Fichamento: Deliberação e Razão Prática – David Wiggins

 O objeto do domínio prático é indefinido, ilimitado.

Aristóteles


REFERÊNCIA

WIGGINS, David. Deliberação e Razão Prática (In: ZINGANO, Marco. Sobre a Ética Nicomaquéia de Aristóteles. Odysseia Editora, 2010).


RESUMO

 

1. TRÊS TESES DA INTERPRETAÇÃO ARISTOTÉLICA (nota 1)

Considere as três afirmações seguintes:

(1) No Livro 3 da Ethica Nicomachea Aristóteles lida com uma noção técnica e restrita de deliberação, o que faz com que seja desnecessário a ele considerar outros exemplos a não ser os exemplos técnicos ou os assim chamados exemplos produtivos da razão prática. Não é surpreendente, no contexto do Livro 3, que a deliberação não seja nunca com relação aos fins, mas sempre com relação aos meios.

(2) Ao redigir os Livros 6 e 7 da Ethica Nicomachea e De Anima, 3.7, Aristóteles analisou uma versão bem menos restrita da noção de deliberação e de escolha, Isso fez com que fosse necessário a ele abandonar a tese segundo a qual a deliberação e a escolha fossem necessariamente ta pros to telos, nos contextos nos quais essa frase supostamente implica que a deliberação seja somente com relação aos meios. A partir de então, ele passou a reconhecer duas modalidades irredutivelmente distintas do raciocínio prático: deliberações do tipo meios-fim e deliberações regra-caso(nota 2).

(3) A suposta modificação do ponto de vista de Aristóteles, que teria ocorrido entre a redação do Livro 3 e dos Livros 6 e 7, bem como o (supostamente) recém introduzido silogismo “regra-caso”, trazem consigo uma mudança radical na posição de Aristóteles a respeito do tema; algo próximo a uma solução satisfatória para os problemas ligados a escolha e a deliberação. Desse modo, os Livros 6-7 efetuam bem mais do que postular uma vaga sugestão das complexidades que deveriam ser abarcadas em um retrato realista da deliberação prática.

Tomadas individualmente, essas doutrinas são bastante conhecidas na interpretação das obras de Aristóteles (nota 3). Mas a minha posição pessoal é que, tanto em conjunto, quanto no detalhe, a interpretação que se configura por meio de (1) (2) (3) está profundamente equivocada. Ela obstrui avanços em nossa compreensão do verdadeiro problema filosófico ligado ao raciocínio prático. O exame de (1) (2) (3) nos conduzirá (nas seções 4-6 deste estudo) a algumas considerações gerais sobre esse problema e sobre a contribuição de Aristóteles para O tema.

1 É possível que não haja nenhum estudioso que aceite as três teses simultaneamente. Ver, também, nota 3.

2 Pode ser o caso que aqueles que lançam mão desses ou de termos similares usualmente supõem que a distinção entre os dois tipos de raciocínio prático e os dois tipos distintos de silogismos não-teóricos reconhecidos por Aristóteles correspondem, de alguma maneira, à distinção aristotélica entre produção (poiêsis) e prática (práxis).

