RESUMO
Antropologia Filosófica – Ensaio sobre o Homem
Ubirajara T. Schier
Este trabalho tem como objetivo resumir e explicar as principais ideias do autor extraídas por meio da leitura da obra. Para isso, serão apresentadas as citações e as explicações sobre as mesmas.
PARTE I. O QUE É O HOMEM
Capítulo 1. A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO
“Parece ser universalmente admitido que a meta mais elevada da indagação filosófica é o conhecimento de si próprio. Em todos os conflitos travados entre as diferentes escolas filosóficas, este objetivo permaneceu invariável e inabalado: revelou-se o ponto de Arquimedes, o centro fixo e imutável, de todo pensamento.” (CASSIRER, pg.15)
“Na história da filosofia, o ceticismo tem sido, muito amiúde, simplesmente a contrapartida de um resoluto humanismo. Pela negação e pela destruição da certeza objetiva do mundo externo, espera o cético fazer com que todos os pensamentos do homem voltem a convergir para seu próprio ser. O conhecimento de si mesmo – declara ele – é a primeira precondição da auto-realização.” (CASSIRER, pg.15)
“Entretanto, nem mesmo o modo de focalizar o problema – o método da introspecção – é seguro contra as dúvidas céticas. A filosofia moderna começou com o princípio de que a prova do nosso ser é inconquistável e inexpugnável.” (CASSIRER, pg.16)
“A introspecção só nos revela o pequeno setor da vida humana acessível à nossa experiência individual. Nunca poderá cobrir todo o campo dos fenômenos naturais. Ainda que nos fosse possível coligir e combinar todos os dados, teríamos uma imagem muito pobre e fragmentada,- um simples torso – da natureza humana.” (CASSIRER, pg.16)
“No complicado mecanismo da vida humana precisamos descobrir a força propulsora oculta, que põe em movimento todo o mecanismo de nosso pensamento e vontade. O objetivo principal de todas estas teorias era provar a unidade e a homogeneidade da natureza humana. Mas se examinarmos as explicações que elas pretendiam dar a unidade da natureza humana se nos afigura extremamente duvidosa. Todo filósofo acredita haver encontrado a mola mestra e a faculdade principal – l’idée maitresse, como lhe chamava Taine. Mas no que concerne ao caráter dessa faculdade principal todas as explicações diferem amplamente uma da outra e se contradizem. Cada pensador nos dá uma visão especial da natureza humana. Todos estes filósofos são empiristas decididos: querem mostrar fatos e nada mais que fatos. Mas sua interpretação da prova empírica contém, desde o princípio, uma suposição arbitrária – e essa arbitrariedade se torna mais e mais manifesta à proporção que a teoria se desenvolve e assume um aspecto mais requintado e complicado. Nietzsche proclama a vontade do poder, Freud assinala o instinto sexual, Marx entroniza o instinto econômico. Cada teoria se transforma num leito de Procusto, onde se esticam os fatos empíricos para que se adaptem a um padrão preconcebido. Em virtude deste desenvolvimento, nossa moderna teoria do homem perdeu seu centro intelectual. Ganhamos, em seu lugar, uma completa anarquia de pensamento.” (CASSIRER, pg.43-44)
“Tal é a estranha situação em que se encontra a filosofia moderna. Nenhuma outra idade se viu em posição tão favorável no que concerne às fontes do conhecimento da natureza humana. A psicologia, a etnografia, a antropologia e a história reuniram um cabedal de fatos surpreendentemente rico e de constante crescimento. Nossos instrumentos técnicos de observação e experimentação foram imensamente aperfeiçoados e nossas análises se tornaram mais apuradas e mais penetrantes. Apesar disto, não parece que tenhamos encontrado ainda um método para o domínio e a organização deste material. Cotejado com nossa própria abundância, o passado pode parecer paupérrimo. Entretanto, nossa riqueza de fatos não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. A não ser que consigamos encontrar o fio de Ariadne que nos tire deste labirinto, não poderemos ter uma visão do caráter geral da cultura humana, e continuaremos perdidos no meio de um conjunto de dados desconexos e desintegrados, carente, ao que parece, de toda unidade conceitual.” (CASSIRER, pg.45-46)
Resumo: Neste capítulo CASSIRER introduz o tema central do capítulo lembrando que o conhecimento de si próprio sempre constitui importante objeto de estudo da filosofia. Entretanto, assim como os céticos que rejeitaram toda realidade externa para voltar à atenção para o homem em si, não foram capazes de alcançar um conhecimento integral do ser humano, também nenhuma das linhas filosóficas de pensamento – focadas principalmente na razão e na ciência – o conseguiram. Nesse sentido, CASSIRER aponta a necessidade de avançar nos estudos dos pensamentos, principalmente para abordar uma lacuna que a razão e a ciência têm dificuldade em completar: o homem e sua cultura humana.
