Fichamento: Humberto Mariotti – As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade

 

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30 [ O Linear, O Sistêmico e o Complexo ]

Neste ponto, convém introduzir as principais diferenças entre os modelos linear e sistêmico de raciocínio, bem como esboçar o conceito de pensamento complexo. Em primeiro lugar, lembremos o exemplo de Joseph O´Connor e Ian McDermott.

A Terra é plana ? É claro que sim: basta olhar o chão em que pisamos. No entanto, como mostram as fotografias dos satélites e as viagens intercontinentais, ela é obviamente redonda. Concluímos então que do ponto de vista do pensamento linear, de causalidade imediata, a Terra é plana. Uma abordagem mais ampla, porém, mostra que ela é redonda e faz parte de um sistema.

Precisamos dessas duas noções para as práticas do cotidiano. Mas elas não são suficientes, o que nos leva a ampliar o exemplo desses autores e dizer que: a) do ponto de vista do pensamento linear a Terra é plana; b) pela perspectiva do pensamento sistêmico ela é redonda; c) por fim, do ângulo do pensamento complexo – que promove a complementariedade dos anteriores – ela é ao mesmo tempo plana e redonda.

Agora tomemos e ampliemos um outro exemplo bem conhecido, do consultor de sistemas Daniel Aronson. Imaginemos que uma plantação está sendo devastada por insetos – os Insetos A. Em uma circunstância como essa, a primeira providência em que se pensa é: se há insetos, deve-se usar inseticidas. Tal é a orientação do pensamento linear, a chamada direção causal. Supomos que o uso do inseticida resultará sempre na eliminação ou redução acentuada da praga: quanto mais inseticida mais insetos.

De fato, esse é em geral o resultado que se observa num primeiro momento. Entretanto, se acompanharmos a evolução do sistema por prazos maiores, veremos que a prática mostra que depois de sucessivas aplicações o pesticida já não age como antes, seja porque os Insetos A adquiriram resistência, seja porque outras pragas (vamos chamá-las de Insetos B), com as quais viviam em equilíbrio, encontraram agora condições para proliferar, livres de seu predados natural. O problema então se agrava, porque a plantação passa a ser devastada pelos Insetos A remanescentes e também pelos Insetos B.

A linearidade do raciocínio inicial deixou de levar em conta a complexidade do sistema, que inclui dois (ou mais) tipos de pragas e as relações de equilíbrio entre elas, além de muitas outras variáveis – sem falar na agressão ao solo e à água pelo pesticida, que se estende às pessoas que consomem os produtos dessa lavoura e assim por diante. Além do mais, de nada adiantaria trocar de inseticida: uma vez mantida a linearidade do raciocínio, os resultados decepcionantes continuariam os mesmos.

Nesse exemplo, se do ponto de vista linear o raciocício era “quanto mais inseticidas menos insetos”, do ângulo sistêmico ele passa a ser “quanto mais inseticidas mais insetos”. Isto é, quanto mais soluções lineares mais problemas sistêmicos. Ainda nesse caso, uma solução sistêmica incluiria providências múltiplas, como a introdução de outro ou outros tipos de inseto – os Insetos C -, que fossem predadores tanto da praga A quanto da praga B e cuja ação, somada à de outras medidas, poderia conduzir o sistema a um novo tipo de equilíbrio dinâmico. São providências sustentáveis, que constituem o que se chama de manejo integrado de pragas.

É o caso então de perguntar: se esse manejo integrado, sistêmico, é tão eficaz, por que não é posto em prática com mais amplitude e freqüência ? A resposta é obvia: porque nosso cérebro está unidimensionalizado pelo modelo mental linear. Mas essa resposta não é tão simples quanto parece. Há muitas outras dimensões a considerar. Uma delas mostra que esse tipo de manejo não é mais largamente utilizado por causa da natureza de suas relações com o capital e com o tempo. Enfim: porque demora mais para dar lucro.

35 [ O Linear, O Sistêmico e o Complexo ]

Há muito que se sabe que mais ruas não necessariamente significam um trânsito melhor. Eis o chamado paradoxo de Bräss, que tomou esse nome por causa do alemão Dietrich Bräss, que o estudou nos fins da década de 1960, a partir do trabalho de urbanistas em Stuttgart. Verificou-se que a abertura de uma nova avenida no centro dessa cidade – que estava com problemas de congestionamento – piorou o trânsito em vez de melhorá-lo. Logo em seguida, o fechamento dessa mesma via resultou em melhoria do fluxo de carros.

Expliquemos. Ocorre que não é apenas o aumento do número de veículos que torna lenta sua circulação. Tal acontece por que a causa mais importante dessa dificuldade não está nas ruas em si, mas nos cruzamentos, isto é, nas conexões entre elas. Quanto mais ruas mais cruzamentos, e portanto mais possibilidades de lentidão no trânsito. De nada adiantará construir novas e amplas avenidas, se os múltiplos cruzamentos que a elas levarem e delas resultarem formarem uma rede de difícil acesso e estiverem inadequadamente localizados. Esse é um bom exemplo de um dos princípios fundamentais do pensamento sistêmico: o que realmente importante não são as partes do sistema em si, mas o modo como elas se inter-relacionam.

57 [ As Muitas Lógicas ] – A ótica míope do recorte

Na lógica linear, qualquer hipótese forma uma base para percepções cujo principal objetivo é vuscar dados que a reforcem. Quase sempre, só vemos o que queremos ver. As hipóteses são um modo de estarmos prontos para perceber, e o fazemos de tal forma que é mais provável que percebamos isso do que aquilo. Se estamos comprometidos com determinada idéia, iremos recortá-la do que lemos e do que vemos ou ouvimos – de qualquer âmbito, enfim. Ela então será a figura e seu contexto será o fundo. Logo, somos nós próprios, por meio de nossa crenças ou modelos mentais, que determinamos consciente e inconscientemente que figuras iremos perceber.