3 A conjunção (1) (2) (3) não tem a intenção de emular os contornos próprios de uma interpretação mais subjetivista, que teve alguma circulação. Tal interpretação expande o papel da virtude moral, em detrimento daquele do intelecto e, na medida do possível, assimila EN 6 a EN 3 – interpretando EN 3 exclusivamente como meios-fim. (1) (2) (3) está mais próximo da interpretação naturalista-racionalista que louvarei e, assim como a minha interpretação, ela deve muito ao Professor D..Allan. Veja seu artigo “Aristotles Account of the Origin of Moral Principles”, Proceedings of the XI International Congress of Philosophy, Brussels, August 20-26, 1953 (Amsterdã, 1953), 12: pp. 120-127 (doravante: Allan (1)) e “The Practical Syllogism”, em Autour d’Aristote: Recueill offert à Mgr. Mansion (Louvain, 1955), pp. 325-340 (doravante: Allan (2)). A principal diferença entre a posição de Allan e a posição compósita (1) (2) (3) é que Allan está propenso a dizer que as mudanças que ele postula entre a posição expressa no Livro 3 e aquela dos Livros 67 deixam o exame que Aristóteles faz da deliberação em si mesma mais ou menos inalterada. Contra isso, afirmo que, ou bem o suposto raciocínio regra-caso, que, para Allan, é proairético, pode ser propriamente denominado deliberativo, ou então, não. Caso a resposta seja afirmativa, então, se a teoria da escolha demandava uma radical reformulação, então o mesmo deveria valer para a teoria da deliberação do Livro 3, nos termos da interpretação de Allan a respeito da deliberação. Ela não poderia permanecer inalterada. Pois, então, as exatas mesmas considerações operam sobre ambas. Caso dissermos que a escolha não merece a rubrica “deliberativa”, contradizemos aquilo que está expresso em 1140a27-28. Cf também 1139423, 1141b8-15.

Começarei por tentar demonstrar que, apesar de suas simplificações e de sua exposição excessivamente esquemática, o retrato da deliberação, da escolha e do raciocínio prático que encontramos no Livro 3 é contínuo com relação àquele exposto no Livro 6. Ambos buscam analisar e descrever noções abrangentes e completamente gerais de escolha e deliberação.

Descontadas suas omissões e imperfeições, o retrato de Aristóteles é atravessado por uma consciência muito viva das circunstâncias reais nas quais se desenrola o raciocínio prático. Esta é uma opção por um realismo que os estudos contemporâneos de racionalidade, moralidade e racionalidade pública desconsideram, por sua própria conta e risco, mas insistem em desatender.

(WIGGINS, p. 126-128)

 

2. REFUTAÇÃO DA PRIMEIRA TESE. LIVRO 3 DA ETHICA NICOMACHEA

A hipótese de que o Livro 3 busca analisar uma noção restrita de deliberação (nota 4) ou uma noção restrita de escolha faz surgir certas dificuldades internas ao livro.

4 Cf Allan (1), p. 124: “..o bem buscado pode ser (a) distante ou (b) geral. Então, há uma nova tarefa pata a razão prática realizar, No primeiro caso, será primordialmente necessário calcularmos os meios para, no devido tempo, atingir o fim, No segundo, teremos que subsumir o caso particular sob uma regra geral. Ambos esses processos são analisados por Aristóteles com maestria, em diferentes passagens de sua obra, o primeiro, no terceiro livro de sua Exhica; o segundo, nos Livros VI e VIL bem como em seus escritos sobre psicologia” (meus itálicos). E cf Allan (2): “Sua primeira posição na Ethica é que toda ação virtuosa envolve escolha, que toda escolha é resultante de uma deliberação e que toda deliberação volta-se para uma seleção de meios” (meus itálicos).

(WIGGINS, p. 128)

…podemos dizer que Aristóteles está buscando, em EN 3 (por mais que a discussão seja abstrata e exageradamente esquemática), tratar a deliberação com relação afins e a deliberação com relação aos elementos constitutivos dos fins de uma mesma maneira. Com otimismo ele espera poder utilizar a inteligibilidade da clara situação meios-fim, com suas extensões (como construir esta figura geométrica particular?), para iluminar os aspectos obscuros do caso elementos-constitutivos-de-um-fim. Neste último caso, uma pessoa delibera, não importa o quão raramente ou o quão inarticuladamente, a respeito de que tipo de vida ela deseja levar; ou delibera, num contexto determinado, a respeito de qual curso de ação, dentre possibilidades diversas, se adequaria da melhor forma a algum ideal que ela estabeleceu para si; ou delibera sobre o que constituiria eudaimonia aqui e agora ou (em registro menos solene) delibera sobre o que contaria como a obtenção de algum objetivo, ainda não totalmente especificado, que ela determinou para si numa dada situação. No que diz respeito a todas as deliberações mencionadas acima, o paradigma meios-fim, que inspira a quase totalidade dos exemplos presentes no Livro 3, é um paradigma inadequado, como veremos. Mas não é fácil se livrar dele. Ele pode monopolizar o teórico da ação, mesmo quando este tenta se distanciar dele e procurar uma alternativa (Aparentemente são dois os obstáculos presentes no Livro 3 que obstam a interpretação das passagens sobre escolha e deliberação nesses termos e impedem que a rusticidade deste livro seja contígua às sofisticações dos Livros 6-7)