CAPÍTULO 2. UMA CHAVE PARA A NATUREZA DO HOMEM: O SÍMBOLO
“O biologista Johannes von Uexkül1 escreveu um livro em que procede a uma revisão crítica dos princípios da biologia. De acordo com Uexküll, a biologia é uma ciência natural, que precisa ser desenvolvida por meio dos métodos empíricos usuais – os da observação e experimentação. O pensamento biológico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do pensamento físico ou do químico. Uexküll é um resoluto campeão do vitalismo, defendendo o princípio da autonomia da vida. A vida é uma realidade final e dependente de si mesma.” (CASSIRER, pg.47)
“As experiências – e portanto as realidades – de dois organismos diferentes são incomensuráveis entre si. No mundo de uma mosca, diz Uexküll, só encontramos “coisas de moscas”; no mundo de um ouriço do mar só encontramos “coisas de ouriços do mar”. Partindo desta pressuposição geral, Uexküll desenvolve um plano originalíssimo e engenhoso do mundo biológico. Desejando evitar todas as interpretações psicológicas, segue um método inteiramente objetivo ou behaviorista. A única chave para a vida animal nos é proporcionada pelos fatos da anatomia comparada.” (CASSIRER, pg.48-49)
“Será possível utilizar o plano proposto por Uexküll para uma descrição e caracterização do mundo humano? É evidente que este mundo não constitui exceção às regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encontramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; sofreu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. Existe uma diferença inequívoca entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, a resposta dada a um estímulo exterior é direta e imediata; no segundo, a resposta é diferida. É interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento.”(CASSIRER, pg.49)
“Inúmeros filósofos lançaram advertências contra este pretenso progresso. “L’homme qui médite”, diz Rousseau, “est un animal dépravé”: não se aprimora, mas se deteriora a natureza humana quando ultrapassa as fronteiras da vida orgânica.” (CASSIRER, pg.50)
“A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de lidar com as próprias coisas, o homem, em certo sentido, está constantemente conversando consigo mesmo. Envolveu-se por tal maneira em formas linguísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela interposição desse meio artificial.”(CASSIRER, pg.50)
“A linguagem foi freqüentemente identificada com a razão, ou com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que esta concepção não consegue abarcar todo o campo. É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a linguagem emocional; lado a lado com a linguagem lógica ou científica há a linguagem da imaginação poética. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições.” (CASSIRER, pg.51)
“Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um animal racionale, deveríamos defini-lo como um animal symbolicum.” (CASSIRER, pg.51)
Resumo: Cassirer aposta no símbolo como objeto de estudo para se avançar na busca do conhecimento humano integral. Isso por que o símbolo é algo, dentre todas as espécies vivas da natureza é somente o homem que usa de símbolos para dar significado às coisas. Em toda natureza não se pode esperar de cada ser vivo algo além do que ele é, mas o homem como exceção, por meio dos símbolos, consegue ir além de sua própria natureza, que o possibilita criar novos significados às coisas de sua existência.
CAPÍTULO 3. DAS REAÇÕES ANIMAIS ÀS RESPOSTAS HUMANAS
“O primeiro e mais fundamental é, evidentemente, a linguagem das emoções. Grande parte de toda a expressão oral humana ainda pertence a esse extrato. (CASSIRER, pg.56-57)
“Tocamos aqui o ponto crucial de todo o nosso problema. A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emocional, verdadeiro marco divisório entre o mundo humano e o mundo animal. Todas as teorias relativas à linguagem animal carecem de significação se deixarem de reconhecer esta diferença fundamental. 2 Em toda a literatura sobre o assunto parece não haver uma única prova concludente de que algum animal tenha dado o passo decisivo da linguagem subjetiva para a objetiva, da linguagem afetiva para a proposicional.” (CASSIRER, pg.56-57)
“Zelando por uma exposição clara do problema, precisamos distinguir cuidadosamente entre sinais e símbolos. Parece ser fato confirmado o havermos encontrado sistemas complexos de sinais no comportamento animal. Podemos até dizer que alguns animais, sobretudo os domesticados, são extremamente suscetíveis a sinais. Um cão reagirá às mais ligeiras mudanças no comportamento do amo; chegará até a distinguir as expressões do rosto humano ou as modulações da voz humana. Existe, porém, uma grande distância entre estes fenômenos e a compreensão da linguagem simbólica e humana. As famosas experiências de Pavlov provam apenas que os animais podem ser facilmente adestrados a reagir não só a estímulos diretos mas também a toda a sorte de estímulos intermediários ou representativos.” (CASSIRER, pg.59-61)
“Os símbolos – no sentido próprio do termo – não podem ser reduzidos a sinais. Sinais e símbolos pertencem a duas esferas diferentes da expressão das idéias: o sinal é uma parte do mundo físico do ser; o símbolo’ é uma parte do’ mundo humano do sentido. Os sinais são “operadores”; os símbolos são “designadores”! Mesmo sendo entendidos e usados como tais, os sinais têm uma espécie de ser físico ou substancial; os símbolos têm apenas valor funcional.” (CASSIRER, pg.62-63)