Acresce que temos uma certa vergonha de ser intuitivos. Não fosse isso o bastante, juntemos um componente que é nosso velho conhecido: a fragilidade do ego, que tentamos esconder por meio do pensamento linear. Uma das manifestações da debilidade egóica é sua baixa resistência à frustação, que por sua vez leva ao imediatismo. Como a criança que não sabe esperar pela mamadeira, continuamos cada vez mais impacientes e querendo tudo sempre na hora, de preferência sem fazer nenhum esforço.

Sabemos que do ponto de vista da lógica linear as causas são contíguas ou muito próximas aos efeitos e, além disso, estão sempre no mesmo contexto de espaço e tempo. Essa crença nos leva a ser sôfregos e imediatistas e o resultado é que quanto mais insistimos em procurar causas vizinhas aos efeitos mais deixamos de localizar as que não o são. Essa circunstância faz com que as causas que queremos remover se tornem cada vez mais atuantes e continuem a produzir, em escala crescente, os efeitos que queremos evitar. Quanto mais imediatistas formos, mais dificuldades teremos para obter resultados imediatos.

 

64 [ A Confiança Relativa ]

Quando dizemos que uma coisa faz sentido, em geral estamos querendo mostrar que ela não desafia a linearidade do nosso pensamento, isto é, não nos ameaça. Essa coisa então “faz sentido” para a lógica tradicional, pouco importando que não faça sentido algum em relação às necessidades da vida humana não-mecânica. A própria situação que nos leva a falar da vida com ela fosse dividida em compartimentos estanques – o mecânico e o não-mecânico – revela até que ponto fomos preparados para abrir mão de nossa unidade, tudo isso em nome de uma segurança que simplesmente não existe.

Vivemos em um estado mental em que a maioria de nossas expectativas é linear. Olhamos para um único ponto da reta à nossa frente, à espera do que pode vir de lá. Como estamos acostumados a eliminar o mais possível as variáveis, melhor será que o que vier não nos obrigue a pensar muito. Sabemos que temos um potencial e tudo o mais, mas mobilizá-lo nos obrigaria a sair da nossa acomodação.

Dizemos o tempo todo que gostamos do novo, do original, mas as pessoas com idéias e ações novas e originais nos assustam. De certo modo até as homenageamos e reverenciamos, mas cuidamos de estabelecer uma fronteira bem nítida entre elas e nós. Damos-lhe o nome de “artistas”, ou coisa semelhante, e as admiramos com um misto de inveja e desconfiança. No fundo as vemos como gente estranha, excêntrica, a quem certas liberdades são permitidas, desde que permaneçam em seu mundo e não nos ameacem demais.

Apelamos para o conhecido (ou o que supomos ser conhecido) à menor ameaça de confrontação com uma idéia nova. Citamos autores, damos exemplos históricos e assim por diante. Fazemos o jogo do “sempre foi assim”. Buscamos a padronização, não a diversidade. Queremos um pensamento único, não a multiculturalidade.

Dizer “isso é antigo”, ou “já foi feito antes”, é com freqüência uma forma de resistir á mudança, de correr para a segurança do conhecido. É uma maneira de afirmar que a natureza humana sempre foi assim e que não adianta nada querer mudá-la. A suspeita paranóide funciona do mesmo modo. Suspeitamos de tudo aquilo que pensamos ser novo. A desconfiança (e também a prudência excessiva) é, evidentemente, uma forma de proteção contra o inédito.

Mas a confiança condicional também pode servir para esse fim. O bom senso nos diz que confiar é abrir-se para o que é novo, expor-se à vida. Porém, o mais comum é confiarmos nas pessoas porque imaginamos que elas não vão inventar novidades, não vão nos trazer surpresas. Tendemos a confiar nas pessoas de quem esperamos – e acabamos obtendo – repetição, não diferença.

Esse tipo de confiança é a aprovada pelo raciocínio linear e paralela ao conservadorismo. É a confiança condicional: confio em você, desde que você se adapte à minha definição de pessoa confiável. É a confiança relativa dos companheiros de ideologia. Melhor seria, claro, que a confiança como valor humano não precisasse de ressalvas. Mas uma situação assim requer que as relações interpessoais sejam orientadas por uma alteridade bem diferente da que vivemos hoje.

Nossa tendência a eliminar é mais forte que a necessidade de integrar. Não sabemos ouvir. Quando alguém nos diz alguma coisa, em vez de escutar até o fim logo começamos a comparar o que é dito com idéias que já temos. Esse processo mental – que chamo de automatismo concordo-discordo – quando levado a extremos é muito limitante. Ouvir até o fim, sem concordar ou discordar, tornou-se muito difícil para todos nós. Não sabemos ficar, mesmo que temporariamente, entre o conhecido e o desconhecido. Confundimos o desconhecido como o nada. A frase do escritor americano William Faulkner “entre a dor e o nada eu prefiro a dor”, traduz nosso apego à repetição.

75 [ Determinismo e Acoplamento Estruturais ]

Para Maturana, quando alguém se diz objetivo, na realidade está afirmando que tem acesso a uma forma privilegiada de ver o mundo, e que esse privilégio lhe confere uma autoridade que implica a submissão de que supostamente não é objetivo. Essa é uma das bases da chamada argumentação lógica. A alegada percepção objetiva significa que a pessoa que a exerce possui a verdade, ou pelo menos está mais perto dela do que quem não é objetivo.

