REFERÊNCIA
ANSCOMBE, G.E.M. A Filosofia Moral Moderna (In: ZINGANO, Marco. Sobre a Ética Nicomaquéia de Aristóteles. Odysseia Editora, 2010).
RESUMO
Começo enunciando três teses que defendo neste artigo. A primeira, que não nos é proveitoso fazer filosofia moral na situação presente: essa empreitada deve ser deixada de lado pelo menos até dispormos de uma filosofia adequada da psicologia, de que conspicuamente carecemos. A segunda é que os conceitos de obrigação e dever — obrigação moral e dever moral, digo —, do que é moralmente certo ou errado e do sentido moral de “deve” têm de ser abandonados, se isso for psicologicamente possível, visto serem remanescentes, ou derivados de remanescentes, de uma concepção anterior de ética que, no geral, não sobrevive, sendo apenas perniciosos sem ela, E a terceira, que as diferenças entre os renomados autores ingleses em filosofia moral, de Sidgwick até o presente, são de pouca importância.
Quem quer que tenha lido a Ética de Aristóteles e algo da filosofia moral moderna deve haver notado os enormes contrastes entre ambos. Os conceitos preeminentes entre os modernos parecem estar ausentes ou, pelo menos, ocultos ou em um longínquo pano de fundo em Aristóteles.
Aristóteles distingue entre virtudes morais e intelectuais. Tem o que ele chama de virtudes “intelectuais” o que nós chamaríamos um aspecto “moral”? Parece que sim: o critério, presume-se, é que uma falha em uma virtude “intelectual” — por exemplo, deliberar bem ao calcular como realizar algo de útil, digamos, no governo municipal — é reprovável.
Há erros, diz ele, que são causas não da involuntariedade nas ações, mas da vilania, pelo que um homem é censurado. Significa isso que há uma obrigação moral de não cometer certos erros intelectuais? Por que ele não discute a obrigação em geral e essa obrigação em particular? e alguém pretende expor as teses de Aristóteles e fala, à maneira moderna, sobre isto e aquilo ser “moral”, deve se tratar de alguém muito obtuso se não se sentir constantemente como alguém cuja mandíbula está fora de alinhamento: os dentes não mordem como convém.
Não podemos, portanto, procurar em Aristóteles nenhuma elucidação do modo moderno de falar em obrigação, bem etc. “morais”.
(ZINGANO, p.19-20)
Hume define a “verdade” de modo a que dela se excluam todos os juízos éticos e professa haver provado com isso que estão daí excluídos. Ele também implicitamente define a “paixão” de modo a que ter algo em mira seja ter uma paixão. Sua objeção à passagem de “é” (is) a “deve” (ought) aplicar-se-ia igualmente à passagem de “é” a “deve a” (owes) ou de “é” a “precisa de” (needs) (todavia, em razão da situação histórica, há um ponto aqui, ao qual retorno em breve). (ZINGANO, p.20)
Kant introduz a ideia de “legislar para si mesmo”, a qual é tão absurda como se hoje, quando votos majoritários impõem grande respeito, se chamasse toda decisão refletida tomada por um homem de um voto majoritário, o qual, em matéria de proporção, seria esmagador, pois é sempre 1 x 0. … Sua regra das máximas universalizáveis é inútil se não vier acompanhada de estipulações acerca do que conta como uma descrição relevante de uma ação com vistas a construir uma máxima a respeito. (ZINGANO, p.20)
Bentham e Mill não percebem a dificuldade do conceito de “prazer”, Geralmente se diz que erram ao cometer a falácia naturalista; essa acusação, porém, não me impressiona, porque não julgo sejam coerentes as caracterizações dessa falácia, No entanto, o outro ponto — sobre o prazer — parece-me desde logo uma objeção fatal. Os antigos consideravam esse conceito bastante desconcertante. Ele reduziu Aristóteles a um mero balbucio acerca do “primor nos jovens rostos” porque, por boas razões, queria compreendê-lo como se fosse a um só tempo idêntico e diferente da atividade prazerosa. (ZINGANO, p.20)
Gerações de filósofos modernos tornaram o conceito como não sendo em nada desconcertante, o qual reaparece como problemático na literatura apenas há um ou dois anos, quando Ryle escreveu a respeito. A razão é simples: desde Locke, o prazer vem sendo tomado como certo tipo de impressão interna. É contudo superficial, se é que essa é a caracterização correta, fazer dele o propósito das ações. Pode-se adaptar algo que Wittgenstein afirmou acerca do “significado” e dizer: “o prazer não pode ser uma impressão interna, pois nenhuma impressão interna pode ter as consequências do prazer”. (ZINGANO, p.21)
Os termos “tem de” (should), “deve” (ought) ou “precisa de” (needs) têm relação com o que é bom ou mau: eg. o maquinário precisa de óleo, ou tem de ou deve ser lubrificado no sentido de que funcionar sem lubrificação é ruim para ele, ou de que ele funciona mal sem lubrificação. Segundo essa concepção, é claro, “tem de” ou “deve” não estão sendo usados em nenhum sentido “moral” especial quando se diz que um homem não deve se furtar a pagar.