“Se, por inteligência entendermos a adaptação ao meio ambiente ou a modificação adaptativa do meio, deveremos, por certo, atribuir aos animais uma inteligência relativamente bem desenvolvida. Cumpre reconhecer também que nem todas as’ ações animais são governadas pela presença de um estímulo imediato. O animal é capaz de toda a sorte de rodeios em suas reações. Pode aprender não só a usar instrumentos mas também a inventá-l os para seus propósitos.” (CASSIRER, pg.62-63)
“Em suma, podemos dizer que o animal possui uma imaginação e uma inteligência práticas, ao passo que só o homem criou uma forma nova: uma imaginação e uma inteligência simbólicas.” (CASSIRER, pg.63)
Temos os casos clássicos de Laura Bridgman e Helen Keller, duas crianças cegas e surdas-mudas, que, por meio de métodos especiais, aprenderam a falar. Embora estes casos sejam bem conhecidos e tenham sido tratados com freqüência na literatura psicológica, 1 vejo importância em recordá-los mais uma vez por encerrarem, talvez, a melhor ilustração do problema geral de que nos ocupamos.” (CASSIRER, pg.63)
“Com sua universalidade, sua validade e sua aplicabilidade geral, o princípio do simbolismo é a palavra mágica, o Abre-te Sésamo!, que dá acesso ao mundo especificamente humano, ao mundo da cultura. Uma vez que o homem se acha de posse desta chave mágica tem assegurado o progresso ulterior. Tal progresso, evidentemente, não é detido nem impossibilitado por nenhuma lacuna do material do sensível.” (CASSIRER, pg.65)
Resumo: O foco principal neste capítulo é reforçar, por meio da comparação com o mundo animal, de que realmente só o homem é dotado de “uma imaginação e inteligência simbólicas”. Os animais por sua vez, por mais que façam uso também da linguagem, a finalidade é sempre prática, não existe uma criação de sentido simbólico para as coisas. Pode-se entender que toda experiência animal tem enfoque prático para fins de sobrevivência. Já o homem, além de ser dotado de capacidade para resolver as coisas práticas da vida, faz algo único, que é dar significado simbólico à elas. Significado esse que por vezes pode ser de utilidade prática, mas, pode também por muitas vezes, ter fim apenas em si mesmo.
CAPÍTULO 4. O MUNDO HUMANO DO ESPAÇO E DO TEMPO
“Descrever e analisar o caráter específico que o espaço e o tempo assumem na experiência humana é uma das tarefas mais atraentes e importantes da filosofia antropológica. Seria uma presunção ingênua e infundada considerar a aparência do espaço e do tempo como necessariamente a mesma para todos os seres orgânicos. É óbvio que não podemos atribuir aos organismos inferiores a mesma espécie de percepção espacial que atribuímos ao homem. Mesmo entre o mundo humano e o dos antropoides superiores subsiste, a este respeito, uma diferença inconfundível e indelével. Entretanto, não será fácil explicar esta diferença se nos limitarmos a aplicar nossos métodos psicológicos habituais. Precisamos seguir um caminho indireto: analisar as formas da cultura humana para podermos descobrir o verdadeiro caráter do espaço e do tempo em nosso mundo humano. A primeira coisa que se torna clara, em semelhante análise, é que existem tipos fundamentalmente diferentes de experiência espacial e temporal; nem todas as formas desta experiência se encontram no mesmo nível. Existem estratos mais baixos e mais altos, dispostos em certa ordem. O mais baixo pode ser descrito como o espaço e o tempo orgânicos.” (CASSIRER, pg.75-79)
“Embora incapazes de responder a todas as intricadas perguntas relativas à faculdade de orientação das abelhas, das formigas e das aves de arribação, podemos pelo menos dar uma resposta negativa. Não é possível presumir que, ao realizarem essas complicadíssimas reações, os animais sejam guiados por processos ideacionais. Ao contrário, parecem movidos por impulsos corpóreos de um gênero especial; não possuem imagem mental nem ideia do espaço, como não têm uma prospecção das relações espaciais. A medida que nos aproximamos dos animais superiores, deparamos com uma nova forma de espaço, que podemos intitular espaço perceptivo. Este espaço não é um simples dado dos sentidos: de natureza complexíssima, contém elementos de todas as diferentes espécies de experiência sensória – ótica, táctil, acústica e cinestésica.” (CASSIRER, pg.76-77)
“Do ponto de vista de uma teoria geral do conhecimento e da filosofia antropológica outra questão agora nos prende o interesse e deve ser focalizada. Antes de investigar a origem e o desenvolvimento do espaço perceptivo, precisamos analisar o espaço simbólico. Ao abordarmos este tema nos encontramos na fronteira entre o mundo humano e o mundo animal.” (CASSIRER, pg.76-77)
“Mas esta deficiência do homem é compensada por outro dom, que só ele desenvolve e que não tem analogia com coisa alguma na natureza orgânica; não imediatamente, mas após um processo mental muito complexo e difícil chega à ideia do espaço abstrato – e é esta ideia que lhe aclara o caminho, não só para um novo campo de conhecimento mas também para uma direção inteiramente nova de sua vida cultural. Desde o princípio, os próprios filósofos encontraram as maiores dificuldades na explicação e na descrição da verdadeira natureza do espaço abstrato ou simbólico. O fato da existência de uma coisa como o espaço abstrato foi uma das primeiras e mais importantes descobertas do pensamento grego. Tanto os materialistas como os idealistas destacaram a significação deste descobrimento;” (CASSIRER, pg.76-77)