Como nos julgamos capazes de ser objetivos, o mundo é para nós um objeto. Imaginamos que estamos separados dele e o observamos como críticos e avaliadores. E vamos mais longe: por meio do ego, achamos que somos observadores afastados até de nós mesmos. Nosso ego nos observa, avalia as nossas outras dimensões. Nessa ordem de idéias, para que possamos exercer essa suposta objetividade é necessário que haja uma fronteira, uma divisão entre o ego e o mundo, e também entre o ego e o restante de nossa totalidade. Tornamo-nos então divididos. E se assim ficarmos, o mesmo acontecerá ao nosso conhecimento, que por isso resultará limitado.

Eis o que conseguimos, com nossa pretensa objetividade: uma visão de mundo dividida e limitada. É a partir dela que nos imaginamos autorizados a julgar e condenar a “não-objatividade” e a “intuitividade” de quem não concorda conosco. A partir de uma visão divididade e limitada, pretendemos chegar à verdade e mostrá-la aos outros – uma verdade que julgamos ser a mesma para todos. O filósofo Ludwig Wittgenstein diz que nós somos o mundo, e que o mundo do homem feliz é diferente daquele do infeliz. Logo, se estivermos insatisfeitos com ele, a única maneira de mudar algo é mudar a nós mesmos.

114 [ Razão, Racionalidade e Racionalização ]

Em quase todos os casos, o que costumamos chamar de racionalidade não passa de racionalização. Esse é um ponto que precisa ser entendido com clareza. Morin observa que a racionalidade (a razão aberta) é a expressão do diálogo incessante de nossa mente com o mundo real. Acrescento que é racional, por exemplo, admitir que todo ser humano tem um lado irracional, que não deve ser negado e sim compreendido e integrado à totalidade de nossa existência. É também irracional admitir que o modelo mental linear já é insuficiente para o diálogo da nossa mente com o mundo. Já a racionalização (a razão fechada) tenta reduzir a realidade aos seus parâmetros, e por esse meio pretende dar sentido a coisas que muitas vezes não têm sentido algum.

Outra característica da racionalização é defender-se daquilo que a questiona utilizando os seus próprios princípios. O homem “prático” não admite efeito sem causa, pergunta sem resposta nem problema sem solução. “Se você não tem a solução, não adianta falar do problema”. Ou: “Não traga problemas, traga soluções”, é o que ele costuma dizer.

Essa orientação revela alguns dos mecanismos da defesa racionalizadora. Se alguém nos traz um problema mas não uma solução, logo imaginamos que:
a) está querendo nos desafiar;
b) pretende que saiamos do nosso conforto, quer nos obrigar a pensar;
c) seu objetivo é contrariar nosso hábito de receber tudo pronto para o consumo imediato.
Não nos ocorre, porém, que quem traz perguntas pode estar querendo ser útil, ou pedindo ajuda para uma reflexão conjunta. Em nosso individualismo, recusamo-nos a pensar junto com o outro, porque isso não era estimulado na escola que freqüentamos. O resultado é essa situação absurda, mas que é parte integrante do nosso cotidiano: as respostas nascem das perguntas; mas se todos deixarem de perguntar, de onde virão elas ?

117 [ Mistérios, Problemas e Diversidade ]

Ao longo da história, a evolução da nossa consciência pode ser acompanhada pelo desenvolvimento de determinados valores, que cedo ou tarde acabam moldando as culturas, isto é, orientando as práticas do cotidiano. Sem medo de errar, podemos dizer que eles se referem fundamentalmente à razão, à emoção e ao diálogo das duas. A história das tentativas de conciliá-las é, no fim das contas, a própria crônica dessa evolução.

As contradições estão presentes em todas as atividades do ser humano e nem sempre podem (nem precisam) ser resolvidas. Afinal, viver é lidar com paradoxos. Só que estamos convencidos de que é imperioso superar todos eles. Pior ainda, estamos certos de que podemos fazê-lo utilizando o que chamamos de razão, isto é, o raciocínio linear.

Ao persistir nessa tentativa de manter separados os opostos, estamos nos comportando segundo um padrão. O processo educacional a que fomos submetidos, transformou o nosso cérebro numa máquina de resolver problemas. Essa atitude faz parte dos dogmas da cultura dominante, que dizem que a vida é uma luta, que devemos estar sempre preparados para competir e que a natureza existe para ser dominada. Estamos convencidos de que se há problemas cumpre solucioná-los, e essa solução será alcançada pelo raciocínio linear, cujo principal instrumento é a argumentação lógica, que visa vencer todas as discussões derrotando os que argumentam em contrário.

Tudo isso seria maravilhoso se essa atitude fosse adequada para solucionar todos os problemas humanos. Não o é, infelizmente. O pensamento cartesiano só consegue resolver (e mesmo assim nem sempre) as questões da vida mecânica (produção material, alimentação, assimilação e excreção), e mostra-se incapaz de lidar com as da totalidade da condição humana (que incluem, além dos atos mecânicos, outras dimensões, como valores, sentimentos e emoções).

O filósofo Gabriel Marcel fala da diferença entre o mistério e o problema. Para ele, problema é uma situação que precisa ser resolvida e mistério é algo que precisa ser vivido. Há dois tipos básicos de perguntas: as que permitem respostas terminais (isto é, que visam resolver problemas) e as que não admitem esse tipo de resposta (as que pretendem lidar com mistérios). No primeiro caso, a resposta fecha a questão, no segundo ela permanece em aberto. Há circunstâncias cuja estrutura é tal que sua condição de mistério precisa permanecer intocada. Quando pretendemos transformá-las em problemas, elas se degradam. Por outro lado, há situações problemáticas que exigem entendimento e solução. Quando buscamos transformá-las em mistérios, na verdade o que pretendemos é fugir delas. Querer transformar mistério em problema, e vice-versa, pode ser uma forma de nos alienarmos da vida.