Contudo, possuem hoje um sentido por assim dizer “moral” especial — ie. um sentido segundo o qual implicam algum veredicto absoluto (como culpado/ inocente para um homem) com respeito àquilo que é descrito nas frases em que “deve” é empregue em certos tipos de contexto: não apenas os contextos que Aristóteles chamaria de “morais” — paixões e ações —, mas também alguns contextos que ele chamaria de intelectuais.
Os termos comuns (e indispensáveis) “tem de”, “precisa de”, “deve”, “tem a obrigação de” (must) adquiriram esse sentido especial ao serem equacionados nos contextos relevantes com “está obrigado a” (is obliged to), “assumiu o encargo de” (is bound to) e “é exigido” (is required to) no sentido que se pode estar obrigado ou se pode assumir um encargo por lei, ou de que algo pode ser exigido por lei.
Como isso ocorreu? À resposta pertence à História: entre Aristóteles e nós encontra-se a Cristandade, com sua concepção legalista em ética, visto que a Cristandade deriva suas noções morais da Torá, (Pode-se estar inclinado a pensar que uma concepção legalista em ética surge apenas em povos que aceitam uma lei positiva supostamente divina; que isso não é o caso é mostrado pelo exemplo dos estoicos, que pensavam que tudo o que dizia respeito à conformidade com as virtudes humanas era exigido por lei divina.)
Como consequência do predomínio da Cristandade por muitos séculos, os conceitos de assumir um encargo, ser permitido ou ser desculpado se entranharam muito fundo em nossa linguagem e nosso pensamento.
(ZINGANO, p.23-24)
Ter uma concepção legalista em ética é sustentar que o que se precisa para se estar em conformidade com as virtudes em cuja falha reside a marca do homem mau qua homem (não apenas, digamos, qua artesão ou lógico) — que o que se precisa para isso é exigido por lei divina. Naturalmente, não é possível ter tal concepção a menos que você acredite em um Deus legislador, como os judeus, Os estoicos e os cristãos, Porém, se tal concepção foi dominante por muitos séculos e é depois abandonada, tem-se o resultado natural que os conceitos de “obrigação”, de assumir um encargo ou ser exigido por lei permanecem, embora tenham perdido sua raiz; e se o termo “dever” é investido em certos contextos do significado de “obrigação”, também ele permanece sendo empregue com ênfase e sentimento especiais nesses contextos.
(ZINGANO, p.25)
Hume descobriu, pois, uma situação em que a noção de “obrigação” sobreviveu e o termo “dever” estava investido daquela força peculiar segundo a qual é dito ser usado em sentido “moral”, mas a crença na lei divina já tinha sido abandonada há muito: pois fôra substancialmente deixada de lado pelos protestantes quando da Reforma.*2 Se estou correta, é esta a situação interessante da sobrevivência de um conceito fora do quadro conceitual que o tornava realmente inteligível.
*2 Eles não negavam a existência da lei divina, mas a doutrina mais característica do protestantismo consistia em asseverar que a lei divina havia sido dada não para ser obedecida, mas para mostrar a incapacidade humana de a obedecer, mesmo sob a graça — o que se aplicava não só às prescrições ramificadas da Torá, como também às exigências da “lei natural divina”, Cf, a esse respeito, o decreto de Trento contra o ensinamento de que se deve crer em Cristo somente como mediador, mas não obedecer a ele como legislador.
