moral na ética de Aristóteles:

 

Então parece como se existisse três modelos para a linguagem moral:

(a) generalizações aberta às exceções, do tipo ‘nas mais das vezes’;

(b) universalizações estritas, que não admitem exceções; e

(c) decisões particulares, feitas sob medida para cada situação em que o agente se encontra.

(ZINGANO, 2012. p.21)

 

III-2. O problema segundo Zingano reside na incompatibilidade entre (a) e (c):

“A maioria dos F são G” em (a), parece compatível com “Poucos F não são G” em (c).

Entretanto existem 2 reivindicações particularistas e, em uma dessas, que o autor denomina de “interpretação forte”, existe incompatibilidade de (c) com (a).

 

III-3. Reivindicação Particularista – Interpretação Forte:

Os próprios agentes devem, em cada caso, agir como guiados pelas circunstâncias, buscando pelo que é o apropriado para aquela ocasião. Aristóteles também diz que as ações estão na classe dos particulares (EN III 1 1110b6), ou que a ‘prática é concernente com os particulares’ (EN VI 7 1141b16), ou, novamente, que é impossível que todas as coisas sejam estipuladas precisamente, uma vez que as ações dizem respeito aos particulares (Pol. II 8 1269a11-12). No mesmo estilo, agir bem consiste em agir de acordo com as circunstâncias de um jeito que o resultado seja fundamentalmente restringido por e dependente dessas circunstâncias.

(ZINGANO, 2012. p.18)

 

Mas a reivindicação de normatividade é incompatível com o que o exame particularista requer, a saber, que ele depende das circunstâncias de se G ou não-G será o caso. Para ver isso, é conveniente reformular a reivindicação particularista como uma declaração não mais esta que aquela, pois não existe nenhuma norma fora das circunstâncias particulares na qual elas serão determinadas como G ou não-G. Isto é precisamente o que é presumido pela interpretação forte: fora das circunstâncias, F não é mais G que não G. Tal indeterminação explica porque isto parece tão hostil para as generalizações nas mais das vezes. Assim, ‘a maioria dos F são G’ é compatível com algumas exceções, mas não é compatível com F não sendo mais G que não G. Pois, se esse fosse o caso, isso seria uma acidente cósmico que a maioria dos F são G.

(ZINGANO, 2012. p.18-19)

Em outras palavras, a incompatibilidade existe entre o caráter normativo, que na visão particularista depende das circunstâncias (sendo indeterminado fora delas) e as generalizações “nas mais das vezes”, que por sua vez admite exceções. Assim, as generalizações em (a) – “A maioria dos F são G” – parecem logicamente compatíveis com as decisões particulares em (c) – “Poucos F não são G”, porém, por outro lado, é incompatível com o fato de que, fora das circunstâncias que determinam a normatividade da ação, “F pode ser tanto G quanto não G”.

 

III-4. Reivindicação Particularista – Interpretação Fraca:

 

[…] para algumas situações (poucas), a decisão deve ser tomada de acordo com as circunstâncias, uma vez que nenhuma lei geral a recobre. Esta interpretação é compatível com as generalizações ‘nas mais das vezes’, pois só diz que poucos F não são G, o que está de acordo com dizer que a maioria dos F são G. Uma passagem na EN V, 10 vai nessa direção. Investigando sobre a natureza do equitativo, Aristóteles escreve:

“Por isso, o equânime é justo, e melhor que um tipo de justiça – não melhor que a justiça absoluta, mas melhor do que o erro que provém da incondicionalidade da afirmação. E isso é a natureza do equânime, uma correção da lei onde ela é deficiente devido à sua generalidade [dia to katholou]. De fato, isso é a razão por que todas as coisas não são determinadas pela lei, em função de que sobre algumas coisas é impossível estabelecer uma lei, de modo que um decreto é necessitado, pois quando a coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar as molduras de Lesbos; a régua adequa-se à forma da pedra e não é rígida, da mesma maneira que o decreto é adaptado aos fatos.” (EN V 10 1137b24-32)