Muitas vezes deparamo-nos com temas que não conseguimos compreender ou dos quais queremos escapar. Em outras ocasiões, desejamos exercer a onipotência de querer explicar tudo. Em circunstâncias como essas, costumamos argumentar que estamos diante de questões transcendentes, metafísicas, que só podem ser entendidas por iniciados ou por meio de categorias mentais específicas (os chamados estados alterados de consciência, por exemplo) para as quais só uns poucos têm a chave.

Esse tipo de postura é semelhante à dos que acham que a vida é somente “prática”, “concreta”, de um lado, ou apenas “transcendente” ou “espiritual” de outro. Em ambos os casos a posição é excludente. O “transcendentalista” acha que tudo é superior, sagrado e incompreensível: faz o discurso do “poder maior”. O “prático” pretende reduzir tudo ao concreto, à vida mecânica e à institucionalização: exclui o “transcendente”, o “espiritual”, e os condena à situação de meras categorias especulativas. O “transcendentalista” acha que se pode reduzir tudo à condição de mistério. O “prático” acredita que é possível reduzir tudo à condição de problema. Num e noutro caso o propósito é o mesmo: separar o sujeito do objeto e desrespeitar a diversidade de idéias e opiniões.

Como vimos anteriormente, tendemos a definir as coisas em termos de polaridades. A seguir, em geral atribuímos a um dos pólos um valor maior do que o do outro. Assim entramos na dualidade do “isso é bom, aquilo é mau”, “isso é certo, aquilo é errado” etc. Algo semelhante ocorre quando insistimos em aplicar a todo instante determinados conceitos. É o que acontece, por exemplo, quando nos obstinamos em estabelecer que uma idéia é linear ou sistêmica, transcendente ou imanente etc. Trata-se de uma forma de usar o automatismo concordo-discordo. Seja como for, o efeito obstrutivo ao livre curso das idéias é o mesmo.

Nada nos dispensa da abertura constante em relação à diversidade. É indispensável recorrer sempre a ela, por mais que isso nos irrite. Aliás, esse é um bom exercício: perceber que ela nos aborrece é uma boa forma de saber o quanto estamos precisando de sua ajuda. Quanto mais a diversidade nos exaspera, mas dela necessitamos.

Nossos sistemas mentais, diz Morin, filtram as informações: ignoramos, censuramos e rejeitamos tudo o que não queremos saber, o que em geral consiste naquilo que nos desafia. O mecanicismo que chamo de automatismo concordo-discordo é muito usado para esse fim. A crítica incessante, implacável, que interrompe e censura a todo momento o fluxo das idéias, serve ao mesmo propósito. O mesmo vale para a ausência de crítica.

Quanto melhor entendermos a importância da diversidade, seja a se opiniões, seja a biológica (a biodiversidade), mais próximos estaremos de ao menos diminuir a amplitude da separação sujeito-objeto. Essa é uma das finalidades do pensamento complexo e da aprendizagem de sua utilização no cotidiano.

128 [ Conhecimento, Sabedoria e Conhecimento Sábio ]

O conhecimento teórico pode ser obtido por meio do estudo, pesquisa e observação sistemática. É possível, pois, falar em sua aquisição, produção e acumulação. Por ser acumulável, ele é controlável pelos que o estocam, e desse modo acaba se tornando inacessível fora de determinados círculos. Nesse sentido, o conhecimento é uma forma de capital, já conhecida pelos economistas desde o século 18. A tecnologia é o resultado de sua aplicação ao trabalho. O conhecimento de que dispomos hoje, em vertiginosa expansão, é ainda em grande parte baseado na lógica clássica, e por isso continua visto como algo externo a quem o possui – um objeto separado de seu sujeito. Essa circunstância o reduz a uma simples ferramenta operacional para a vida macânica.

A sabedoria não pode ser obtida pelo estudo, e vem até nós por meio da experiência vivida. Resulta de um processo de experiência, aprendizagem e crescimento. É possível fazer cursos e treinamentos para adquirir conhecimento, mas a sabedoria surge ao longo da vida inteira. O conhecimento é representacional e operacional. A sabedoria é construtivista e estratégica: representa nossa capacidade ou habilidade de utilizar o conhecimento de modo mais adequado.

A complementariedade dos dois resulta no conhecimento informado – o que se elabora a partir de dentro, e nos permite construir o mundo ao longo do processo de nossas relações com ele. É o que costumo chamar de “conhecimento sábio”, que pode também ser definido como o modo de usar os saberes e a tecnologia que deles deriva para alcançar e manter uma qualidade de vida digna. Se grande parte do conhecimento teórico pode ser obtido pelo modelo mental cartesiano, tal não ocorre com a sabedoria. Nem o conhecimento nem a sabedoria isolados são capazes de elucidar, por exemplo, as diferenças práticas entre “competitividade” e competência. Para isso, é indispensãvel o conhecimento sábio.

149 [ Diferença e Repetição ]

O que se pede às pessoas, hoje em dia, é o senso de iniciativa, criatividade e a capacidade de aprender continuamente. O que se exige delas é incompatível com a acomodação, e com a idéia de que a mera obediência a regras e normas é o bastante. É por isso que a capacitação técnica, a aplicação e a disciplina, precisam ser complementadas pelas habilidades de inovação e adaptação incessantes. É preciso sair da repetição como orientação única e aprender a lidar também com a diferença.