(ZINGANO, p.25)
Ora, que tal coisa “deva” ou “é preciso” ser o caso é suposto ter influência sobre seus atos, de onde pareceu natural inferir que julgar que “deve ser” era na verdade anuir que o que você julgou que “deve ser” influencia suas ações. E nenhum montante de verdade quanto ao que é o caso poderia logicamente reivindicar ter influência sobre suas ações. (Não é tal juízo que nos move, mas nosso juízo de alcançar ou fazer o que nos apetece.)
Assim, tem de ser impossível inferir “precisa de” ou “deve” de “é”.
(ZINGANO, p.26)
Certamente, no caso daquilo que a planta precisa, a apreciação de tal necessidade só afetará a ação se você quiser que a planta se desenvolva, Aqui, portanto, não há conexão necessária entre o que você pode julgar que a planta “precisa” e o que você quer; porém, há certa conexão necessária entre o que você pensa que você precisa e o que você quer. À conexão é complicada: é possível não querer algo que você julga precisar. Porém, e.g, não é possível jamais querer nada que você julga precisar. Isso, no entanto, não é um fato a respeito do significado de “precisar”, mas sim do fenômeno de querer. O raciocínio de Hume, poderíamos dizer, leva-nos a pensar que deve ser a respeito de “precisar” ou “ser bom para”.
(ZINGANO, p.27)
Essa observação, parece-me, estaria correta. O termo “dever”, tendo adquirido força espantosa, não pode, por ter essa força, ser inferido do que quer que seja. Pode-se objetar que poderia ser inferido de outras sentenças que contêm um “dever moral”, mas isso não pode ser verdadeiro.
A aparência de que o seja é produzida pelo fato que se diz que “todos os homens são X” e “Sócrates é homem” implica p “Sócrates é X’, ; mas X é aqui um predicado postiço.
Queremos dizer que, se você substitui X por um predicado real, a implicação é válida. Requer-se, pois, um predicado real, não apenas uma palavra que não contenha nenhum pensamento inteligível: não apenas uma palavra que, embora retenha a sugestão de força e seja capaz de exercer vigoroso efeito psicológico, já não designa nenhum conceito real. (ZINGANO, p.27)
Devo julgar que Hume e nossos atuais escritores de ética teriam feito um belo serviço ao mostrar que não se pode encontrar conteúdo algum na noção de “dever moral”, não fosse o fato que os últimos filósofos tentaram encontrar um conteúdo alternativo (bastante suspeito) e reter a força psicológica do termo. Teria sido mais razoável abandoná-lo. Ele não faz sentido razoável fora de uma concepção legalista em ética; eles não defendem essa concepção; e você pode fazer ética sem ela, como nos mostra o exemplo de Aristóteles. (ZINGANO, p.28)
Chego agora à época da filosofia moral inglesa marcada por Sidgwick. Uma surpreendente mudança parece ter lugar entre Mill e Moore.
Sidgwick Do ponto de vista da presente investigação, o que há de mais importante em Sidgwick é sua definição de intenção, Sidgwick define intenção de tal modo que se tem a intenção de todas as consequências antevistas de uma ação voluntária. Essa definição é evidentemente incorreta, e ouso mesmo dizer que ninguém a defenderia hoje. Ele a usa para propor uma tese moral que seria hoje aceita por muitos, a tese que não ter sentido desejo algum por algo antevisto, quer seja um fim ou um meio para um fim, é indiferente no que diz respeito à responsabilidade por esse algo. Usando a linguagem da intenção mais adequadamente e evitando a concepção errônea de Sidgwick, poderíamos formular a tese assim: não ter a intenção de um efeito de uma ação é indiferente no que diz respeito à responsabilidade de um homem por esse efeito. Isso soa bastante edificante; julgo mesmo ser característico de degenerescências muito ruins do pensamento o fato de soarem edificantes. Podemos ver em que redunda com um exemplo. Suponhamos que um homem seja responsável pelo sustento de uma criança. Por conseguinte, deliberadamente deixar de lhe dar o sustento seria algo ruim a fazer de sua parte, Seria ruim deixar de lhe dar o sustento porque não quer mais fazê-lo; e seria também ruim deixar de lhe dar o sustento porque, ao deixar de fazê-lo, estaria, digamos, compelindo um outro a fazer algo. (Pode-se