“As pessoas comuns, diz ele, só pensam no espaço, no tempo e no movimento de acordo com o princípio das relações que estes conceitos mantêm com objetos sensíveis. Mas precisamos abandonar este princípio se quisermos atingir uma verdade real, científica ou filosófica: em filosofia precisamos abstrair-nos dos nossos dados sensíveis.” (CASSIRER, pg.76-77)
“E se admitirmos os princípios gerais da teoria do conhecimento de Berkeley, ser-nos-á difícil refutar seu ponto de vista. Somos obrigados a admitir que o espaço abstrato não tem contrapartida nem fundamento em qualquer realidade física ou psicológica.” (CASSIRER, pg.76-77)
“Pois, no caso do espaço abstrato, não nos ocupamos da verdade das coisas, mas da verdade de proposições e juízos. Mas antes que este passo pudesse ser dado e ser sistematicamente estabelecido, a filosofia e a ciência precisariam percorrer longo caminho e passar por muitos estádios intermediários. A história deste problema ainda não foi escrita, embora seja tarefa muito atraente acompanhar os passos individuais de seu desenvolvimento. Proporcionariam uma visão do próprio caráter e da tendência geral da vida cultural humana. Contentar-me-ei em selecionar alguns estádios típicos. Na vida primitiva e nas condições da sociedade primitiva raramente encontramos algum vestígio da ideia de um espaço abstrato. O espaço primitivo é um espaço de ação; e a ação está centrada em torno de necessidades e interesses práticos imediatos.” (CASSIRER, pg.76-77)
“Do ponto de vista da mentalidade e da cultura primitivas é, com efeito, tarefa quase impossível dar esse passo decisivo, único capaz de nos levar do espaço da ação a um conceito teórico ou científico do espaço – ao espaço da geometria, no qual foram suprimidas todas as diferenças concretas da nossa experiência sensória imediata. Já não temos um espaço visual, táctil, acústico ou olfativo. O espaço geométrico faz abstração de toda a variedade e de toda a heterogeneidade que nos são impostas pela natureza dessemelhante dos nossos sentidos. Temos então um espaço homogêneo, universal; e só por meio desta forma nova e característica do espaço o homem pôde chegar ao conceito de uma ordem cósmica única, sistemática. Semelhante ideia, da unidade e legitimidade do universo, nunca poderia ter sido alcançada sem a de um espaço uniforme. Mas foi preciso que se passasse muito tempo para que este passo pudesse ser dado.” (CASSIRER, pg.80-81)
“O nativo se acha perfeitamente familiarizado com o curso do rio, mas esta familiaridade está bem longe do que podemos denominar conhecimento em sentido abstrato, teórico; significa apenas apresentação, ao passo que o conhecimento inclui e pressupõe a representação. A representação de um objeto é um ato muito diferente do seu simples manuseio.” (CASSIRER, pg.81)
“Na história da cultura humana, essa grande generalização que conduziu à concepção de uma ordem cósmica, ‘parece ter sido iniciada pela astronomia babilônica. Nela encontramos a primeira prova positiva de um pensamento que transcende a esfera da vida prática e concreta do homem, que se atreve a abarcar todo o universo numa visão compreensiva, Por esta razão, a cultura babilônica tem sido considerada como o berço de toda a vida cultural. Muitos estudiosos sustentaram que todas as concepções mitológicas, religiosas e científicas do gênero humano provieram dessa fonte. Não discutirei aqui estas teorias pam babilônicas, 1 pois desejo formular outra pergunta. Será possível alegar uma razão para o fato de não terem sido os babilônicos apenas os primeiros a observar os fenômenos celestes, mas também os primeiros a estabelecer os fundamentos de, uma astronomia e de uma cosmologia científicas? A importância dos fenômenos celestes nunca foi completamente descurada.” (CASSIRER, pg.82-83)
“De acordo com Neugebauer, a análise crítica de todas as fontes disponíveis conduz a uma interpretação diferente, tornando-se claro que o progresso realizado na astronomia babilônica não era um fenômeno isolado. Dependia de um fato mais fundamental- dependia do descobrimento e do emprego de um novo instrumento intelectual.” (CASSIRER, pg.82)
“Na astronomia babilônica, todavia, só encontramos as primeiras fases do grande processo, que final” mente conduziu à conquista intelectual do espaço e ao descobrimento de uma ordem cósmica, de um sistema do universo.” (CASSIRER, pg.84-85)
“A astronomia babilônica, em seu conjunto, ainda e uma interpretação mítica do universo’ já não se restringiria à estreita esfera do espaço concreto, corpóreo, primitivo. Transporta-se o espaço, por assim dizer, da terra para o céu.” (CASSIRER, pg.84-85)
“Quando o homem, pela primeira vez, ergueu os olhos para o céu, não foi para satisfazer a uma curiosidade meramente intelectual. O que realmente buscava no céu era seu próprio reflexo e a ordem do seu universo humano.” (CASSIRER, pg.84-85)