A capacidade de adaptação às modificações do meio é inerente aos sistemas vivos – e a resistência à mudança também. Já as temos na estrutura do nosso organismo. Mas ocorre que nosso cérebro está condicionado para fazer julgamentos e buscar “verdades”. Vem daí nossa tendência a tudo medir, pesar e contar. Supomos que essa atitude nos protege das incertezas da condição humana e, no limite, da idéia da morte. Eis por que tendemos sempre a ficar do lado “exato”.

A educação para repetição e para a mensuração foi mais ou menos útil durante longos anos, durante os quais o que se exigia das pessoas era apenas a disciplina, o cumprimento de regras e um grau de especialização o mais alto possível. Para atingir esses objetivos, tornou-se necessária uma educação para certezas, não para as dúvidas, e um adestramento para a estabilidade, não para a mudança.

Mas agora percebemos que caímos em nossa própria armadilha, e que as capacidades necessárias para sair dela não nos têm sido proporcionadas pelo sistema educacional dominante. Este precisa sofrer mudanças profundas. Mas a sua própria hegemonia faz com que essas modificações sejam de difícil implementação, pelo menos a curto e médio prazo. Além do mais, há todo um contingente de pessoas já graduadas, em atividade e ocupando postos de poder, que terão que se reciclar por outros meios – se forem convencidas a fazê-lo.

Daí a importância dos grupos, organizações e instituições nesse esforço de aprender a aprender. Para operacionalizá-lo é importante a aquisição das seguintes competências:

a) autoconhecimento;
b) respeito pela diversidade;
c) capacidade de trabalhar eficazmente em equipe;
d) capacidade de trabalhar de forma segura e não agressora ao meio ambiente;
e) desenvolvimento de um pensamento crítico, espírito comunitário, soliedariedade e cidadania.

Mas é também importante que não fiquemos com a impressão de que a repetição é sempre má e a diferença sempre boa. Para que se chegue a resultados eficazes, seja no que for, é preciso utilizar algum tipo de método, alguma sistemática. Há, pois, necessidade da aplicação de procedimentos seqüenciados, repetidos, e de prosseguir com eles até chegar ao objetivo desejado. A repetição pela repetição, vista como um fim e não como um meio, é um processo alienante. Mas a repetição como método, como parte de um processo em que visa superar a si mesma, ultrapassar a sua própria monotonia e linearidade, é uma das principais vias para chegar à diferença.

Em termos de pensamento sistêmico, o processo pode ser explicado como se segue. Sabemos que os sistemas têm pontos críticos, que encerram seu potencial de transformação – os pontos de alavancagem. Uma vez estimulados, eles deflagram mudanças súbitas na estrutura sistêmica. Em geral, podemos intuir a natureza e a localização desses pontos. Mas nem sempre é possível distinguir o exato momento em que eles, quando mobilizados, precipitam modificações.

Esse instante pode ser aleatório. Por isso, muitas vezes é necessário investir repetidamente no sistema, à espera de que num dado momento (que pode vir logo ou demorar muito), o atinjamos de modo a que ele se transforme subitamente. É o que faz o praticante do zen: toma um “koan” (isto é, um enigma insolúvel pelo raciocínio linear) e trabalha nele sem cessar, até que a iluminação (o satori) subitamente aconteça. O caminho para o descondicionamento e para a criatividade se trilha por meio da sinergia entre diferença e repetição.

A repetição recursiva acrescenta algo, associa-se a outros processos, constrói, visa um fim. A repetição simples nada acrescenta: nela o que há é uma ilusão de mudança, mas o processo se mantém estagnado. Como no provérbio francês: “plus ça change, plus reste la même chose” – quanto mais isso muda, mais continua na mesma.

Da mesma maneira, um processo educacional que visa perpetuar condicionamentos, e no decurso do qual as pessoas não se transformam, é apenas reiterativo. Já a educação que produz modificações nos educandos é recursiva. Em ambos os casos existe a necessidade de que os alunos vão repetidas vezes às aulas. A repetição simples mantém a mesmice. Na recursiva, existe a busca da diferença. Uma liberta, outra aliena.

Mas se a repetição recursiva é um método amplo, que permite atingir os pontos de alavancagem dos sistemas, hoje existem técnicas mais específicas, entre as quais se destaca o trabalho com os arquétipos sistêmicos, que possibilita localizar com bastante precisão os pontos de alavangagem e atuar sobre eles. Como o nome indica, os arquétipos são situações que se repetem em diferentes sistemas, e por isso podem ser identificadas e localizadas. Um exemplo é a tendência ao declínio, e depois à estagnação, de processos que no início parecem de rápido desenvolvimento. É o que ocorre com as vendas de uma empresa, ou com a aprendizagem de uma habilidade (tocar um instrumento, aprender uma língua estrangeira, etc.) Esse é um dos arquétipos básicos do pensamento sistêmico, e tem sido chamado de “limites ao crescimento”.

A localização dos pontos de alavancagem é necessáriamente precedida da identificação da presença de um ou mais arquétipos no sistema que se está examinando. Isso se faz utilizando esquemas apropriados – os diagramas causais. Mas é ilusório imaginar que tal técnica por si só resolva todos os problemas ou acelere magicamente todos os processos. Ela não substitui a reflexão, o diálogo e o pensamento abrangente. Além disso, antes de empregá-la é indispensável ter conhecimentos os mais amplos possíveis sobre a complexidade e o pensamento sistêmico, bem como sobre alguns modos básicos de lidar com a diversidade.