conceder, neste argumento, que compelir esse outro a fazer algo seja digno de admiração.) Agora, porém, ele tem de escolher entre fazer algo ignóbil e ir preso; se for preso, segue-se que deixará de dar o sustento à criança. Segundo Sidgwick, não há diferença quanto à sua responsabilidade por deixar de dar o sustento à criança entre o caso em que deixa porque não quer mais fazê-lo ou como meio para algum outro propósito e quando ocorre como consequência antevista e inevitável de seu aprisionamento antes que cometer um ato ignóbil, Segue-se que ele tem de sopesar a maldade relativa de deixar de dar o sustento à criança e a de cometer o ato ignóbil, e pode bem ser o caso que cometer o ato ignóbil seja uma ação menos viciosa do que intencionalmente deixar de dar o sustento à criança; se, então, for indiferente, no que diz respeito à responsabilidade, que deixar de dar o sustento à criança seja um efeito colateral de seu aprisionamento, essa consideração o inclinará a cometer o ato ignóbil, o qual pode ser ainda bem ruim. E, evidentemente, quando ele começar a conceber a questão desse modo, a única coisa razoável a considerar serão as consequências, não a maldade intrínseca desta ou daquela ação, de tal modo que, se ele julgar razoavelmente que nenhum dano de grande porte pode advir disso, ele pode cometer um ato muito mais ignóbil do que deixar de dar o sustento a uma criança; e, se seus cálculos forem de fato errados, se mostrará que ele não é responsável pelas consequências, já que não as anteviu, pois a tese de Sidgwick faz com que seja impossível estimar a maldade de uma ação a não ser à luz das consequências esperadas. Porém, se é assim, você deve fazer a estimativa da maldade à luz das consequências que você espera, e disso se segue que você pode desinculpar-se das consequências reais da maioria das ações ignóbeis, desde que possa argumentar que você não as anteviu. Ao passo que eu sustentaria que uma pessoa é responsável pelas más consequências de suas más ações, mas não recebe o crédito pelas boas consequências destas, e, inversamente, não é responsável pelas más consequências de suas boas ações. (ZINGANO, p.30-31)
É característica necessária do consequencialismo que seja uma filosofia rasa, pois sempre há casos-limite na ética. Ora, se você é um aristotélico ou alguém que crê na lei divina, você lidará com um caso-limite considerando se fazer tal coisa em tal circunstância é, digamos, assassinato ou um ato de injustiça; e, conforme decida se é ou não é, julgará que é uma coisa a ser feita ou não. Esse é o método da casuística; e, ainda que ele permita distorções nas beiradas, não permite que você destrua o núcleo.
Se, porém, você é um consequencialista, seria estúpido propor a questão “o que é certo fazer em tal circunstância?” O casuísta propõe tal questão apenas para indagar “seria permissível fazer tal coisa?”, “seria permissível não fazer tal coisa?”, Somente se não fosse permissível não fazer tal coisa diria ele que “isso seria a coisa a fazer”. De outro modo, ainda que ele possa depor contra alguma ação, não pode prescrever ação alguma — pois, em um caso real, as circunstâncias (além daquelas imaginadas) podem sugerir toda espécie de possibilidades, e você não pode saber de antemão quais possibilidades se darão. Ora, o consequencialista não tem base para dizer “isto seria permissível, isto não” porque, de acordo com sua própria hipótese, as consequências decidem, e ele não se furta a fingir que pode estabelecer quais reviravoltas podem ser causadas por um homem ao fazer isto ou aquilo. O máximo que ele pode dizer é: um homem não deve fazer com que aconteça isto ou aquilo; o consequencialista não tem o direito de dizer que esse homem, em um caso real, fará com que aconteça tal coisa a menos que faça tal coisa, Ademais, o consequencialista, de modo a estar de fato imaginando um caso-limite, tem de assumir algum tipo de lei ou padrão segundo o qual esse é um caso-limite. De onde obtém esse padrão? Na prática, a resposta invariavelmente é: dos padrões correntes em sua sociedade ou círculo. E é de fato a marca de todos esses filósofos serem extremamente convencionais.