“A astronomia não poderia surgir senão nesta forma mítica e mágica – em forma de astrologia. Preservou este caráter por muitos milhares de anos; em certo sentido, era o caráter que ainda prevalecia nos primeiros séculos de nossa própria época, na cultura da Renascença. O próprio Kepler, o verdadeiro fundador de nossa astronomia científica, precisou lutar a vida inteira com este problema. Finalmente, porém, foi preciso dar o passo derradeiro. A astronomia suplanta a astrologia; o espaço geométrico ocupa o lugar do espaço mítico e mágico. A forma falsa e errônea de pensamento simbólico foi a primeira a preparar o terreno para um novo e verdadeiro simbolismo, o da ciência moderna.”(CASSIRER, pg.84-85)
“Uma das primeiras e mais difíceis tarefas da filosofia moderna foi compreender este simbolismo em seu verdadeiro sentido e em toda sua significação. Se estudarmos a evolução do pensamento cartesiano, veremos que Descartes não começou com o seu Cogito ergo sum, mas com o conceito e o ideal de uma mathesis universalis, baseado num grande descobrimento matemático – a geometria analítica. Com ela o pensamento simbólico avançou outro passo, que teria as mais importantes conseqüências sistemáticas.”(CASSIRER, pg.86-87)
“Encontramos o mesmo progresso característico se passarmos do problema do espaço ao problema do tempo. É verdade que não há apenas rigorosas analogias, mas também diferenças características no desenvolvimento de ambos os conceitos. No dizer de .Kant, o espaço é a forma de nossa “experiência exterior”, o tempo é a de nossa “experiência interior.” (CASSIRER, pg.86-87)
“O próprio tempo é considerado, a princípio, não como forma específica da vida humana, mas como condição geral da vida orgânica, existente na medida em que se desenvolve no tempo. Não é uma coisa, mas um processo – uma corrente contínua, incessante, de acontecimentos, onde jamais nada se repete com a mesma forma idêntica. O que disse Heráclito vale para toda a vida orgânica: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”.” (CASSIRER, pg.86-87)
“O organismo nunca está localizado num instante isolado. Em sua vida, os três modos do tempo – passado, presente e futuro – foram um todo que não pode ser desagregado em elementos individuais.” (CASSIRER, pg.86-87)
“Um dos mais distintos fisiologistas do século XIX, Ewald Hering, defendeu a teoria de que a memória deve ser considerada como a função geral de toda a matéria orgânica. 1 Não é apenas um fenômeno da nossa vida consciente, mas se estende sobre todo o domínio da natureza viva, teoria aceita e desenvolvida por R.” (CASSIRER, pg.90-91)
“A memória e a hereditariedade são dois aspectos da mesma função orgânica. Todo estímulo que atua sobre um organismo deixa nele um “engrama” *, um traço fisiológico definido; e todas as futuras reações do organismo dependem da cadeia desses engramas, do encadeado “complexo engrâmico”.” (CASSIRER, pg.90-91)
“O conceito antropológico de mneme, ou memória, é algo muito diferente. Se compreendermos a memória como função geral de toda a matéria orgânica, estaremos indicando apenas que o organismo preserva alguns traços de sua experiência anterior e que estes traços têm influência definida sobre suas reações ulteriores.” (CASSIRER, pg.90-91)
“A memória supõe um processo de reconhecimento e identificação, um processo ideacional de natureza complexíssima. Não é preciso apenas que as impressões anteriores se repitam; é necessário também que sejam ordenadas, localizadas e relacionadas com diferentes pontos no tempo. Esta localização não é possível sem a concepção do tempo como um plano geral – como uma ordem serial, que compreende todos os acontecimentos individuais. A consciência do tempo implica necessariamente o conceito de uma ordem serial dessa espécie, correspondente àquele outro plano que chamamos espaço.” (CASSIRER, pg.90-91)
“Não se trata unicamente de uma repetição, senão de um renas cimento do passado; supõe um processo criativo e construtivo. Não basta recolhermos dados isolados da nossa experiência passada; precisamos realmente recordá-los, organizá-Ios, sintetizá-los e reuni-los num foco de pensamento. Esta espécie de recordação nos dá a forma humana característica da memória e a distingue de todos os outros fenômenos da vida animal ou orgânica.” (CASSIRER, pg.90-91)
“De acordo com o seu ponto de vista, desenvolvido em Matiere et Mémoire, a memória é um fenômeno muito mais profundo e complexo. Significa “interiorização” e intensificação; significa interpenetração de todos os elementos de nossa vida passada.” (CASSIRER, pg.90-91)
“A referência ao futuro é apreendida pela consciência mais depressa do que a referência ao passado”. Em nossa vida ulterior esta tendência cada vez mais se acentua. Vivemos muito mais de nossas dúvidas e temores, ansiedades e esperanças ligadas ao futuro, do que de nossas recordações ou de nossas experiências presentes. Isto se apresentaria, à primeira vista, como um discutível dom do homem, pois introduz um elemento de incerteza em sua vida, estranho a todas as outras criaturas. Dir-se-ia que o homem seria mais sábio e feliz se se libertasse dessa idéia fantástica, dessa miragem do futuro. Filósofos, poetas e grandes mestres religiosos advertiram os homens, em todos os tempos, contra essa fonte de constantes decepções.” (CASSIRER, pg.92-94)
