FICHAMENTO: Enrico Berti: O Método da Filosofia Prática (In: As Razões de Aristóteles)

REFERÊNCIA

BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. Tradução de Dion David Macedo. São Paulo: Loyola, 1998.

 


RESUMO

Premissa
Capítulo 1º — Apodíctica e dialética
– A ciência apodíctica
– A ciência não-apodíctica, ou a inteligência
– A dialética
– Os diversos usos da dialética
– A análise semântica como instrumento da dialética

Capítulo 2º — O método da física
– O “primado” da física e sua “fraqueza”
– A dialética como método da física
– A determinação dialética dos princípios e das causas
– As demonstrações mais “científicas”

Capítulo 3º — O método da metafísica
– O procedimento diaporético
– A semântica ontológica
– A demonstração elenktica
– A teologia “dialética”

Capítulo 4º — O método da filosofia prática
– A intenção tipológica
– O procedimento diaporético
– A phrónesis e o silogismo prático

Capítulo 5º — A retórica
– A racionalidade da “arte”
– Poética e retórica
– Relação entre retórica, dialética e filosofia
– Relação entre retórica, dialética e política


Capítulo 4º — O método da filosofia prática

1)  A intenção tipológica:

  • Objetivo: Realização do bem por meio da ação. O Bem como fim do homem deve ser praticável/realizável, não somente para o indivíduo, mas também para toda Pólis (pois o singular é parte dela);
  • A Ciência Política (Ética) é Legisladora, que prescreve o que deve se fazer e quais ações se abster;
  • Resultado: Difere da Filosofia Teorética – que tem a verdade como fim – pois o fim é a ação prática. Por esse motivo o resultado não é certo nem errado, mas tem o grau de exatidão que se requer quando não se tem como objetivo exclusivo o conhecimento do objeto, mas sim o uso do conhecimento do objeto para algum fim;
  • Paralelo Ciência Política e a Física:
    • Assume como válida a demonstração “geralmente” no lugar de “sempre” (como nas ciências matemáticas);
    • necessita da experiência: a experiência no caso da ciência política é o hábito moral
    • vai do particular para a lei geral
  • Normatividade: O “Que” é a norma, a situação, preposição, juízo ou avaliação; o “Por que” é a tarefa da filosofia prática, qual seja, justificar (racionalmente) a norma. O interessa da justificação não é teorético (cognitivo), mas prático.

2) A phrónesis e o silogismo prático:

A phrónesis — diz Aristóteles — não se ocupa apenas com o conhecimento universal, mas deve também conhecer os casos individuais, pois ela é prática, e a ação concerne sobre os casos individuais. É por isso que alguns que não sabem são mais práticos do que outros que sabem, e também em outros campos o são os experientes (émpeiroi). Se, com efeito, um homem soubesse que as carnes leves são digeríveis e saudáveis, mas ignorasse quais carnes são leves, esse homem não seria capaz de produzir a saúde; poderia, pelo contrário, produzi-la o que sabe ser saudável a carne de galinha. Ora, a phrónesis diz respeito à ação. Portanto, deveríamos possuir ambas as espécies de conhecimento, ou a segunda de preferência à primeira. Mas também neste campo haverá uma [capacidade] arquitetônica (7, 1141 b 15-23).

Talvez a melhor forma de explicar a phrónesis seja por meio do exemplo acima. Aristóteles fala de 2 tipos de conhecimento: um universal e um particular. A virtude da Phrónesis, a deliberação para a ação pode, portanto, ocorrer por essas vias de conhecimento: Ou o agente virtuoso tem o conhecimento de que a carne de galinha é uma carne leve – e por esse motivo sabe que o consumo é próprio para o bem final, qual seja a saúde – ou têm o conhecimento direto da experiência, o de que carne de galinha é saudável.