157 [ Ética, Política e Complexidade ] – O Valor Natureza Humana

Sabemos que o processo histórico é, sob muitos aspectos, a crônica do conhecimento acumulado. Mas aprendemos a ser repetitivos, e a crer que se o homem não se modifica os nossos problemas também não mudarão. É isso que consta nos registros históricos. A história que escrevemos é a crônica dos homens que não mudaram. Como justificativa, usamos o velho expediente de dizer que a história de repete, como se ela fosse um reflexo da mesmice que está em nós.

No fundo, o processo histórico é o mesmo: uma crônica de não-mudanças. Podemos recorrer a ele para obter informações úteis para as ações repetitivas, para os atos da vida mecânica. Em relação aos problemas humanos, porém, cairemos sempre no mesmo ramerrão: a consulta mostrará que, seja qual for a direção tomada (capitalismo, socialismo etc.) o resultado será sempre o triunfo da esperteza sobre a inteligência, o nivelamento por baixo, a exclusão social, a vulgaridade, a imbecialização das massas, miséria, violência e assim por diante.

E o mais espantoso é que, mesmo sabendo de tudo isso, é exatamente nesses registros históricos que continuamos a buscar soluções de mudança. Chegamos a um ponto emque nem ao menos somos capazes de reconhecer problemas novos quando eles surgem. E, admitindo que possamos reconhecê-los, nada poderemos fazer com o que aprendemos, porque eles pedirão soluções novas, que estão fora da nossa percepção e compreensão.

Estamos num beco sem saída mas nos recusamos a admití-lo. Achamos que qualquer proposta fora do raciocínio cartesiano é perda de tempo. Imaginamos que é mais seguro ficar presos ao padrão de pensamento atualmente dominante. Estamos condenados à comodidade, que gera mediocridade, que gera mais comodidade, que gera mais mediocridade – o interminável círculo de sempre.

169 [ Ética, Política e Complexidade ] – O Valor Confiança

Não se pode falar em confiança sem falar em relação observador-observado. Se algo não puder ser visto dentro de nós, isto é, se insistirmos que nossos interlocutores estão sempre fora, e jamais dentro de noso espírito, não poderemos chamá-los de pessoas confiáveis. Eles até poderão estar dentro de nós, introjetados, mas serão sempre vistos como hóspedes incômodos.

Deixar acontecer é uma forma de confiar. Significa tentar diminuir o pretenso comando de nosso ego sobre os acontecimentos. Não que não haja a necessidade de um certo controle: ela existe, mas não é do domínio mecânico, total, que o ego imagina ter, e que é incompatível com a imprevisibilidade e aleatoriedade da vida. Como vimos anteriormente, a dinâmica da confiança cria um paradoxo: é preciso que nos acostumemos a aceitar a imprevisibilidade e a aleatoriedade. Mas como aceitá-las, se achamos que confiança é o mesmo que previsibilidade ?

O segredo, se é que existe um, está na relatividade das coisas. Confiar em alguém é aceitá-lo tal como é. É o que reza o lugar-comum, o que implica a aceitação da aleatoriedade e da imprevisibilidade dessa pessoa. Confiar é confiar na humanidade das pessoas, que inclui o mal que existe no coração delas. Confiar em um indivíduo, e exigir dele um comportamento totalmente previsível, não é confiar, é querer controlar.

Mas há limites. Quais serão eles ? A experiência mostra que por meio do pensamento cartesiano somos incapazes de trabalhar esse dilema com um mínimo de clareza. Para nós, confiança é uma questão de causalidade simples: confiar em um indivíduo é ter “certezas” em relação a ele. É pretender que ele não seja uma pessoa, e sim uma máquina pré-programada, porque a nosso ver confiável é o sistema que não falha, que funciona com regularidade e elimina variáveis.

No nosso entendimento, a confiança é uma virtude redutível ao pensamento digital. Trata-se de uma confiança unidimensional. Confiamos ou desconfiamos, sem meio-termo, o que significa que na maioria das vezes confiamos em pessoas platônicas, não em seres humanos de carne e osso. Não sabemos confiar em relação à imprevisibilidade porque não aprendemos a tolerá-la – o que nos faz não saber perdoar. achamos que não perdoar um carro que enguiça é o mesmo que não desculpar uma pessoa que errou. É o máximo que podemos fazer, aliás, porque tendemos a ver máquinas e pessoas da mesma maneira.

207 [ Educação para a Mediocridade ]

Na qualidade de principal instrumento do pensamento linear, a palavra institucionalizada é o instrumento mais poderoso das ideologias. Para as mentes submissas ao domínio ideológico, nada existe até que seja proferida a palavra “oficial”, veiculada por um pota-voz “autorizado”, que pode ser um condestável de um partido político, um funcionário governamental, um guru da “auto-ajuda” ou um consultor famoso falando num seminário. Assim as palavras acabam tomando o lugar da experiência, e dessa forma os rótulos, os clichês e os jargões dos modismos passa a “ser” essa experiência. Tais discursos moldam a nossa rotina e acabam transmitindo uma falsa sensação de segurança.

O preço a pagar é a mediocridade. Todos sabemos que ninguém se sente mais seguro, confiante e sábio do que o homem medíocre. A mediocridade se alimenta do padronizado, do fácil, do imediato, do repetitivo, do “autorizado”. A ela convém um saber parcial e mínimo. O homem medíocre tornou-se cada vez mais previsível, e por isso foi aos poucos perdendo a liberdade. A massa foi induzida a desejar em bloco, e assim as pessoas deixaram cada vez mais de existir, e foram progressivamente transformadas em clientes-consumidores. A “satisfação do cliente” é quase sempre a satisfação – e a perpetuação – da mediocridade.

