Fichamento: Sarah Broadie: Aristóteles e a Ética Contemporânea

REFERENCIAS

BROADIE, Sarah. Aristóteles e a ética contemporânea (In:Aristóteles e a ética à Nicômaco / Richard Kraut … [et al.] ; tradução de Alfredo Storck … [et al.]. – Porto Alegre : Artmed, 2009).

Sarah Broadie: Professora na Universidade de St. Andrews. Escreveu os seguintes livros: Nature, Change and Agency in Aristotle’s Physics (1984), Passage and Possibility: A Study of Aristotle’s Modal Concepts (1984), Ethics with Aristotle (1991), bem como a introdução e o comentário de Nicomachean Ethics, (2002), traduzido por Christopher Rowe.


RESUMO

 

EPISTEMOLOGIA ÉTICA, REALISMO ÉTICO

Aristóteles, como todos sabemos, fala da pessoa virtuosa, a pessoa com sabedoria prática (phronesis), como a “medida” ética nas situações particulares que se apresentam a ela (EN III.4.1113a29-33). Muitos pensaram que, ao dizer isso, ele estava querendo dizer que o phronimos é determinante, no sentido de realmente constituir (ou “construir”) a verdade nas questões éticas particulares. Não penso que esta seja a ideia de Aristóteles. É evidente que ele vê o phronimos como um bom guia para todos nós. Para obter o benefício desse guia, não precisamos (como muitas vezes é exigido) ser capazes de reconhecer, de maneira independente, o phronimos. Para fazer isso com certeza, temos que ser phronimoi nós mesmos; e, assim sendo, não precisamos de nenhum phronimos externo.

Todavia, estou certa disso, Aristóteles coopera com a experiência pessoal do phronimos de formar juízos éticos e com a experiência daquele que, sendo menos maduro, obtém seus conselhos. Para o phronimos que está exercendo a sua atividade, considerando como reagir a uma determinada situação, seria como se ele estivesse buscando alguma resposta que, em certo sentido, está “lá”. Em outras palavras, se ele forma seus juízos instantaneamente, a discriminação, ainda que óbvia, apresenta a si mesma como o que seria correto fazer, embora ele não tenha reconhecido isso. Ele se vê como possivelmente cometendo erros e, sem dúvida, como os tendo cometido no passado. E o conselho que dá aos outros não são apenas prescrições, mas implica explicações: ele diz por que razão isto é melhor do que aquilo. Aqueles que ouvem tais explicações as apreendem logo que são aduzidas, podendo ver, à luz daquelas razões, que a ação prescrita é apropriada. Através de tal interação, eles desenvolvem seu próprio potencial como phronimoi. (Eles devem confiar, nesses casos, que o phronimos considerou todos os fatores relevantes.) Aqueles que aceitam ser guiados pelo phronimos chegam às respostas certas que estavam “lá” e em relação às quais eles podem – e, por si mesmos, era isso o que aconteceria – enganar-se.

Aristóteles não explica a verdade ética como aquilo que o phronimos seguramente apreende: ele explica o phronimos como apreendendo seguramente a verdade ética. Por vezes, ele fala dessa apreensão como se fosse uma espécie de acesso perceptivo (por exemplo, EN VI.12.1144a 2-9-b1). Um filósofo moderno de não muito tempo atrás seria impelido a perguntar: isso significa que Aristóteles postula uma faculdade especial de intuição ética, um sentido moral? Bem, se for assim, esta seria uma faculdade desenvolvida através de um certo tipo de hábito. Mas qual seria o ponto em postular mais uma faculdade além das qualidades do caráter e da inteligência prática, já possuídas pela pessoa virtuosa?

A ansiedade é ressaltada com o pensamento de que, se há conhecimento ético, as propriedades e relações conhecidas através dele são metafisicamente “bizarras” (Mackie, 1977, p. 38-42). Como pode realmente haver tais entidades no mundo e como, se elas existem, podem ter um impacto sobre nós apenas em virtude do fato de que tivemos uma certa educação que resultou em uma certa espécie de caráter?