  • é uma forma de racionalidade igualmente prática, porém não científica;
  • faz uso da razão que lida com os princípios contingentes (não necessários), onde a obra é a “verdade prática” (já a razão de que trata dos princípios necessários inclui as ciências teórícas (“sempre”), físicas/metafísicas e prática (“geralmente”);
  • tb requer experiência de vida;
  • A Filosofia Prática conhece o Universal e dá as diretrizes mais gerais; a phrónesis conhece o particular e aplica as diretrizes gerais ao caso particular (capacidade de aplicar a regra geral ao particular);
  • se refere ao último termo de liberação, ao ato que pode ser praticado;

É a capacidade e o ato de deliberar, de aplicar a regra geral ao particular. É a ação efetiva do agente, que trata diretamente de um caso particular, deliberando sobre o mesmo, seja em função do conhecimento prático, seja em função do conhecimento empírico. (grifo meu).

Outro exemplo:

“Conhecimento é saber que um tomate é fruta. Sabedoria é saber que não se deve usar um tomate em uma salada de frutas.”

 


FICHAMENTO

O MÉTODO DA FILOSOFIA PRÁTICA

– A intenção tipológica –

 

A locução “filosofia prática” foi adotada pela primeira vez justamente por Aristóteles, que no livro II da Metafísica — o famoso “a minúsculo”, que alguns não consideram autêntico, mas que, na realidade, é apenas estranho à série originária — declara:

é justo também denominar a filosofia ciência da verdade. Com efeito, da filosofia teorética é fim a verdade, da prática a obra, visto que os [filósofos] práticos, ainda que investiguem de que modo são as coisas, não estudam a causa por si mesma, mas em relação a alguma outra coisa (1, 993 b 19-23).

 

A filosofia prática, portanto, tem em comum coma teorética o fato de procurar a verdade, ou seja, o conhecimento de como são efetivamente as coisas, e também a causa de como são, ou seja, o fato de ser ciência. Sua diferença em relação à filosofia teorética é que, para esta última, a verdade é fim para si mesma, enquanto para a filosofia prática a verdade não é o fim, mas apenas um meio em vista de outro, ou seja, da ação, sempre situada no tempo presente: não alguma coisa já existente, mas que deve ser feita agora. (BERTI, p.116)

 

A ação, em suma, caracteriza a filosofia prática seja como objetivo seja como objeto, no sentido de que a única região da realidade na qual é possível, segundo Aristóteles, transformar o estado de coisas é a esfera constituída pelas ações humanas. (BERTI, p.117)

 

Vejamos, então, qual é o método desta ciência, isto é, em qual medida a peculiaridade de seu objetivo e de seu objeto influenciam seu modo de proceder.  (BERTI, p.118)

 

Falar de “bem”, entendido como fim do homem, significa falar de algo que é objeto de desejo, de tendência, por parte do homem, isto é, de algo que ainda não se realizou, mas que justamente por isso quer realizar-se e deve poder ser realizado, ou seja, é “praticável” e “deve praticar-se”. Ele, para Aristóteles, não é somente o bem de cada indivíduo, mas é o bem de toda a cidade (pólis), pois o singular é parte dela; por isso a ciência que dele se ocupa é a ciência da cidade, ou a ciência “política”.  (BERTI, p.118)

 

A ciência política não tem somente o objetivo de conhecer o que é o bem supremo, mas propõe-se também a realizá-lo; ou melhor, diz Aristóteles, o conhecimento dele tem grande importância justamente porque, mirando-o como a um alvo, como fazem os arqueiros, “conseguiremos realizar melhor o que deve ser”. portanto o bem não é apenas um ser que se deve conhecer, mas também um “dever ser” que se deve realizar. A ciência política, com efeito, é “legisladora”, prescreve “o que se deve fazer e de quais ações se abster”. Justamente por isso, a propósito do bem supremo do homem, ela se contenta em “delinear ao menos em geral o que ele é” (typo ge perilabéin ti pot’esti) (1094 a 25), isto é, contenta-se em conhecê-lo, por assim dizer, no “tipo”, no esquema geral, nas linhas fundamentais, sem considerar detalhadamente suas implicações particulares. 