A lei é deficiente devido ao seu traço katholou – que significa, sendo um logos e um logos sendo intrinsicamente universal, que as leis não podem ser senão declarações gerais, sendo esta a razão do porquê algumas poucas ações caírem fora do seu domínio. Mas essas ações são poucas (1137b28). E sendo poucas elas não são uma ameaça às generalizações que admitem exceções, antes ao contrário: tais generalizações naturalmente aceitam algumas exceções. Assim, Aristóteles está realmente propondo dois esquemas: ou (a) umas poucas exceções, compatíveis com as generalizações ‘nas mais das vezes’; ou (b) decisões particulares, aparentemente contrárias a qualquer codificação, uma vez que elas extraem seu poder das circunstâncias em que elas ocorrem. Algumas vezes Aristóteles ressalta (a) e sua compatibilidade com as leis, mas na maior parte do tempo ele ressalta (b) e sua incompatibilidade com as leis. De fato, o particularismo é disseminado na ética aristotélica, pois sempre que ele pretende dar um esboço geral do agir bem ou do que é agir virtuosamente, Aristóteles destaca o aspecto particularista, que é incompatível com generalizações. Ainda assim, é verdade que em algumas outras passagens ele nos proporciona uma interpretação mais fraca, que é compatível com generalizações.

(ZINGANO, 2012. p.20)

 

III-5. Quanto as Universalizações estritas, que não admitem exceções: (a)

Nós também encontramos universalizações estritas na ética aristotélica, em que nenhuma exceção pode ser moralmente admitida. Aristóteles nós dá alguns exemplos na Ethica Nicomachea, Livro II: assassinato, roubo, adultério, entre as ações; malevolência, impudicícia e inveja, entre as emoções ou sentimentos. Não há nenhuma circunstância com a qual alguém teria cometido o assassinato correto, ou assassinado a pessoa certa, ou no momento certo, pois cometer um assassinato é totalmente inaceitável de um ponto de vista moral, sejam lá as circunstâncias sob as quais um ato foi realizado. Aqui está a passagem decisiva:

“Nem toda ação admite mediedade, tampouco toda emoção, pois algumas são denominadas em imediata conjunção com a vileza, como a malevolência, a impudicícia, a inveja e, quanto às ações, o adultério, o roubo, o assassinato. Com efeito, todas estas e as demais são censuradas por serem elas próprias vis e não por serem vis seus excessos ou faltas. Não há jamais como acertar a seu respeito, mas sempre se erra; tampouco o bem ou o não bem a respeito destas coisas está no praticar adultério com a mulher com quem, quando ou como se deve, mas o simples cometer qualquer um deles é errar.” (EN II 6 1107a8- 17; trad. Marco Zingano)

Aqui, novamente, elas são poucas. Todavia, sua universalidade, por um lado, contrasta com as generalizações ‘nas mais das vezes’ (o anterior não admite exceções, enquanto o último está naturalmente aberto às exceções), e, por outro lado, com as decisões particularistas (em que o contraste vai ao seu zênite).

(ZINGANO, 2012. p.20)

 

CAPÍTULO IV

problemas do particularismo moral na ética Aristotélica

Se isso é correto, e se tem que contar com uma estrutura tripartite (os 3 modelos da linguagem moral propostos no capítulo anterior), a questão agora é: a linguagem moral em Aristóteles apresenta uma imagem coerente, ou deveríamos antes falar de um tipo de colcha de retalhos, cujos principais elementos são aquelas três camadas já mencionadas?

(ZINGANO, 2012. p.20)

 

A doutrina da mediedade dá apoio ao particularismo moral em Aristóteles, como já vimos. A coisa correta a fazer recai em algum lugar entre os extremos, e determiná-lo depende de uma sensibilidade radical sobre as circunstâncias que envolvem a ação, de forma que o juízo prático varia com e é constituído por elas. Mas agora nós vemos que alguns juízos práticos são universais, do tipo ‘assassinar é errado’. E a razão que Aristóteles dá para isso é que eles são analiticamente verdadeiros (pois, como ele diz, seus nomes já implicam maldade).

 

Mas como reconciliar essas tautologias práticas com a principal ideia por trás da doutrina da mediedade, a saber, que um juízo prático é crucialmente dependente das circunstâncias e não pode ser determinado anteriormente às circunstâncias que circundam a ação? Aristóteles coloca maior peso em sua doutrina da mediedade, mas desde os tempos modernos, nos tornamos cada vez mais receosos que tal doutrina seja vazia, pois ela apenas diz que não se deve agir muito ou pouco. Agora, como agir virtuosamente é agir de acordo como o meio termo, e agir viciosamente é tanto exagerar quanto subutilizar uma coisa, esta celebrada doutrina parece ser apenas uma tautologia – e como tal não pode deixar de ser vazia. Então, mais uma vez, se encontra um sinal de incoerência no cerne da ética aristotélica: a doutrina da mediedade é presumida para nos dizer algo de substancial sobre o agir virtuosamente, mas de fato ela apenas expressa uma tautologia.