(WIGGINS, p. 131)

Assim, sugiro que aquilo que Aristóteles diria não poder ser objeto de deliberação é a escolha entre buscar a saúde ou a felicidade. Não está excluída a possibilidade de que se deve buscar, por meio da deliberação, tornar mais específico ou determinado, em termos práticos, aquele telos geral da eudaimonia, que é instintivo na constituição humana individual.

(WIGGINS, p. 134-135)

 

3. REFUTAÇÃO DA TESE (2): À TRANSIÇÃO PARA O LIVRO 6

De acordo com a interpretação que propomos do Livro 3, a transição de EN 3 para EN 6 é razoavelmente suave:

“No que diz respeito à razão prática, compreenderemos do que se trata considerando as pessoas que a possuem. É comumente teconhecica, como marca do homem dotado de racionalidade prática, a capacidade da boa deliberação sobre aquilo que é bom e vantajoso para ele, não em algum âmbito particular, e.g. sobre aquilo que conduz à saúde ou condiciona o vigor físico, mas sobre aquilo que conduz à boa vida em geral (poia pros to eu zên holôs)” [1140424-28, tradução de Ross: atentar para o uso de pros).

E:

“A razão prática, diferentemente da razão teórica, diz respeito às coisas humanas e às coisas a respeito das quais é possível deliberar; pois dizemos que a atividade típica do homem dotado de razão prática é sobretudo esta, a boa deliberação.(…) Aquele que delibera bem em geral é aquele capaz de visar as melhores dentre aquelas coisas que são alcançáveis pela ação, por meio do cálculo prático. A razão prática não diz respeito somente aos universais — ela deve reconhecer também aquilo que é [específico a uma situação] particular. É por isso que alguns, especialmente aqueles que possuem experiência, mesmo não conhecendo os universais, são mais práticos do que aqueles que os conhecem”. [1141b8-18, Ross]

(WIGGINS, p.136)

A deliberação continua a ser uma zêtésis, uma busca, mas ela não é primordialmente uma busca por meios. Ela é uma busca pela melhor especificação. Até que a especificação esteja determinada, não há espaço para a busca por meios. Quando a especificação estiver delineada, a deliberação meios-fins pode começar, mas dificuldades que podem aparecer no decorrer desta deliberação meios-fins podem me lançar de volta, um número finito de vezes, ao problema da busca por uma especificação melhor, ou mais praticável, do fim.

Aristóteles, a essa altura, viu-se obrigado a traçar uma distinção entre a situação na qual o agente percebe sua condição como instância de uma regra, e a situação na qual o agente deve simplesmente identificar os meios para realizar um objetivo definido.

O professor D. J. Allan nos oferece a versão mais bem argumentada desta última interpretação. Tratando do silogismo prático, ele escreve: “em alguns contextos, ações são agrupadas pela intuição sob regras gerais, e serão realizadas ou evitadas em acordo com estas regras. (…) Em outros contextos, é dito ser traço distintivo dos silogismos práticos o fato de eles terem como ponto de partida a expressão de alguma finalidade [Allan cita EN 1144331, 1151a15-19; EE 1227b28-32]…Logo, uma determinada ação é realizada por ser um meio, ou o primeiro elo de numa série de meios que conduzem a um fim” [Allan (2)].