“Mas o homem nunca pôde seguir este conselho. Pensar no futuro e nele viver é parte integrante de sua natureza.” (CASSIRER, pg.92-94)
“A maioria dos instintos animais deve ser interpretada deste modo. As ações instintivas não são inspiradas por necessidades imediatas; são impulsos dirigidos para o futuro e, não raro, para um futuro remotíssimo. O efeito destas ações não será notado pelo animal que as executa, uma vez que pertence à vida da geração seguinte.” (CASSIRER, pg.92-94)
“Nada disso requer, nem demonstra, alguma “idéia”, alguma concepção ou consciência do futuro nos animais inferiores. Mas logo que nos aproximamos da vida dos animais superiores, o caso se torna duvidoso.” (CASSIRER, pg.92-94)
Baseados nestas provas, parece podermos inferir que a antecipação de acontecimentos futuros e até o planejamento de futuras ações não estão inteiramente fora do alcance da vida animal. Mas nos seres humanos a consciência do futuro sofre a mesma mudança característica de significado que já notamos em rela- ção à idéia do passado. O futuro não é apenas uma imagem, mas torna-se um “ideal”. O significado desta transformação manifesta-se em todas as fases da vida cultural do homem.” (CASSIRER, pg.92-94)
“Mas tudo isto pertence ao domínio da prudência, não ao da sabedoria. O termo “prudência” (prudentia) está etimologicamente relacionado ao de “providência” (providentia).” (CASSIRER, pg.92-94)
Resumo: Espaço e tempo sempre foram aspectos relacionados diretamente à existência humana de significativa importância filosófica. Mais além, pode-se entender que a experiência humana ocorre por meio do espaço e do tempo. Novamente pode-se comparar à noção de espaço e tempo desenvolvida no reino animal em relação à desenvolvida pelo homem. Para os demais animais, bem como falado anteriormente, as noções de espaço e tempo tem finalidade puramente prática, ou seja, servem única e exclusivamente para fins de sobrevivência. O homem por sua vez, além da utilização prática, também busca aprender, compreender esses fatores, possibilitando a criação de artefatos que lhe dão condições para ir além do estabelecido por sua condição natural. Como por exemplo, podemos dizer que o homem, por limitações da própria natureza, jamais teria condições de viajar até a lua e lá desembarcar. Mas foi o conhecimento acerca do espaço e do tempo e a criação de artefatos que lhe permitiu alcançar esse objetivo simbólico.
PARTE II. O HOMEM E A CULTURA
CAPÍTULO 6. DEFINIÇÃO DO HOMEM EM TERMOS DE CULTURA
“Sócrates abordara o homem individual. Platão reconheceu as limitações do método socrático de investigação; e declarou que para resolver o problema precisamos projetá-lo num plano mais amplo.” (CASSIRER, pg.109-111)
“Deve-se estudar o homem, não em sua vida individual, mas em sua vida política e social. No entender de Platão, a natureza humana é como um texto difícil, cujo significado precisa ser decifrado pela filosofia; mas escrito, em nossa experiência pessoal, em letras tão miúdas que se torna ilegível. O primeiro trabalho da filosofia será ampliar essas letras. A filosofia não poderá dar-nos uma teoria satisfatória do homem enquanto não tiver desenvolvido uma teoria do Estado.” (CASSIRER, pg.109-111)
“Mas a vida política não é a única forma de existência humana em comum. Na história do gênero humano, o Estado, em sua forma presente, é um produto tardio do processo de civilização. Muito antes de haver descoberto esta forma de organização social, o homem fizera outras tentativas para organizar seus sentimentos, desejos e pensamentos. Tais organizações e sistematizações estão contidas na linguagem, no mito, na religião e na arte.” (CASSIRER, pg.109-111)
“Deste ponto de vista sociológico, Comnte ataca o psicologismo de sua época. Uma das máximas fundamentais de sua filosofia é que nosso método de estudar o homem deve ser de fato, subjetivo, mas não pode ser individual, pois o tema que desejamos conhecer não é a consciência individual, mas o tema universal Se nos referirmos a este tema com a expressão “humanidade”, precisaremos afirmar que não é a humanidade que deve ser explicada pelo homem, senão o homem pela humanidade. O problema precisa ser reformulado e reexaminado; precisa ser colocado sobre bases mais amplas e mais sólidas. Estas bases se encontram no pensamento sociológico e histórico. “Para conhecer-te”, diz Comte, “conhece a história”.” (CASSIRER, pg.109-111)
“No Cours de philosophie positive de Comte podemos acompanhar, passo a passo, a transição por que passaram os ideais metodológicos no século XIX.” (CASSIRER, pg.109-111)
“A medida que nos aproximamos do mundo humano, os princípios da matemática ou das ciências naturais não se invalidam, mas já não bastam. Os fenômenos sociais estão sujeitos às mesmas regras que os fenômenos físicos, mas têm um caráter diferente e muito mais complicado. Não devem ser descritos apenas em termos de física, química e biologia. “Em todos os fenômenos sociais”, diz Comte.” (CASSIRER, pg.112-113)
“Até o século XVIII ainda era uma teoria geralmente aceita a de que existe acentuada diferença e, em alguns aspectos, nítido contraste, entre a estrutura anatômica do homem e a dos outros animais.” (CASSIRER, pg.112-113)