 

Como essa doutrina tem outras consequências disputáveis, ela não está anunciando a sentença de morte para o meio termo dourado – e assim também para a reivindicação particularista aristotélica, como ela estaria baseada na doutrina da mediedade? Esta é a postura provocativa que Jonathan Barnes tomou:

“In the Ethics we can, I think, see Aristotle struggling with the logic and the sense of the Doctrine of the Mean: he becomes explicitly aware of its practical futility; and his discussions perhaps indicate an increasing disenchantment with its conceptual utility. Had Aristotle written a third ethical treatise, this celebrated Doctrine would not, I conjecture, have appeared in it.”

Na Ética podemos, penso eu, ver Aristóteles lutando com a lógica e o sentido da Doutrina do Meio: ele se torna explicitamente consciente de sua futilidade prática; e suas discussões talvez indiquem um crescente desencanto com sua utilidade conceitual. Se Aristóteles tivesse escrito um terceiro tratado ético, essa célebre Doutrina não teria aparecido nele.

 

Capítulo V

soluções para os problemas do particularismo moral na ética Aristotélica

 

Se tudo isto é correto, dois problemas devem ser tratados imediatamente: primeiro, como harmonizar generalizações e particularismo em uma interpretação forte; segundo, como colocar juntos universalizações estritas e, novamente, particularismo em um sistema coerente.

Na parte restante desse artigo, eu apenas examinarei o segundo problema, que, num certo sentido, é o mais urgente, pois não apenas nos dá a impressão de incoerência, mas nos transmite um forte sinal de contradição. Isto será finalmente ligado ao problema do particularismo, como eu o apresentei no início desse artigo.

(ZINGANO, 2012. p.23)

V-1. Solução do recurso semântico:

Uma das soluções apresentadas por Zingano é recorrer à um recurso semântico: Importante lembrar que Aristóteles enfatiza os elementos semânticos como quando declara que algumas ações são então nomeadas de forma que elas já implicam maldade (1107a9-10).

Tome por exemplo o prazer sexual. Agir licenciosamente em questões sexuais é qualitativamente o excesso cujas condições quantitativas podem variar, mas isso sempre será errado, pois isso é um dos extremos do comportamento sexual, e é visto como tal independentemente daquelas condições e circunstâncias envolvidas em suas variações quantitativas. Agora chame tal ação, mesmo que ela ocorra em relação a uma mulher casada, adultério; disso seguirá que sempre será errado cometer adultério. Se pode, então, criar uma proibição estrita, tal que qualquer adultério seja errado, independentemente das circunstâncias.

(ZINGANO, 2012. p.25)

No exemplo acima, o recurso semântico concentra-se na delimitação de um vício a fim de possibilitar a criação de uma proibição estrita, ou seja, que caso ocorra, independa das circunstâncias. Aspásio, comentador antigo peripatético, ressalta outra diferença, onde ainda assim: não necessariamente ter relações sexuais com mulher casada configura adultério, da mesma forma que nem sempre o ato de matar uma pessoa pode ser considerado assassinato.

Vale a pena examinar como o adultério foi tratado pelos comentadores antigos. Alguns deles sentiram-se desconfortáveis sobre o adultério ser estritamente proibido, pois pode ser o caso em que cometer adultério é louvável, como, por exemplo, quando ele é cometido com a esposa de um tirano a fim de obter informação secreta dela, de forma a poder libertar toda a cidade da tirania. Aspásio sabia desse argumento. Eis o que ele escreve contra essas pessoas:

“Não devemos ser confundidos por aqueles que afirmam que alguns adúlteros são louváveis, por exemplo, se alguém seduz a esposa de um tirano e, ficando perto dele deste modo, mata o tirano e liberta o país, pois isso não é adultério, mas antes o que o adultério implica aqui, pela palavra, devassidão, sendo superado pelos prazeres, e iniquidade. Da mesma forma, também, matar alguém de qualquer modo não é chamado assassinato: alguém pode matar uma pessoa justamente e meritoriamente, por exemplo, um inimigo saqueador. Mas a palavra ‘assassinato’ é compreendida como matar injustamente e contra a lei.” (50, 2-9; tradução para o português a partir da tradução inglesa de Konstan).

Aspásio plausivelmente se refere a um mecanismo semântico a fim de manter a letra do texto aristotélico, segundo o qual o adultério não recai sob nenhuma das circunstâncias em que ele poderia ser moralmente aprovado. O mesmo truque é aplicado ao assassinato: há o ato de matar justamente, como matar um saqueador inimigo, mas assassinar é um ato de matar caracterizado negativamente, a saber, matar alguém injustamente e ilegalmente. No caso do adultério, isto implica luxúria, de forma que ter relações sexuais com a esposa de um tirano a fim de salvar o país não conta como um caso de adultério.