(WIGGINS, p.137)

Para Aristóteles sempre haverá recursos deliberativos disponíveis. Ele está convencido de que a descoberta e a especificação do fim é um problema de ordem intelectual, dentre outras coisas, e é da seara da racionalidade prática. Veja 1142b31-33, por exemplo:

“Se a excelência na deliberação, euboulia, é um dos traços dos homens investidos de racionalidade prática, podemos considerar essa virtude como a percepção correta daquilo que contribui para o fim, do qual a razão prática é uma apreensão verdadeira.”

Se o que foi dito não bastasse para refutar as teses (2) e (3), então os próprios comentários de Aristóteles sobre a natureza de regras e princípios gerais seriam suficientes para desqualificar a interpretação regras-caso. Não existem regras ou princípios gerais — exceto na medida em que essas regras e princípios são fórmulas condensadas dos juízos da aisthêsis do phronimos (ver a paráfrase de 1143426 que será dada na seção 5):

Os assuntos ligados à conduta e questões a respeito do que constitui um bem pata nós não possuem fixidez, assim como os assuntos ligados à saúde, Sendo dessa natureza a descrição geral [do conhecimento prático], os casos particulares são ainda mais desprovidos de exatidão; pois não estão subsumidos em nenhuma arte ou preceito, mas são os agentes eles mesmo que, em cada caso, consideram o que é apropriado para a situação, como acontece na arte da medicina e da navegação,” (1104a3-10; cf.1107a28)

Da natureza própria de cada caso, o objeto da deliberação prática permanece indefinido e imprevisível, e qualquer princípio que fosse postulado teria um sem número de exceções. Compreender o que poderiam ser essas exceções e o que faz com que sejam exceções seria compreender algo não redutível a regras ou princípios. O único critério de mensuração que podemos impor ao objeto do campo prático é o tipo de mensuração utilizado na arte de modelar de Lesbos:

“É por isso que nem tudo é determinado pela lei, e decretos especiais e específicos tornam-se, muitas vezes, necessários. Pois quando algo é indefinido, sua – medida deverá ser indefinida também, como é o caso dos prumos de chumbo que são utilizados pela arte de modelar de Lesbos. O prumo se adapta ao formato da pedra e não é rígido, e assim também um decreto especial busca adaptar-se aos fatos”, [1137b2732, df Político, 1282b1-6].

(WIGGINS, p.139-141)

 

4. À ESPECIFICAÇÃO DELIBERATIVA NO CONTEXTO DOS LIVROS 6-7: UM QUADRO SINÓTICO DE SUA INTERPRETAÇÃO E AVALIAÇÃO

EN 6 pode ser lido de maneira mais instigante ainda, Com relação à interpretação a ser oferecida, reconheço que toda novidade consiste, sobretudo, em sofisticações, correções e extensões do paradigma meios-fim. Mas Aristóteles tem uma série de ideias para nos sugerir que parecem ser de uma importância crítica muito superior a qualquer coisa que podemos encontrar na teoria utilitarista, na teoria da decisão ou em outras teses da racionalidade, pouco importando que ele as tenha esboçado de maneira grosseira e obscura. Que as ideias de Aristóteles encontram-se em estado rudimentar é apenas uma das dificuldades para a confirmação desta afirmação.

No que toca a estas dificuldades, minha sugestão é postergar toda a discussão sobre a akrasia e, procedendo como se Aristóteles houvesse evitado aquilo que considero os erros de EN 7, fornecer os contornos gerais — (a) até (g) – de uma teoria neo-aristotélica da racionalidade prática. Depois disto, eu focarei num ponto desta teoria, por meio de uma paráfrase expandida de duas das mais obscuras passagens sobre a racionalidade prática em EN 6. A melhor defesa disponível ao leitor contra tal método de exposição é a comparação detalhada entre a paráfrase oferecida e alguma tradução fiel ao original de Aristóteles.