“Se aceitarmos esta explanação, a diferença entre inteligência e instinto se torna desprezível; é uma simples diferença de grau, não de qualidade. O próprio termo inteligência passa a ser inútil e cientificamente sem significação.” (CASSIRER, pg.112-113)
“Depois deste breve exame dos diversos métodos até agora empregados na resposta à pergunta: Que é o homem? chegamos à nossa questão central. Serão estes métodos suficientes e exaustivos? Ou existirá ainda outro enfoque da filosofia antropológica? Existirá outro caminho aberto além da introspecção psicológica, da observação e da experiência biológicas e da investigação histórica? Procurei descobrir um enfoque alternativo dessa natureza em minha Filosofia das Formas Simbólicas. O método deste trabalho não significa, de maneira alguma, uma inovação radical; não procura suprimir, mas completar pontos de vista anteriores. A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que, se existe alguma definição da natureza ou “essência” do homem, só pode ser compreendida como funcional, não como substancial. Não podemos definir o homem por nenhum princípio inerente que constitui sua essência metafísica – nem defini-lo por nenhuma faculdade ou instinto inatos, passíveis de serem verificados pela observação empírica. A característica notável do homem, a marca que o distingue, não é sua natureza metafísica ou física – mas seu trabalho. É este trabalho, o sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo de “humanidade”. A linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a história são os constituintes, os vários setores desse círculo. Uma “filosofia do homem” seria, portanto, uma filosofia que nos desse a visão da estrutura fundamental de cada uma dessas atividades humanas, e que, ao mesmo tempo, nos permitisse compreendê-Ias como um todo orgânico. A linguagem, a arte, o mito, a religião não são criações isoladas ou fortuitas, são unidas entre si por um laço comum; este não é um vinculum substantiale, como foi concebido e descrito pelo pensamento escolástico; é antes um vinculum functionale. É a função básica da linguagem, do mito, da arte, da religião que devemos procurar muito além de suas formas e expressões inumeráveis e que, em última análise, devemos tentar rastrear até uma origem comum .” (CASSIRER, pg.115-116)
Resumo: Cassirer justifica a necessidade de que o homem não pode ser estudado apenas em sua singularidade, mas em também em seu contexto sócio, histórico e cultural. O homem não somente o que ele é em sua natureza, mas também o que ele faz em grupo, no caso, em sociedade. A forma pela qual o homem se desenvolve e evolui não se deve somente à si próprio, mas também devido às condições criadas a partir do convívio social. Prova disso são os muitos artefatos e criações que só tem sentido em coletividade.
CAPÍTULO 7. MITO E RELIGIÃO
“Estudando este tratado, desejamos sorrir das interpretações alegóricas que, ao leitor moderno, na maioria dos casos, parecem extremamente ingênuas. Não obstante, nossos próprios métodos, muito mais requintados e sofisticados, estão, em grande parte, sujeitos à mesma objeção. Sua “explicação” dos fenômenos míticos torna-se, no fim, uma inteira negação dos mesmos. O mundo mítico aparece como um mundo artificial, um pretexto para outra coisa qualquer; em lugar de ser uma crença, é um simples faz-de-conta. O que distingue estes métodos modernos das formas primitivas de interpretação alegórica é que eles já não consideram o mito como mera invenção feita com um propósito especial. Embora o mito seja fictício, é uma ficção inconsciente; a mente primitiva não tinha consciência do sentido das próprias criações. Mas a nós, com nossa análise científica, cabe revelar este significado – desvendar o rosto verdadeiro, oculto por máscaras inumeráveis. Esta análise pode seguir dupla direção, aplicando um método objetivo ou subjetivo. No primeiro caso, tentará classificar os objetos do pensamento mítico; no segundo, tentará o mesmo com seus motivos. Uma teoria parece ser tanto mais perfeita quanto mais caminhe neste processo de simplificação. Se, ao cabo de tudo, conseguir descobrir um único objeto ou um simples motivo, que contenha e compreenda todos os outros, terá atingido seu objetivo e cumprido sua tarefa. A etnologia e a psicologia modernas experimentaram os dois caminhos. Muitas escolas etnológicas e antropológicas partiram da pressuposição de que, em primeiro lugar, precisamos procurar um centro objetivo do mundo mítico, por outro lado, na teoria psicanalítica do mito, proposta por Freud, todas estas criações foram consideradas como variações e disfarces de um mesmo tema psicológico – a sexualidade.” (CASSIRER, pg.124-126)
