Fichamento: Paula Gottlieb : O silogismo prático

REFERÊNCIA

GOTTLIEB, Paula. O Silogismo prático (In:Aristóteles e a ética à Nicômaco / Richard Kraut … [et al.] ; tradução de Alfredo Storck … [et al.]. – Porto Alegre : Artmed, 2009).

Paula Gottlieb:  Professora de Filosofia e Letras Clássicas na Universidade de Wisconsin-Madison. Analisou os Livros I e II da Ética Nicomaqueia para o Project Archelogos.


RESUMO

INTRODUÇÃO:

É de Aristóteles a afirmação controversa de que é impossível ter todas as virtudes éticas – coragem, temperança, generosidade, magnificência, magnanimidade, veracidade, presença de espírito, amizade e justiça – sem sabedoria prática (phronesis) e que é impossível ter sabedoria prática sem ter as virtudes éticas como um todo (EN VI.13.1144b30-1145a1)

 

No âmbito da lógica formal, Aristóteles é famoso por descobrir o silogismo (espécie de argumento que tem duas premissas e uma conclusão) e classificar todas as formas válidas de silogismos com premissas que contêm termos como sujeito e predicado. Uma dessas formas válidas, segundo Aristóteles, como explicarei adiante, é a base para a maneira apropriada de exposição de raciocínios nas ciências teóricas, mas é controverso se há uma forma análoga para o raciocínio prático.

Argumentarei que há, de fato, algo como um silogismo prático, o qual tem uma importância ética especial e é análogo, num sentido importante, ao silogismo teórico, sendo encontrada a explicação para a sua natureza prática e ética na parte mais negligenciada da premissa menor, a saber, a que revela que o agente tem a virtude adequada à situação na qual ele se encontra.

Na Ética Nicomaqueia, em vez de apresentar um exemplo completo e detalhado de um silogismo prático válido, Aristóteles oferece fragmentos do raciocínio médico, embora aplicado ao agente e não a um paciente em particular, e partes de um mau raciocínio na esfera da temperança. Em segundo lugar, não está imediatamente claro se o silogismo prático pretende representar o processo de raciocínio que ocorre àquele que é bom, se é uma explicação ex post facto da ação ou das motivações da pessoa, a justificação para a sua ação ou alguma combinação de tudo isso.

A fim de formular um silogismo prático correto, começarei considerando os paralelos entre esse e o silogismo teórico, examinando alguns dos exemplos mais completos apresentados no De Anima e no De Motu Animalium. Em relação à função do silogismo prático, argumentarei adiante em favor da afirmação estrita de que é a sua função na explicação (explicando por que o bom agente age como ele age e por que está autorizado a tirar a conclusão que tira) que o torna análogo ao caso teórico. As demais funções do silogismo prático estão para além do escopo deste capítulo.

Discutirei, assim, a premissa menor do silogismo prático com mais detalhe e considerarei o modo como o silogismo prático é usado apenas por bons seres humanos. Começarei minhas observações com uma breve discussão da deliberação aristotélica, com o objetivo de fornecer uma imagem intuitiva de por que Aristóteles deve introduzir um silogismo prático e que aspectos do raciocínio ele pretende representar.

(GOTTLIEB, p. 204)

 

O LADO PRÁTICO DA DELIBERAÇÃO

Aristóteles afirma:
A fim de apreender o que é a sabedoria prática, devemos primeiro considerar quem são as pessoas que chamamos de sábios práticos. Com efeito, parece característico da pessoa que tem sabedoria prática ser capaz de bem deliberar sobre o que é bom e benéfico para si mesma, não em relação a um aspecto particular, por exemplo, sobre que tipo de coisa conduz à saúde ou à força, mas sobre a boa vida em geral. (EN VI.5.1140a25-8)

 

A despeito desse elegante pronunciamento, Aristóteles não apresenta um exemplo completo e detalhado de deliberação sobre a boa vida em geral, de forma que os comentadores muitas vezes retomam a discussão da deliberação presente no Capítulo 3 do Livro III em busca de esclarecimento. No entanto, como veremos, essa discussão diz respeito não à deliberação em geral, mas à deliberação em relação a algum aspecto particular, por exemplo, à saúde.

Aristóteles começa explicando que não há deliberação em relação às verdades eternas da metafísica ou da natureza, tampouco de eventos que ocorrem por acaso, nem de questões práticas que não nos dizem respeito; por exemplo, como uma nação distante deve melhor governar a si própria. A deliberação, portanto, não é idêntica à investigação, a qual pode tratar de tais questões e, no caso da metafísica e da ciência, ter verdades como axiomas e conclusões. Ainda que não fique claro se a deliberação pode fazer uso de tais verdades, o que está claro é que o objetivo da deliberação deve ser prático. Não é função da deliberação chegar às conclusões de outras disciplinas, embora ela possa fazer uso dessas conclusões para chegar a uma conclusão prática.