Não há neles nada que inspire uma revolta contra os padrões convencionais de seu tempo. É impossível que sejam profundos; e a chance de que todo um espectro de padrões convencionais seja decente é pequena. Finalmente, o ponto de considerar situações hipotéticas, por vezes bastante improváveis, parece ser o de produzir em você ou em alguém a decisão hipotética de fazer algo ruim. Não duvido que isso tenha o efeito de predispor as pessoas — que jamais se verão nas situações para as quais fazem as escolhas hipotéticas — a dar consentimento a más ações similares, ou a enaltecer e lisonjear quem as pratique, desde que sua malta a faça também, quando as terríveis circunstâncias imaginadas não se dão.
(ZINGANO, p.32-33)
Quem reconhece as origens das noções de “obrigação” e de um “dever” moral” enfático na concepção ética da lei divina, mas que rejeita um legislador divino, por vezes busca em torno a possibilidade de reter uma concepção legalista sem um legislador divino. Essa busca, penso, contém em si algum interesse, Talvez o que aparece por primeiro sejam as “normas” da sociedade.
O que quer que você faça “para si mesmo” pode ser admirável, mas não é legislação. Quando se entende isso, pode-se dizer: tenho de formular minhas próprias regras e essas são as melhores que consigo formular, e vou me ater a elas até encontrar algo melhor — como um homem pode dizer: “vou me ater aos costumes de meus ancestrais”, Se isso leva ao bem ou ao mal depende do conteúdo de tais regras ou costumes, Com sorte, levam ao bem. … A busca por “normas” pode levar alguém a procurar por leis da natureza, como se o universo fosse um legislador, mas nos dias de hoje é pouco provável que isso produza bons resultados: pode fazer com que os mais fracos se tornem comida segundo as leis da natureza e dificilmente irá infundir noções de justiça em alguém: o sentimento pré- socrático sobre a justiça como comparável a um balanço ou uma harmonia que sustém as coisas nos é muito remoto.
(ZINGANO, p.34)
Há ainda outra possibilidade: a “obrigação” pode ser contratual,
(ZINGANO, p.34)
Resta buscar por “normas” ” nas virtudes humanas:
assim como o homem tem tantos dentes, que por certo não são o número médio de dentes que os homens têm, mas é o número de dentes da espécie, talvez a espécie homem, considerada não apenas biologicamente, mas do ponto de vista da atividade de pensamento e escolha nos vários setores da vida — poderes, faculdades e uso das coisas de que precisa —, “tenha” tais e tais virtudes e este “homem” com o conjunto completo de virtudes seja a “norma”, como o “homem” com, e.g, um conjunto completo de dentes é a norma. Nesse sentido, porém, “norma” deixa de ser grosso modo equivalente a “lei”, Nesse sentido, a noção de uma “norma” nos aproxima antes de uma concepção aristotélica do que de uma concepção legalista em ética. Não há, julgo, nada de ruim nisso, mas caso se tente com isso dar um sentido a “norma”, deve-se reconhecer o que aconteceu com o termo “norma”, que se pretendia que significasse “lei — sem introduzir Deus”: deixou de significar “lei”. E, assim, as expressões “obrigação moral”, “dever moral” e “dever” (duty) têm melhor lugar no Index, caso se as consiga pôr aí.
Encerro este texto com a descrição das vantagens de se empregar o termo “deve” de maneira não-enfática, em vez de em sentido distintivamente “moral”, e de descartar o termo “errado” em sentido distintivamente moral, usando, em seu lugar, noções como “injusto”.
E aqui se vê a superioridade do termo “injusto” sobre os termos “moralmente certo” e “moralmente errado”, No contexto da filosofia moral inglesa desde Sidgwick, parece legítimo discutir se pode ser “moralmente certo” em algumas circunstâncias adotar tal procedimento; no entanto, não se pode argumentar que tal procedimento seria em qualquer circunstância justo.