“Será mais fácil descrever este princípio se abordarmos o problema de um ângulo diferente. O mito, por assim dizer, tem duas caras: de um lado, mostra- -nos uma estrutura conceitual; de outro, uma estrutura perceptual. Não é uma simples massa de idéias desorganizadas e confusas; depende de um modo definido de percepção. Se o mito não percebesse o mundo de forma diferente, não poderia julgá-lo ou interpretá-lo em sua maneira específica. Precisamos voltar a este estrato mais profundo da percepção a fim de compreender o caráter do pensamento mítico. O que nos interessa no pensamento empírico são as características constantes da nossa experiência sensorial; nela fazemos sempre uma distinção entre o que é substancial ou acidental, necessário ou contingente, invariável ou transitório. Essa discriminação nos conduz à concepção de um mundo de objetos físicos, dotado de qualidades fixas e determinadas. Mas tudo isto envolve um processo analítico, que se opõe à estrutura fundamental da percepção e do pensamento mítico. O mundo mítico, por assim dizer, se encontra num estádio muito mais fluido e flutuante do que o nosso mundo teórico de coisas e propriedades, de substâncias e acidentes. No intuito de apreender e descrever essa diferença podemos dizer que o que o mito percebe principalmente não são caracteres objetivos, mas fisiognomônicos. No sentido empírico ou científico, a natureza pode ser definida como “a existência das coisas na medida em que é determinada por leis gerais”. Uma “natureza” assim não existe para os mitos. O mundo do mito é dramático – de ações, forças e poderes conflitantes. Em todo fenômeno da natureza nada mais vê que o embate destes poderes. A percepção mítica está sempre impregnada destas qualidades emocionais: o que se vê ou se sente é cercado de uma atmosfera especial – de alegria ou tristeza, angústia, excitação, exultação ou depressão. E não podemos falar de “coisas” como de matéria morta ou indiferente. Todos os objetos são benignos ou malignos, amigos ou inimigos, familiares ou sobrenaturais, encantadores e fascinantes ou repelentes e ameaçadores. Podemos reconstruir facilmente esta forma elementar da experiência humana, pois nem mesmo na vida do homem civilizado ela perdeu seu poder original. Ainda que estejamos sob tensão de violenta emoção, teremos esta concepção dramática de todas as coisas. Já não apresentam seu aspecto habitual; mudam abruptamente de fisionomia; mostram-se coloridas com o matiz específico de nossas paixões, de amor ou ódio, de medo ou esperança. Dificilmente poderá haver maior contraste do que o existente entre esta direção original de nossa experiência e o ideal de verdade, introduzido pela ciência. Todos os esforços do pensamento científico são dirigidos no sentido de apagar qualquer vestígio dessa primeira visão. À nova luz da ciência, a percepção mítica tende a desaparecer. Mas isto não significa que os dados de nossa experiência fisiognomônica sejam destruídos e aniquilados como tais. Perderam todo o valor objetivo ou cosmológico, mas seu valor antropológico persiste. Em nosso mundo humano não podemos negá-los nem passar sem eles, pois mantêm seu lugar e sua significação.” (CASSIRER, pg.127-128)
“Por conseguinte, se quisermos explicar o mundo da percepção e da imaginação mítica não devemos começar com uma crítica de ambas do ponto de vista de nossos ideais teóricos de conhecimento e de verdade, mas acolher as qualidades da experiência mítica em seu “imediato caráter qualitativo”. O que precisamos não é de uma explicação de simples pensamentos ou crenças, mas de uma interpretação da vida mítica. O mito não é um sistema de credos dogmáticos. Consiste, muito mais, em ações do que em meras imagens ou representações. O fato de haver este ponto de vista prevalecido, cada vez mais, é um sinal de progresso definido na antropologia moderna e na moderna história da religião. Hoje parece ser máxima geralmente adotada que o ritual é anterior ao dogma, não só no sentido histórico como psicológico. Ainda que chegássemos a analisar o mito em seus últimos elementos conceituais, nunca aprenderíamos, com este processo analítico, seu princípio vital, que é dinâmico e não estático; só pode ser descrito em termos de ação. O homem primitivo não expressa seus sentimentos e emoções por meros símbolos abstratos, mas de modo concreto e imediato; e precisamos estudar o conjunto desta expressão a fim de tomarmos consciência da estrutura do mito e da religião primitiva.” (CASSIRER, pg.131)
“Nesse sentido, não há diferença radical entre o pensamento mítico e o pensamento religioso. Ambos se originam dos mesmos fenômenos fundamentais da vida humana. No desenvolvimento da cultura humana não podemos fixar um ponto onde termina o mito e a religião começa. Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos e repassada deles. Por outro lado, até em suas formas mais grosseiras e rudimentares, o mito contém motivos que, em certo sentido, antecipam os ideais religiosos mais elevados, que vieram depois. Desde o princípio, o mito é uma religião em potencial. O que leva de um estádio ao outro não é uma súbita crise de pensamento nem uma revolução de sentimentos.” (CASSIRER, pg.143)
Resumo: Mito e religião talvez sejam duas formas de expressão simbólicas mais antigas utilizadas pelo ser humano. Ambas nascem da necessidade do ser humano de procurar dar sentido àquilo que ele não compreende. A criação de um sentido, seja por meio de mitos seja por meio da religião, permite estabelecer um conjunto de valores e crenças necessários para que o homem viver em sociedade. Na falta de explicação, o homem então sua de sua inteligência para criar significados que possam, ainda que temporariamente, satisfazer a necessidade do homem em entender aquilo que o permeia.
REFERÊNCIAS
CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica. [tradução de Vicente Félix de Queiroz]. São Paulo: Mestre Jou, 1977.
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