(b) Quando os interesses relevantes são provisoriamente identificados, eles podem estar ainda insuficientemente delineados para que o raciocínio meios-fim entre em ação.

(c) Nenhuma teoria, caso esteja dentre suas intenções recapitular e reconstruir o raciocínio prático de modo tão apurado quanto a lógica matemática recapitula e reconstrói a experiência real de conduzir ou explorar um argumento dedutivo, pode tratar os interesses que um agente transfere para qualquer situação como configurando um sistema fechado, completo e consistente, Pois é da essência destes interesses postular reivindicações conflitantes, que nem sempre podem ser simultaneamente satisfeitas. (Esta não é uma marca de nossa irracionalidade, mas de nossa racionalidade em face da pluralidade de fins e diversidade de bens humanos)º. O peso das reivindica- ções representadas por esses interesses não está necessariamente previamente dado. Também não existe qualquer necessidade para esses interesses estarem ordenados hierarquicamente. Pelo contrário, o processo reflexivo de um agente diante de uma nova situação que o confronta pode provocar uma ruptura no sentimento de ordem e certeza que existiam anteriormente, culminando na alteração profunda na sua concepção, em contínua evolução, dos inúmeros sentidos do viver e do agir.

(d) Um agente pode acreditar que esteja claro para ele, em uma dada situação, qual o interesse relevante e, não obstante, descobrir-se insatisfeito com todo e qualquer silogismo prático que promove tal interesse (com a premissa maior representando o interesse). Ele pode recuar do interesse, ao perceber seus custos ou consequências, e recomeçar todo o processo de reflexão. Não é necessariamente verdade que aquele que deseja o fim deve desejar, igualmente, os meios de atingir tal fim.

(f) A pessoa realmente investida de sabedoria prática é aquela que sabe invocar, em uma determinada situação, o maior número de interesses efetivamente pertinentes e considerações genuinamente relevantes, em medica proporcional à importância do contexto deliberativo particular, O melhor silogismo prático é aquele cuja premissa menor decorre das percepções, dos interesses e das apreciações levantadas por uma tal pessoa. Uma premissa desta natureza registra aquilo que a pessoa considerou o aspecto mais saliente do contexto no qual ela deve agir. Isso ativa uma premissa maior correspondente que expressa o aporte geral dos problemas e interesses em jogo que fazem com que este aspecto seja o aspecto mais saliente no contexto. Uma analogia, explorada por Donald Davidson (nota 9) entre um juízo de probabilidade, que é tomado relacionando diferentes juízos de probabilidade relativamente às evidências dispostas, e uma decisão, tomada em sua relação frente a juízos da desejabilidade de uma ação relativa à certos fatos contextuais, sugerirá essa ideia; quanto maior for o conjunto de considerações que circunscrevem O referido aspecto mais proeminente, maior será a força do silogismo. Mas não existem critérios formais para comparar as reivindicações de silogismos em competição. Assim como o silogismo se origina num contexto determinado, a premissa maior é avaliada, não por sua admissibilidade incondicional, tampouco por recobrir um maior número de variáveis do que suas rivais, mas por sua adequação à situação. Será adequada à situação se e somente se circunstâncias que potencialmente poderiam restringir ou qualificar e derrotar sua aplicabilidade a uma situação dada não ocorrerem no contexto prático deste silogismo. A avaliação do silogismo é, em sua própria essência, dialética e em consonância com as percepções e com os raciocínios que originalmente produziram o silogismo.

(g) Os objetivos e os interesses que um agente traz para uma situação podem ser diversos e incomensuráveis, e nem sempre, por si mesmos, ditam necessário que eles constituam o estofo a partir do qual alguma teoria constrói uma previsão da ação (nota 10). E não é necessário que qualquer outra coisa constitua tal estofo. Não há nenhuma razão para esperar que seja possível construir uma (pouco importa o quão utópica) teoria empírica do agente racional que possa concorrer contra o poder de previsão, a não-vacuidade explicativa e a adequabilidade, dados os seus propósitos, de uma hipótese econômica — e.g. que diante de uma vasta gama de circunstâncias especificáveis, empresas individuais vão se engajar em todas as frentes de ação que estejam abertas para elas como possibilidades, até que o custo marginal se iguale ao lucro marginal.