A cultura do pratiarcado nos condicionou a acreditar que aquilo que a maioria das pessoas quer da vida pode ser resumido em uns pocuos itens:

a) consumir cada vez mais;
b) acumular dinheiro e bens materiais;
c) experimentar incessantemente as novidades;
d) ter em relação a si próprias uma visão narcisista e autocomplacente;
e) ter em relação aos outros uma visão reificante, utilitária e excludente.

Esses itens correspondem, quase que letra por letra, às três dimensões fundamentais da alienação do ser humano segundo Martin Heidegger: a tagarelice, o gosto pelas novidades e a ambigüidade. Sabemos que a maioria dos indivíduos vive exatamente dessa maneira. Foi o caminho que aprenderam e, dentro de medidas razoáveis, se há o que lamentar não há também muito a objetar.

214 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO ] – Os Dois Universos

Ver coisas novas não quer dizer que elas apareçam de uma hora para outra. Significa que, ao mudar nosso modo de olhar, passamos a nos dar conta de coisas ou situações que sempre estiveram à nossa frente, mas que não éramos capazes de perceber, por que estávamos agarrados a um determinado padrão mental. A mudança do modo de olhar começa pela autoconsciência, ou atenção da atenção (awareness).

A base do desenvolvimento da complementariedade entre os modelos linear e sistêmico corresponde ao aperfeiçoamento da atenção da atenção. É por meio dela que aprendemos a lidar com a divisão sujeito-objeto. Lembremos aqui a clássica proposta de Maslow: os seres humanos são movidos por um impulso inato no sentido da auto-superação. Esse movimento pode nos levar além de nossas carências básicas. Uma vez satisfeitas as necessidades primárias, continuamos em busca de algo mais. É o que Maslow chama de necessidade de auto-realização. Como esse processo procura fazer vir à tona algo potencial, pode-se chamá-lo de emergente. O ser humano resultante dessa transformação é o que Carl Rogers chamou de homem emergente – aquele que ativou seu potencial de mudança.

216 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO ] – Viver, Aprender, Mudar

Não aprendemos o que está fora de nós, e sim o que nossa estrutura nos permite aprender, no momento em que se dá a aprendizagem. Como ela muda continuamente, não podemos afirmar que aprendemos sempre da mesma forma. Daí se conclui que, se nossa estrutura estiver condicionada por preconceitos, crenças, dogmas, ideologias etc., dificilmente aprenderemos algo de realmente novo: só conseguiremos aprender o “novo” que é permitido e sancionado por esses sistemas de crenças.

Por conseguinte, o caminho mais adequado para descobrir o novo é a inocência, a abertura da razão. A aprendizagem depende de como nos colocamos para aprender.

As interações realmente importantes são as que produzem modificações significativas, isto é, as que são transformadoras. Nos seres humanos, modificações estruturais equivalem a mudanças do modo de pensar, e resultam em alterações de comportamento. Significam, enfim, que aprendemos algo. Por ser a vida um processo de aprendizagem, a história de uma pessoa é contada por meio das mudanças estruturais que ela experimentou ao longo de seus dias, isto é, a vida de um indivíduo é a crônica do que ele aprendeu, para o bem e para o mal. Mas não é assim que as coisas são vistas em nossa cultura. Para nós, “coerente” e “racional” é o conservador, o homem que nunca muda e se repete pela existência afora.

221 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO ] – Mudança de Pensamento

Quando se fala em mudança há, de um lado, os que acreditam em mudança por evolução. Nesse registro estão incluídos muitos psicoterapeutas. De outra parte, há quem acredite que os insights podem provocar transformações súbitas. Nessa ordem de idéias, trabalha-se com métodos cuja finalidade é quebrar a continuidade do pensamento linear, para com isso provocar o maior número possível de insights. Trazer a mente para o aqui-e-agora, como se faz em algumas terapias, é outra abordagem. Tudo se centra, enfim, em diminuir a influência do ego no processo.

As tentativas de interpelar o ego ou diminuir seu poder equivalem, de um modo geral, ao questionamento do raciocício linear.

242 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO ] – A Reflexão Inclusiva

É evidente que a capacidade de ouvir sem discordar nem concordar de imediato pode ser aprendida, embora não seja um processo fácil. Já vimos, com Shannon, que fatos que se reproduzem com regularidade são redundâncias. Já os eventos portadores de novidade, de surpresa, são informações. Ao acionar o automatismo concordo-discordo, visamos reduzir a informação a um referencial conhecido, isto é, tiramos dela o efeito surpresa, a aleatoriedade. Essa redução tem a “vantagem” adicional de fazer com que não pensemos.

É por isso que as pessoas nos cobram sempre uma opinião formada sobre tudo. A dúvida e o talvez são circunstâncias assustadoras para nós. Em geral, assumimos uma posição preconceituosa diante de pessoas que nos dizem que ainda não têm opinião formada sobre um determinado assunto. Costumamos chamá-las de indecisas, porque estamos convencidos de que todo mundo deve ter sempre posições definitivas sobre tudo.

Não tomar posição imediata, esperar pela defasagem dos sistemas, ouvir até o fim sem concordar nem discordar (isto é, sem fazer juízos imediatos de valor) – tudo isso nos ameaça. A sociedade nos cobra o uso sistemático do automatismo concordo-discordo. A atitude de espera, de observação inicial não-julgadora, é vista como estranha, ofensiva, algo a ser combatido, um verdadeiro perigo. Se olharmos com cuidado, veremos que o ato de ouvir sem concordar nem discordar de imediato, significa renunciar a traçar uma fronteira e ficar de fora dela. A auto-observação significa que o observador se inclui no que observa, primeira providência no sentido de ao menos atenuar a separação sujeito-objeto.