A resposta moderna clássica a tais preocupações tem sido a de rejeitar completamente a ideia de verdade ética: a aparência de uma factualidade ética é a “projeção” que fazemos de nossas atitudes ou de nossos sentimentos sobre objetos que, em si mesmos, são vazios de qualidades éticas. No despertar dessa opinião, são feitos variados esforços para garantir a objetividade dos juízos éticos que rejeitam entidades “bizarras” e a faculdade misteriosa do conhecimento ético. Há teorias que admitem a objetividade sem a verdade, mas há também teorias “cognitivas irrealistas” que reconhecem que há verdades que não correspondem a nenhuma realidade. Mas como pode ser o caso de Aristóteles não se incomodar com as preocupações que nos conduzem hoje até esses caminhos ou, ao menos, a caminhos similares? Não quero dizer com isso que lhe falte seriedade ao tratar de vários argumentos antigos em favor do relativismo ou anti-objetivismo éticos. Mas aqueles argumentos não ativam o pensamento de que há algo de ontologicamente monstruoso sobretudo em relação às realidades éticas (o que seria o caso mesmo se todos os seres humanos tivessem uma única cultura). Nesse sentido, o nosso ato de conhecê-las seria um princípio misterioso: tudo isso por comparação com algum tipo de realidade que os filósofos sentem como “não bizarra”. Este é um pensamento essencialmente moderno.

(BROADIE, p.319-321)

 

DECIDINDO O QUE É CERTO

Do tópico da postura metaética aristotélica versus diversas posições modernas, passo agora a comparações que se encontram sob o rótulo “ética normativa”. O que a Ética Nicomaqueia de Aristóteles diz que devemos fazer e o que a obra oferece como guia para tomar decisões? Para responder a isso, alguma exegese é necessária.

Em especial, o que distingue o pensamento arquitetônico prático do pensamento de tipo básico é que o último, em qualquer momento, aceita o seu conjunto particular de circunstâncias sem muita análise para decidir como melhor se arranjar a partir delas. À luz dessa distinção – a qual fornece uma diferença genérica entre dois tipos de pensamento prático –, é pouco elucidativo contrastar o pensamento de um (ou de poucos) e o pensamento da maioria. É por isso que Aristóteles chama esse pensamento de “político” mesmo quando é o caso de indivíduos considerando que caminho seguir em suas vidas individuais (EN I.2.1094b7-11). “Político” aqui significa arquitetônico.

(BROADIE, p.322)

Em certo nível, Aristóteles oferece uma resposta completa, clara e unificada à questão “O que eu devo fazer?”. Se a questão é colocada a partir da perspectiva arquitetônica, a resposta é dada em termos de um objetivo a ser alcançado, um bem a ser realizado – seja para uma pessoa, poucas ou muitas, seja para si mesmo ou para os outros – e o quadro desse bem é desenhado na EN. A performance arquitetônica, boa ou má, deve ser julgada considerando-se o seu objetivo, assim como a performance médica é julgada considerando-se o objetivo da saúde. Entretanto, para o nível básico da prática cotidiana, Aristóteles não oferece nenhuma resposta geral e não pensa que alguma resposta útil possa ser oferecida por ele (EN II.2.1104a1-10, citada aqui no posfácio).

Aristóteles não tenta, exceto na esfera da justiça especial, elucidar os princípios da boa ação. Ele não oferece regras de conduta, nem as classifica. Tampouco tenta subsumir algumas regras a outras ou reduzir muitas regras a poucas ou a uma só. Em suma, no nível cotidiano, exceto nas áreas da justiça distributiva e corretiva, Aristóteles não oferece nenhuma teoria para guiar as ações/decisões éticas.