[…]

Isso significa que o resultado em questão não é o mais exato que se possa desejar, mesmo sem ser errado ou falso: ele tem o grau de exatidão que se requer de uma exposição que não tem como objetivo exclusivo um conhecimento perfeito de certo objeto, mas quer servir-se do conhecimento dele em vista de um fim posterior. Em suma, o caráter “geral” ou “tipológico” da ciência política é estritamente vinculado à sua intenção prática. (BERTI, p.119)

 

A proclamação explícita do caráter tipológico da ciência política está contida no capítulo I da Ética a Nicômaco, inteiramente dedicado à ilustração do método, no qual Aristóteles, justamente a propósito da “exposição política” (méthodos… politiké), declara:

Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por igual, assim como não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes mecânicas. Ora, as ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá- las como existindo por convenção apenas, e não por natureza. E em torno dos bens há uma flutuação semelhante, pelo fato de serem prejudiciais a muitos: houve, por exemplo, quem perecesse devido à sua riqueza, e outros por causa de sua coragem (13, 1094 b 11-19).

BERTI (p.120)

 

A ciência política não pode, porém, descer aos detalhes, isto é, determinar com absoluta precisão, exatidão ou rigor (akribés) o que é belo, justo e bom em qualquer circunstância ou em qualquer caso particular, mas deve limitar-se a indicar o que é belo, justo e bom em geral. Também aqui, portanto, como nos Tópicos, a intenção tipológica é contraposta à exatidão, ao rigor. Recorde-se que, no livro II da Metafísica, Aristóteles dissera a mesma coisa também a propó- sito da física, quando afirmara que não se deve pretender a exatidão da matemática também nas ciências de realidades materiais. (BERTI, p.120)

 

Contudo, o paralelismo, do ponto de vista metodológico, entre a ciência política e a física é por ele posteriormente desenvolvido:

Ao tratar, pois, de tais assuntos, e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais (pakhylós kai typo); e, ao falar de coisas que são geralmente (hos epí to poly) verdadeiras e com base em premissas da mesma espécie, só poderemos tirar conclusões da mesma natureza (1094 b 19-22).

Aqui, de um lado, é reforçada a intenção tipológica própria da ciência política, enquanto, de outro, também é aplicada a ela a figura da demonstração válida não “sempre”, mas “geralmente”, isto é, na maior parte dos casos, regra (com algumas exceções) que vimos ser própria da física e que, em relação aos Segundos analíticos, não tira o caráter de ciência verdadeira do discurso em questão. Deve-se supor que “geralmente” são os bens: por exemplo, a riqueza geralmente é um bem, ainda que em alguns casos produza danos. (BERTI, p.121-122)

 

Há, enfim, outro motivo de afinidade entre a filosofia prática, ou ciência política, e a física: ambas necessitam da experiência. Continua Aristóteles:

Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre a ciência política. Com efeito, ele não tem experiência ápeiros, isto é, sem experiência] dos fatos da vida, e é em torno destes que giram nossas discussões (1095 a 2-4).

É claro, no entanto, que aqui por experiência não se entende simplesmente o conhecimento sensível, isto é, as “sensações”, mas a experiência da vida, isto é, o conhecimento repetido de certas situações devido ao fato de tê-las vivido. A necessidade dessa experiência confere ao partidário da filosofia prática certo caráter que veremos ser recorrente também no “sábio”, isto é, naquele que, mesmo não sendo filósofo, sabe como deve comportar-se em cada caso.

Típica da filosofia prática, não da teorética — mesmo sendo, ainda uma vez, comum também à “sabedoria” —, é, ao contrário, a última característica indicada por Aristóteles:

Além disso [o jovem], como tende a seguir suas paixões, tal estudo lhe será vão e improfícuo, pois o fim que se tem em vista não é o conhecimento, mas a ação. E não faz diferença que seja jovem em anos ou no caráter; o defeito não depende da idade, mas do modo de viver e de seguir um após outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum; mas aos que desejam e agem de acordo com um princípio racional o conhecimento desses assuntos trará grande vantagem (1095 a 4-11).