Mas o que é necessário aqui não é capacidade para previsão, mas Os próprios processos decisórios do agente, constantemente redesenhados para novas situações ou para uma compreensão renovada de situações passadas.

(WIGGINS, p.141-146)

 

5. DUAS PARÁFRASES DE ARISTÓTELES

A primeira paráfrase que proponho é de EN1142a23ff.:

“Que a sabedoria prática não é conhecimento teórico dedutivo é evidente. Pois, como foi dito, a sabedoria prática diz respeito ao último, ao particular e ao específico – assim é o objeto da ação, Nisto, a sabedoria prática é a contraparte, ou o reverso, da intuição teórica. O intelecto teórico, ou intuição, tem por objeto o último, mas no seguinte sentido: seus objetos são os conceitos universais últimos e os axiomas que são por demais primitivos ou fundamentais para admitir análise continuada ou justificação externa. [No extremo oposto], a sabedoria prática [enquanto contraparte da razão teórica] também lida com objetos que dispensam justificação externa. A sabedoria prática diz respeito ao último, ao particular e ao específico, no sentido preciso de simplesmente depender da percepção. Por ‘percepção’ aqui não tenho em mente a percepção sensível, mas o tipo de percepção ou discernimento que devemos ter para vislumbrar que um triângulo, por exemplo, é um dos componentes básicos ou últimos [de uma figura que podemos construir mediante régua e compasso). [Pois não há uma conduta ou procedimento padrão para a análise do problema de uma figura geométrica nos componentes a partir dos quais a podemos reconstruir mediante régua e compasso). À análise demanda um discernimento e existe um limite âquilo que podemos dizer sobre ela, Mas até mesmo tal discernimento se assemelha mais à percepção sensível do que a sabedoria prática se assemelha à percepção sensível”

Comentário: De acordo com esta leitura, o exemplo do geômetra reaparece, O método empregado pelo geômetra para construir a figura prescrita tem uma propriedade pouco usual para uma deliberação técnica, mas ideal para efetuar a transição para outro tipo de situação: a propriedade de ser, de algum modo, constitutiva do fim almejado. Ela vale como instância de uma resposta a uma pergunta posta (e poderíamos demonstrar essa validade). Um aviso: paráfrases e interpretações não se restringem aos trechos entre colchetes.

A segunda paráfrase que ofereço é de EN 1143426 e seguintes:

“(..) quando falamos em juízo, discernimento, sabedoria prática e razão intuitiva, atribuímos às mesmas pessoas a posse de juízo, do uso contínuo da racionalidade durante anos e de ter sabedoria prática e discernimento. Afinal, todas essas faculdades lidam com coisas que são últimas e particulares ou específicas; e ser um homem razoável e de bom senso significa ser capaz de adjudicar a respeito das coisas que interessam à sabedoria prática. Ele reconhece as particularidades das circunstâncias. Pois considerações de equidade e imparcialidade são um traço comum a todos os homens de bem em suas interações com os outros homens,
Agora, todas as ações estão relacionadas ao particular e àquilo que é último; afinal, não apenas o homem de sabedoria prática deve conhecer fatos particulares, mas juízos e O discernimento dizem respeito a coisas a serem feitas, e essas são últimas. E a razão intuitiva é a faculdade que diz respeito aos últimos em ambas as direções [i.e., com últimos entendidos de dois modos ou em dois sentidos: no sentido da generalidade última; no sentido da especificidade última]. Porque a razão intuitiva [a faculdade geral) está ligada tanto aos termos mais primitivos, quanto aos finais. Seu domínio natural é aquele onde a analogia ou a justificação autônoma é impossível. No caso daquela espécie de razão intuitiva que é a intuição teórica que é própria da prova demonstrativa, seu objeto são os conceitos mais fundamentais e os axiomas. Por outro lado, em sua versão prática, a razão intuitiva tem por objeto aquilo que é mais particular, contingente ou específico. Esse é o objeto típico da premissa menor de um silogismo prático [aquele que diz respeito “ao possível! ]. Pois é aqui, na capacidade de assinalar o traço adequado e formar um silogismo prático, que reside a compreensão daquilo que um agente deveria almejar realizar nesta situação particular. Pois a premissa maior e o interesse geral que ele expressa nascem da capacidade de distinguir coisas que são particulares. Então, o agente deve estar dotado dessa capacidade de apreciação e percepção do particular, e meu nome para isso é: razão intuitiva [é a fonte tanto dos silogismos práticos, quanto de todos os interesses, sejam eles gerais ou particulares, que fornecem ao agente razões para agir) (…) Acreditamos que nossos poderes estão lastreados ao nosso período de vida, e que uma idade particular traz consigo a razão intuitiva e a capacidade ajudicativa. (…) Logo, devemos atentar para os ditames não-demonstrados e as opiniões dos mais idosos e experientes, ou de pessoas de sabedoria prática, não em menor grau do que para demonstrações, pois, já que a experiência os forneceu a capacidade para enxergar, eles veem de maneira correta.”

Comentário: De acordo com esta formulação, é uma marca distintiva do homem investido de sabedoria prática | aa capacidade de selecionar, dentre os infinitos aspectos de uma dada situação, aqueles aspectos que sejam relevantes para a noção de existência ou ideal de existência que ele almeja tornar real. Esta concepção da vida humana culmina em múltiplas avaliações das mais variadas coisas, em uma multiplicidade de disposições e interesses, em múltiplos projetos. Ela não reside num conjunto de máximas e de preceitos, por mais que Aristóteles considerasse esses úteis para uma dada etapa da educação das emoções. Em nenhum caso haverá uma regra à qual o agente pode apelar para determinar o que deve ser feito (com a exceção do caso especial — ver 1129b19 e seguintes — onde opera uma proibição absoluta). O agente talvez não tenha qualquer outro recurso a não ser inventar uma resposta para o problema, Com frequência, tal invenção, assim como os recorrentes ajustes que ele é obrigado a fazer entre as diferentes reivindicações dos valores morais em competição, pode representar uma modificação ou inovação ou mais um passo de determinação do processo evolutivo de sua concepção do que constitui uma vida que vale a pena viver. Um aviso: mais uma vez, paráfrases e interpretações não se restringem aos trechos entre colchetes.

(WIGGINS, p.146-148)

 

6. ConcLUSÃO

O que é sumamente necessário aqui é precisamente o que Aristóteles nos fornece: um esquema conceitual que podemos aplicar aos casos particulares e que articula as relações recíprocas entre os interesses do agente e sua percepção de como as coisas efetivamente são ou estão no mundo; bem como um método de descrição de relaciona o ideal complexo que o agente busca, no desenrolar de sua vida, tornar real à forma que o mundo imprime sobre esse ideal, ao oferecer oportunidades e impor limitações.

Por vezes sou levado à desagradável suspeita que aqueles que sentem que devem buscar mais do que tudo isso oferece anseiam por uma teoria científica da racionalidade, não tanto motivados por uma paixão pela ciência, mesmo naquelas searas nas quais não pode haver uma ciência em sentido estrito, mas porque eles esperam e desejam que, mediante alguma alquimia conceitual, possam converter tal teoria numa disciplina reguladora e normativa ou então num sistema de regras por meio do qual eles pudessem se furtar de uma parcela dos tormentos do pensar, do sentir e do compreender que podem efetivamente (como eles acreditam) estar envolvidos na deliberação racional.

(WIGGINS, p.149-150)

 


 

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