Ele não é um consequencialista e, em particular, não é um eudaimonista. Ele tem predileções deontológicas pelo senso comum, mas não demonstra desinteresse em trabalhá-las em um sistema. E, assim como ela é, a sua deontologia não envolve um ataque contra alguma teoria alternativa. Observações específicas deixam claro que ele não “fundamenta o certo no bem” (nem, como vimos, no bem supremo), mas isso nunca é formulado em uma posição geral. Ele não é tampouco – e isso deve ser dito – um “ético das virtudes” moderno, ou seja, um filósofo que define a ação correta ou adequada como a ação da pessoa virtuosa (ou corajosa, moderada, temperante, justa, etc., dependendo do caso). Ao contrário, Aristóteles explica a virtude de alguém e as próprias virtudes como disposições para as ações e emoções corretas e apropriadas (em relação às pessoas corretas, no momento apropriado, na quantidade apropriada, etc.), porém jamais propõe estabelecer um conjunto de regras às quais essas respostas, de maneira geral, se conformariam. Igualmente mitológica é a opinião de que, por exemplo, segundo Aristóteles, o agente corajoso age conforme uma regra que diz “a coragem exige que alguém aja assim e assim”.

(BROADIE, p.324)

 

sIstEMAtIzAR os PRIncÍPIos dA condutA cotIdIAnA?

Aristóteles não fornece nenhuma ética normativa básica e não se mostra nem um pouco preocupado com a falta de um sistema aqui. Isso nos dá algo em que pensar. É explícito que ele não produz a espécie de posição que uma tradição moderna esperaria como o principal resultado de uma ética filosófica – e ele não está se lamentando!

A justiça e o entendimento mútuo requerem mais formalização – e o filósofo pode ser ideal para realizar essa tarefa. Mas essa não é uma tarefa de purificação ou ratificação que de alguma forma confere uma autoridade aos princípios que lhes falta intrinsecamente. Trata-se de fornecer aos agentes práticos o que eles precisam para a intercomunicação ética quando seus recursos prévios e locais não são mais adequados para todas as suas interações com os outros.

(BROADIE, p.326)

 

POSFÁCIO

Aristóteles recusa-se a oferecer regras para a conduta cotidiana excelente. Em vez disso, ele espera proporcioná-las indiretamente, enfatizando o papel da educação em sua formação e a importância do caráter e da inteligência em situações particulares. Podemos facilmente ter a impressão de que a filosofia de Aristóteles não oferece nenhuma assistência prática ao agente cotidiano no que diz respeito à ação particular. (O agente é classificado dessa forma para contrastar com (a) o agente arquitetônico ou político e (b) com o agente cotidiano excelente considerado simplesmente como um produto da educação, isto é, como portador de um conjunto de disposições éticas. O agente arquitetônico tem claro o objetivo arquitetônico correto e o produto da educação será obtido por ele por ter despontado à luz desse objetivo.) Ora, tal impressão é inevitável se reconhecemos que não há meios pelos quais a filosofia possa realmente ajudar na ação cotidiana, a não ser proporcionando regras filosoficamente polidas que nos digam o que fazer. Sob essa afirmação, quer acreditemos ou não na utilidade prática de tal conjunto de regras, explicamos a afirmação aristotélica de que ele não tem nada a oferecer na medida em que entende a filosofia como completamente incapaz de ajudar na prática cotidiana.

Para Aristóteles, isso não tem problema algum, uma vez que ele pretende se dirigir apenas a pessoas que, em um nível cotidiano, saberiam por si mesmas, de um modo ou de outro, o que fazer. Entretanto, isso não é absolutamente o que Aristóteles tem em mente. Eis como ele estabelece a impossibilidade de fornecer regras:

Uma vez que a presente empreitada não se faz em vista da teoria, como são as nossas outras (pois não estamos investigando o que é a virtude em vista de conhecê-la, mas a fim de nos tornarmos bons, dado que de outro modo não haveria nenhum benefício em estudá-la), precisamos investigar os assuntos relacio nados às ações, isto é, como devemos agir; como dissemos, nossas ações também são responsáveis pelo fato de termos disposições de certo tipo. Ora, que se deva agir de acordo com a correta prescrição [kata ton orthon logon] é uma opinião partilhada – consideremo-la como uma afirmação básica. Haverá uma discussão sobre isso adiante (…) Antes, no entanto, estejamos de acordo de que tudo o que se diz sobre as empreitadas práticas deve ser dito não com precisão, mas em linhas gerais (…) As coisas na esfera da ação e as coisas que trazem vantagem não são estáveis, não mais do que as coisas que causam a saúde. Porém, se o que dizemos universalmente é assim, o que dizemos sobre os particulares carece ainda mais de precisão, pois eles não se encontram sob nenhum conhecimento especializado ou sob um conjunto qualquer de regras – os próprios agentes precisam considerar as circunstâncias relacionando-as à ocasião, assim como acontece na medicina e na navegação. (EN II.2.1103b26-1104a11, trad. C.J. Rowe)

Aristóteles, na sequência, afirma: “Não obstante, ainda que a presente discussão seja assim, devemos tentar ajudar de alguma maneira”. E, então, ele imediatamente propõe a ideia da mediania ética. Em suma, essa ideia é algo que o filósofo pode fornecer e que dará algum auxílio prático nas situações particulares.

Mas como? Ou, em vez disso, como pode Aristóteles pensar que isso é possí- vel, ou seja, que saber o adágio que para cada área da vida prática há um “muito”, “muito pouco” e a quantidade certa13 de alguma espécie de sentimento ou ação ajudará alguém a obter as respostas adequadas particulares? Por certo, ele pensa que ter isso constante em mente na “vida real” permite a alguém monitorar as suas reações de uma maneira que tende a refiná-las no sentido ético.14 E isso certamente é verdade. É plausível que, em qualquer situação, estar consciente da tendência inerente do sentimento relevante, ou impelir a ação a ser “mais” ou “menos” do que é exigido, torna-me melhor para moldar a minha resposta de forma que ela seja mais próxima do que deve ser. Apenas quando o agente determina corretamente a resposta, ele (ou um espectador) terá condições de dizer, nesse caso, em relação a que “muito” e “muito pouco” são excesso e deficiência. Assim, a máxima para evitar o “muito” e o “muito pouco” contribui para a prática precisamente por causa do que é chamado de “vacuidade”, ou seja, justamente pelo fato de que tudo o que isso diz é “evite fazer/sentir mais e menos do que o que é certo!”. Não é possível apontar o que é certo tal como faz um poste de sinalização ou um comando. Entretanto, impregnando minha ação em situações particulares com essa máxima, eu torno possível para mim que eu mesma aponte para o que é certo.

Sem dúvida, a ideia geral da mediania ética não era exatamente nova para a audiência de Aristóteles (embora ela não tenha se dado conta, antes de seguir sua exposição, da variedade de áreas às quais se aplica, nem do número de qualidades éticas não adequadamente notadas até aquele momento que ajuda a identificar).

Quando a ideia aparece pela primeira vez na Ética Nicomaqueia, ela não é apresentada como sendo informativa ou como tendo todo o seu impacto em um nível puramente reflexivo. Aristóteles admite, quando ele a apresenta como uma ajuda prática, que a audiência entende que isso será verdadeiro apenas se ela a considerar ativamente em situações práticas particulares. Talvez a ideia seja agora uma banalidade, quando lemos Aristóteles, mas não estamos em uma situação prática na qual somos incitados a agir e não temos certeza de como. Porém, então, para aqueles que precisam da ajuda, o adágio valerá a pena. O ponto merece atenção apenas porque mostra Aristóteles fazendo ética filosófica abstrata de uma maneira muito diferente da qual muitos de nós fazemos hoje em dia.

(BROADIE, p.327-328)

 


 

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