Não consigo realizar o trabalho filosófico necessário para tanto — e penso mesmo que ninguém na presente situação da filosofia inglesa possa fazê-lo —, mas claro está que um homem bom é um homem justo, e um homem justo é um homem que habitualmente se recusa a cometer ou tomar parte em quaisquer ações injustas que pudesse cometer ou em que pudesse tomar parte em razão de temer certas consequências ou a fim de obter certas vantagens pata si ou para outrem. Talvez ninguém discorde disso. Porém, dirse-á, O que é injusto é por vezes determinado pelas consequências esperadas, o que é certamente verdadeiro; mas casos há em que não o é: se alguém diz “concordo, mas isso requer muita explicação”, esse alguém tem razão e, o que é mais, a presente situação é tal que não podemos dar uma explicação: não temos o instrumental filosófico.
…
Em tais casos, nossos filósofos morais tentam nos propor um dilema. “Se temos um caso em que o termo “injusto’ se aplica puramente em virtude de uma descrição factual, não se pode indagar se por vezes se deve cometer uma injustiça? Se ‘o que é injusto” é determinado por considerações a respeito de ser certo fazer tal coisa em tais circunstâncias, não se pode indagar se é certo” cometer uma injustiça, precisamente porque ‘errado’ foi moldado a partir da definição de injustiça.Porém se temos um caso em que a descrição “injusto” se aplica puramente em virtude dos fatos, sem introduzir a descrição errado, pode-se talvez indagar se se “deve” cometer uma injustiça, se pode ser certo’ fazê-la. E, evidentemente, deve e certo’ são aqui usados em seu sentido moral, Ora, ou bem se deve decidir o que é moralmente certo à luz de certos outros Princípios ou, então, formular um princípio’ acerca disso e decidir que nunca é certo cometer uma injustiça. No entanto, ainda que se opte pela segunda alternativa, está-se indo além dos fatos: está-se tomando a decisão de não, ou de que é errado, cometer uma injustiça.
(ZINGANO, p.36-37)
Porém, se temos um caso em que a descrição “injusto” se aplica puramente em virtude dos fatos, sem introduzir a descrição errado, pode-se talvez indagar se se “deve” cometer uma injustiça, se pode ser certo’ fazê-la. E, evidentemente, deve e certo’ são aqui usados em seu sentido moral, Ora, ou bem se deve decidir o que é moralmente certo à luz de certos outros Princípios ou, então, formular um princípio’ acerca disso e decidir que nunca é certo cometer uma injustiça.
(ZINGANO, p.38)
No entanto, a noção de obrigação é uma noção que só opera em contexto legal. E devo dizer que eu me sentiria inclinada a dar os parabéns aos filósofos morais atuais por privarem o “dever moral” de sua agora ilusória aparência de conteúdo se eles não manifestassem um odioso desejo de reter a atmosfera do termo. É possível, se formos resolutos, descartar o “dever moral” e tornar ao “dever” comum que, devemos notar, é um termo tão frequente na linguagem humana que é difícil nos imaginar sem ele, Ora, se a ele tornarmos, não se poderá razoavelmente indagar se alguma vez não será preciso cometer uma injustiça, ou se ela não será a melhor coisa a ser feita? Evidente que sim. E as respostas serão as mais variadas.
Conclusão final:
Coube à filosofia moral moderna — a filosofia moral de todos os renomados escritores de ética ingleses desde Sidgwick — elaborar sistemas de acordo com os quais o homem que diz “precisamos de tal coisa e apenas de tal modo a conseguiremos” pode ser um homem virtuoso: em outras palavras, é para eles uma questão em aberto saber se um procedimento como a punição judicial do inocente pode ser em certas circunstâncias o procedimento “correto” a ser adotado. E muito embora os filósofos morais oxonienses deem permissão a um homem para “fazer seu princípio” não cometer tal ato, eles ensinam uma filosofia segundo a qual as consequências particulares de tal ação poderiam “moralmente” ser levadas em consideração por um homem que estivesse debatendo o que fazer; e, fossem elas tais que estivessem de acordo com seus fins, poderia ser um passo em sua educação moral formular um princípio moral sob o qual ele “lograsse” (para empregar um termo de Nowell-Smith)” pôr a ação; ou poderia ser que se tratasse de uma nova “decisão de princípio”, efetuar a qual seria um progresso na conformação de seu pensamento moral (para adotar a concepção de Hare), decidir que em tais e tais circunstâncias deve-se obter a condenação judicial de inocentes.
E essa é a minha queixa.(ZINGANO, p.40-41)
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