Quanto mais variável é uma matéria, mais a deliberação é necessária, segundo Aristóteles. A gramática não requer deliberação, e a ginástica requer menos deliberação do que a navegação. (Aristóteles certamente não teve contato com a língua inglesa!) Seja como for, disciplinas como a medicina e a arte de ganhar dinheiro versam, segundo Aristóteles, sobre coisas que são “no mais das vezes” e sobre as quais não está sempre claro como as coisas acontecerão (EN III.3.1112b8). A deliberação, portanto, ocorre quando nada está dado de antemão, mas também não está completamente indeterminado o que deve ser feito.

Após explicar a diferença entre deliberação e investigação, Aristóteles discute as suas semelhanças, explicando que aquele que delibera busca pelo modo de fazer assim como o matemático analisa um diagrama. O último passo na análise é o primeiro na construção. Ele acrescenta que, embora nem toda investigação seja deliberativa, por exemplo, a matemática, toda deliberação é uma investigação.

Para ver qual a diferença entre a deliberação e os outros tipos de investigação, devemos atentar para o seu fim. Como é bem sabido, Aristóteles afirma que não deliberamos sobre os fins, mas apenas sobre as coisas que existem em vista dos fins. O médico não delibera se deve curar, o orador se deve persuadir ou o político se deve criar a lei e promover a ordem (EN III.3.1112b12-14). O fim é desejado, e as coisas que existem em vista do fim são deliberadas e escolhidas (EN III.5.1113b3-4). Essa afirmação encontra eco na concepção de Hume de que os fins são dados não pela razão, mas pelo desejo.

(GOTTLIEB, p. 205)

 

A deliberação correta requer ser um médico, usar algum conhecimento geral, saber qual conhecimento é relevante e por que motivo, ser capaz de perceber o que é necessário ser feito aqui e agora com relação a esse paciente particular.

(GOTTLIEB, p. 207)

 

ANALOGIA ENTRE O SILOGISMO PRÁTICO TEÓRICO E A IMPORTÂNCIA DO TERMO MÉDIO

Os medievais ajudaram formulando o seguinte exemplo para se adaptar às especificações de Aristóteles. Consiste de uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão:

Premissa maior: Animais racionais são gramaticais.
Premissa menor: Seres humanos são animais racionais.
Conclusão: Seres humanos são gramaticais.

Esse tipo de silogismo não pretende espelhar a pesquisa ou a investigação do trabalho científico. O cientista não começa com definições e trabalha a ciência a priori. Tampouco é o caso de que simplesmente colocar termos em ordem silogística garanta seu sucesso. O cientista deve ter certeza de que o termo médio realmente é explanatório. Em outras palavras, ele deve ter certeza de que o que aparece nas premissas não são meras correlações, mas coisas que estão causalmente fundadas (An. Post. I.2-6, II.8-10; An. Pr. II.23).5 Além disso, Aristóteles dá exemplos para mostrar que é preciso que o termo médio não seja muito remoto (An. Post. I.13.78b22-8). Ele compara seus exemplos ao enigma de Anarchasis, “Por que não há mulheres flautistas na Scythia?”, e a sua resposta é “porque lá não há videiras” (78b28-31). Supostamente, a resposta é curta demais para o seguinte raciocínio: “Onde não há embriaguez não há mulheres flautistas. Onde não há vinho não há embriaguez. Onde não há videiras não há vinho. Na Scythia não há videiras. Portanto, na Scythia não há mulheres flautistas”. Como Ross assinala, o problema é que poderia haver embriaguez sem que houvesse mulheres flautistas, vinho sem que houvesse embriaguez ou videiras sem que houvesse vinho. Se o termo médio proporciona uma explicação que é muito remota, ela ainda pode revelar-se como não sendo a explicação correta para a conclusão do silogismo como um todo (Ross, 1949, p. 553-554).

Isso não significa dizer que o silogismo prático é um tipo de silogismo teórico; em vez disso, eles são análogos. Aristóteles distingue cuidadosamente os raciocínios prático e teórico na Ética Nicomaqueia VI.