(ZINGANO, 2012. p.26)

V-2. Sobre ações que não aceitam meio-termo:

Mas este mecanismo semântico é realmente satisfatório? Pode-se ter algumas dúvidas a esse respeito. Isto parece funcionar bem com o adultério, o que é compreensível, pois vemos algo de errado com a proibição do adultério por completo, uma vez que há algumas circunstâncias em que pode ser moralmente aceitável fazer sexo com uma mulher casada. Mas, ao invés disso, pensemos no caso de estupro. Ele seria apenas outro caso de excesso na ânsia por desejo sexual, exceto que tem em seu próprio nome implicado sua maldade, como um mecanismo pedagógico que as sociedades usam para alertar seus cidadãos contra alguns delitos? Isto não parece uma questão simples. Aristóteles escreve que nem toda ação nem toda paixão ou emoção admite um meio termo (1107a8-9). Em seguida, ele acrescenta, como vimos: “pois algumas têm nomes que já implicam maldade.

(ZINGANO, 2012. p.27)

 

Suponho que Aristóteles estava insinuando tal ponto ao afirmar que algumas ações e emoções não admitem mediedade, mas que devem ser banidas completamente. É importante notar que essas ações e emoções produzem proibições estritas ou interdições absolutas.

(ZINGANO, 2012. p.29)

V-3. Sobre Universais positivos e negativos:

Agora, de um ponto de vista lógico, não há diferença relevante entre um universal negativo e outro positivo; no entanto, parece haver uma importante diferença de um ponto de vista moral. Em um artigo bem conhecido sobre dilemas morais, E. J. Lemmon escreve:

“A man may know that he ought to tell the truth, and do so, because he holds as a moral principle that one should always tell the truth – a slightly unrealistic example, since moral principles tend to be prohibitive rather than compelling: a better example would be that of a man who knows he is not to commit adultery with a certain woman, and does not do so, because he holds it to be a moral ruling that one should at no time commit adultery”. (LEMMON, 1962, p. 139-140)

E. J. Lemmon não está falando aqui do que eu chamei de fronteiras da moralidade, mas está apontando para uma diferença moral importante entre regras afirmativas universais e estritas proibições negativas. Aristóteles não endossa a anterior22, mas aceita a última. E ele aceita a última porque, como proibições universais, ou mandamentos negativos, elas traçam os limites da moralidade: ou você está dentro, e então você deve procurar pela resposta moral correta para sua situação, ou você está fora e, então, a alteridade é subserviente ao seu egoísmo. É por isso que são negativas, e absolutas: não há comunicação entre os dois lados do ponto de vista moral.

(ZINGANO, 2012. p.30)

 

#\o/ : Esse ponto me parece extremamente relevante. Afirmações universais positivas não fazem sentido, pois a punição, que é necessária, se dá quando no não-cumprimento da ação. Exemplo: “Deve-se pagar impostos”. Mas a punição é atribuída quando os impostos não são pagos. Assim, parece que uma afirmação universal positiva soa como uma diretriz moral, enquanto que a negativa se encarrega da normatividade. (Ubíracles).

 

Capítulo VI

por último, mas não menos importante, retoma J. Dancy

 

Em certo sentido, a razão padrão (default reason) de Dancy é exatamente este tipo de compromisso, isto é, ela apenas abre espaço para alguns princípios em ética, mas a moralidade basicamente equivale a uma decisão caso a caso. E como tal, a moralidade não requer tal suprimento de princípios servindo de fundamento.

Penso que se nós retornarmos a Aristóteles, estaremos em uma melhor posição para ver por que e como qualquer sistema moral depende de um suprimento de regras universais. Na verdade, essas regras têm uma natureza peculiar. Elas são todas proposições universais negativas. Como mandamentos universais negativos, elas funcionam como proibições estritas. Como proibições estritas, elas traçam as fronteiras da moralidade. O que se deve fazer quando se está dentro desses limites não é determinado pelos mesmos – para Aristóteles, é tarefa do homem prudente determinar o que é a coisa correta a fazer, pois o homem com sabedoria prática leva em conta as circunstâncias em torno da ação, em uma forma tipicamente particularista. Mas o particularismo não pode funcionar sem que essas fronteiras tenham sido previamente traçadas em linhas (mais ou menos) espessas, não permitindo nenhuma exceção – e é por isso que ele depende crucialmente do suprimento de tais mandamentos negativos.

(ZINGANO, 2012. p.32)

 


REFERÊNCIAS

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