253 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO II ] – O lugar da razão

Como diz Bohm, os insights atuam no processo do pensamento, não em seu resultado. Esse ponto é fundamental. É preciso interferir no processo em si. É importante, questionar o pensamento, tentar modificá-lo. Se mudarmos o sistema de pensamento mudarão os resultados, e assim questões que pareciam insolúveis podem passar a não sê-lo. Para mudar a forma de olhar não é preciso mudar os olhos, e sim o modo de funcionamento do cérebro, do qual eles são uma extensão.

Se mudam as percepções, mudarão as emoções. Esse é um dos objetivos do pensamento complexo: aceitar a diversidade e aprender com ela, fazer com que a centelha do aleatório seja, além de eventual, também intencionalmente evocável.

As primeiras impressões de quem utiliza o pensamento complexo, ou qualquer de seus operadores cognitivos, são desconfortáveis, porque implicam a necessidade de respeitar o tempo de espera dos sistemas. Sabemos que essa defasagem pode ser longa e às vezes aparentemente interminável, mas também pode ser muito rápida ou manifestar-se por meio de intuições instantâneas. A imprevisibilidade dessa dinâmica é, evidentemente, produtora de ansiedade. São fenômenos difíceis de entender pela mente condicionada, porque não podem ser explicados por meio da causalidade simples. Muitas vezes, nem mesmo podem ser explicadas por qualquer modelo de causalidade.

254 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO II ] – O começo da auto-observação

Pode-se dizer que grande parte do processo de autoconhecimento consite em localizar as fraquezas do ego e aprender a lidar com elas. Essas debilidades são as maiores responsáveis pelos preconceitos, pelas desconfianças – enfim, por tudo que nos impede de observar os fenômenos em sua naturalidade e originalidade. Localizá-las pode não ser ainda o autoconhecimento, mas é boa parte do caminho andado.

257 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO II ] – A consciência encarnada

O principal âmbito da auto-observação é a consciência encarnada. Nossa capacidade de prestar atenção ao que nos é externo baseia-se na nossa habilidade de estar atentos a nós próprios. Se desenvolvermos essa atenção de modo adequado, perceberemos que não estamos separados do que aparentemente está fora de nós.

Uma forma de avaliar nossa atitude diante das possibilidades de mudança é observar o grau de repetitividade que atribuímos aos eventos de nossas vidas. Como estamos acostumados a pôr a culpa de praticamente todos os nossos problemas em fatores externos, é bem provável que o que vemos como repetitividade seja uma expressão de nossa incapacidade de perceber o novo e, por conseguinte, de mudar.

275 [ A DINÂMICA DA REINTEGRAÇÃO III ] – Tolerância e Compaixão

Sartre diz que ao fazer uma escolha o homem escolhe a si mesmo, e mais: escolhe todos os homens. Escolhemos a nós próprios sempre em relação aos outros. Para o moralista inglês John Stuart Mill, o que diferencia o homem dos outros animais não é a racionalidade, e sim a capacidade de escolher, de ser permanentemente capaz de não seguir o rebanho se o assim o decidir. Para que as escolhas sejam viáveis, porém, é preciso que haja tolerância, e esta não é senão a manifestação do nosso respeito pelas escolhas alheias e vice-versa.

313 [ A Estratégia do Abraço ] – Saber Amar

Para Montagu, o amor da mãe pelos seus filhos é o grande modelo para todas as demais formas de relacionamento. Já no fim dos anos 60 ele observava, embora não utilizasse essa expressão, que as mulheres são naturalmente mais preparadas do que os homens para pensar em termos sistêmicos.

O homem pode aprender com a mulher a pensar sistemicamente. A partir daí ambos podem chegar a uma visão complexa de mundo. Mas para tanto ele precisa deixar de impor-lhe a sua linearidade. Isso feito, a complementariedade ocorrerá espontâneamente, porque os processos naturais são cooperativos e não, como se penseou durante muito tempo, competitivos. A “competitividade” é uma circunstância cultural, criada pelo medo que aprendemos a ter um dos outros. Nós, do sexo masculino, precisamos de ajuda para sair dessa situação, e esse auxílio está bem mais próximo do que imaginamos.

316 [ A Estratégia do Abraço ] – Saber Abraçar

A idéia da morte valoriza nossa existência e faz com que valorizemos a vida do outro. Nas palavras do psicoterapeuta Irvin Yalom, se a morte destrói o homem, a idéia dela o salva. Aceitamos a morte como um fato da vida – e não apenas como o fim de tudo -, quando nos damos conta de que somos vulneráveis e frágeis, e de que o mundo (que inclui a figura do outro) também o é.

Já a experiência do ego trabalhado muda esse horizonte, por que torna-se claro que não possuímos o nosso corpo: nós o somos. Entendida desta forma, a corporiedade passa a ser vivida como uma intercorporiedade – e assim nos damos conta de que o corpo é o lugar onde se fundem o morador e a morada, a teoria e a prática, o abstrato e o concreto, o ser e o nada.

Da intercorporiedade emerge a esperitualidade. Esta, como escrevi anteriormente, corresponde a uma atitude de respeito pelo mundo natural e participação em seus processos. Tudo isso começa, evidentemente, pela relação com o outro. Não estou dizendo que não se deva buscar outros meios de transcedência, mesmo por que esta é um dimensão necessária e fundamental ao ser humano. O ponto no qual insisto, e que certamente é a tese principal deste livro, é que nenhuma iniciativa de religação pode ser tomada, sem que primeiro se chegue ao ponto mais importante de todo o processo, que é a legitimação da figura do outro.

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