(GOTTLIEB, p. 208)

 

A FORMULAÇÃO DO SILOGISMO PRÁTICO E O TERMO MÉDIO ANÁLOGO

O exemplo mais claro das premissas do silogismo prático aparece no De Anima de Aristóteles. Ele afirma:

Dado que uma suposição e proposição (hupolepsis kai logos) é universal e a outra é particular (uma diz que tal tipo de ser humano deve fazer tal coisa, enquanto a outra diz que esta é tal coisa, e eu sou tal tipo de ser humano), então ou é a última opinião [doxa], e não a universal, que produz movimento, ou são ambas, porém a primeira é mais estática, ao passo que a segunda não o é. (De Anima III.11.434a16-22, trad. Hamlyn, 1993)

No De Motu Animalium, Aristóteles diz que a conclusão extraída das duas premissas vem a ser a ação (Mot. An. 7). Esse comentário é enigmático. Aristóteles parece imaginar que o agente imediatamente agirá. Ele diz: “Por exemplo, quando alguém pensa que todo ser humano deve caminhar e que ele próprio é um ser humano, ele imediatamente caminha”. No entanto, em outro lugar, ele assinala que o agente agirá se não for fisicamente impedido (EN VII.3.1147a31-2). Presume-se, então, que a conclusão do silogismo é a própria ação. A conclusão padrão é uma especificação da ação a ser realizada.

Retomo agora os fragmentos de silogismo presentes na Ética Nicomaqueia. Para explicar por que a pessoa com sabedoria prática deve relacionar-se tanto com particulares quanto com universais, Aristóteles afirma:

Alguém que sabe que as carnes leves são digeríveis e saudáveis, mas não sabe quais carnes são leves, não produzirá a saúde; aquele que sabe que as carnes de ave são saudáveis será mais capaz de produzir a saúde” (EN VI.7.1141b18-21, trad. Irwin).

Ele também comenta:

“Além disso (…) pode-se errar na deliberação quanto ao universal ou quanto ao particular. Pois [podemos erroneamente supor que] ou bem todas as espécies de água pesada são más, ou bem esta água é pesada” (EN VI.8.1142a20-22, trad. Irwin)

Os exemplos citados sugerem que quanto mais específica é a informação que se tem, mais capaz se é de agir. Entretanto, Aristóteles parece definir os particulares em relação ao universal. Se “carnes leves são digeríveis e saudáveis” é uma afirmação universal, “carnes de aves são leves” conta como uma afirmação particular. Nada disso invalida a opinião do De Anima de que a premissa menor final contém indexais: “Eu sou… e isto é…”. O médico, no primeiro exemplo, que sabe que carnes de aves são saudáveis teria ainda de saber que esta é uma carne de ave.

De acordo com Aristóteles, a premissa universal representa o resultado da deliberação. O conteúdo da premissa menor é dado pela percepção. Presumivelmente, o que autoriza a conclusão é o fato de que o agente é o tipo de pessoa que ele é. Se não fosse tal tipo de pessoa, então a universal e a segunda parte da premissa menor não teriam efeito algum sobre ele. Isso é diferente do silogismo científico, em que a inferência da conclusão a partir das premissas é válida, não importando o tipo de caráter que se tem. Contudo, há um ponto de semelhança extremamente importante. A função explanatória do termo médio no silogismo prático é exercida pela parte da premissa menor que se refere ao agente. Com efeito, sua natureza explanatória pode explicar por que Aristóteles a chama de “termo universal”.13 A parte da premissa menor que se refere ao agente não apenas permite mover-se das premissas para a conclusão, mas também explica por que o agente age da maneira como ele age.

(GOTTLIEB, p. 209-211)

CONCLUSÃO

Há muitas vantagens em considerar seriamente a primeira parte da premissa menor.

Em primeiro lugar, Aristóteles é muitas vezes mencionado como o avô das virtudes éticas modernas, um tipo de teoria ética suposta como uma alternativa ao utilitarismo e à teoria kantiana. Se, como eu tenho argumentado, a virtude do agente exerce uma função explanatória importante no raciocínio prático, o tratamento de Aristóteles pode funcionar como um bom ponto de partida para desenvolver um tratamento dos raciocínios éticos que não é facilmente subsumido ao raciocínio utilitarista ou kantiano.

Em segundo lugar, o fato de que o agente deva ser um certo tipo de pessoa e aplicar o conhecimento geral dado pelo fato de ele ser esse tipo de pessoa mostra como o silogismo prático pode ser prático. A fim de agir, o agente deve ser um certo tipo de pessoa e aplicar o seu autoconhecimento a si mesmo aqui e agora. Um silogismo prático com todos os termos gerais não poderia ser prático, e não é pouca coisa que Aristóteles tenha percebido isso.

Finalmente, a premissa menor do silogismo prático aristotélico mostra como e por que não se pode ter sabedoria prática sem virtude ética e vice-versa (EN X.8.1178a16-17; cf. VI.13.1144b30- 1145a1). A notável aristotélica G.E.M. Anscombe errou, portanto, ao dizer que “o silogismo prático, como tal, não é um tópico ético”, mas acertou ao dizer que “‘raciocínio prático’ ou ‘silogismo prático’, o que quer dizer a mesma coisa, foi uma das maiores descobertas aristotélicas” (Anscombe, 1957, p. 78, 57-58).

(GOTTLIEB, p. 213-214)

 

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