O requisito aqui indicado para seguir com proveito um curso de filosofia prática é certa capacidade de dominar as paixões, em geral ausente nos jovens ou nos imaturos. Ele é tornado necessário pela intenção prática dessa ciência, que não é apenas a de fazer conhecer o bem, mas de ajudar a praticá-lo, isto é, de tornar melhores. De nada serviria, com efeito, conhecer o bem se em seguida não existisse a força para praticá-lo. (BERTI, p.123)

 

[´…] pois é próprio da física partir das coisas mais conhecidas a nós, isto é, do “quê”, do dado de fato, para remontar na direção daquelas mais conhecidas em absoluto, isto é, mais inteligíveis, que são os princípios, ou o “porquê”. Contudo, bem diferente é o significado que, na filosofia prática, têm o “quê” e o “porquê”. O primeiro, com efeito, parece consistir na norma, ou seja, na indicação de “que” certa coisa é boa, ou de “que” se deve fazer certa coisa; enquanto o segundo parece ser a justificação da norma, sua fundação racional.

Ou melhor, segundo Aristóteles, também em relação ao conhecimento, uma vez que se possuam, por meio de uma boa educação, os princípios mais conhecidos a nós, isto é, o quê, a norma, é mais fácil remontar ao porquê, à justificação racional da norma. O método, portanto, é sempre o de proceder das coisas mais conhecidas a nós, isto é, da experiência, àquelas mais conhecidas em si, isto é, aos princípios, mas ainda uma vez por experiência entende-se um hábito moral adquirido, não um mero conhecimento exterior. Salvas essas diferenças, a filosofia prática apresenta-se, sob o aspecto metodológico, não dessemelhante da física, no sentido em que também ela investiga a fundação racional da experiência e, por isso, vai do caso particular para a lei geral, ainda que se contente em determinar esta última de maneira sumária e genérica, pois o que lhe interessa não é tanto sua formulação rigorosa quanto sua aplicação prática. (BERTI, p.125)

 

Aristóteles, aqui, distingue claramente três tipos de princípios: aqueles aprendidos por meio da indução, aqueles descobertos por meio da sensação e aqueles aprendidos por meio de hábitos.

Devemos proceder do mesmo modo em todos os outros assuntos, para que nossa tarefa principal não fique subordinada a questões de menor monta. E tampouco devemos reclamar a causa em todos os assuntos por igual. Em alguns casos basta que o fato esteja bem estabelecido, como sucede com os primeiros princípios: o fato é a coisa primária ou primeiro princípio. Ora, dos primeiros princípios descobrimos alguns pela indução (epagogé), outros pela sensação, outros como que por hábito, e outros ainda de diferentes maneiras. Mas a cada conjunto de princípios devemos investigar da maneira natural e esforçar-nos para expressá-los com precisão, pois que eles têm grande influência sobre o que se segue. Diz-se, com efeito, que o começo é mais que metade do todo, e muitas das questões que formulamos são aclaradas por ele (1098 a 33-b 9).

O terceiro tipo de princípios, aqueles que se aprendem por meio de hábitos, são os princípios da filosofia prática. Apenas para eles vale a afirmação de que O princípio e o primeiro é o “quê”: como já vimos, eles consistem no estabelecimento de uma norma, na indicação de que certa ação é boa (ou ruim) e, portanto, deve ser feita (ou evitada). Neste caso, portanto, o “quê” não significa uma mera situação de fato, mas indica em geral uma proposição, um juízo, uma avaliação, apresentada sem um “porquê”, sem uma fundação racional. Contudo, é claro que a tarefa da filosofia prática é fundar este tipo de princípios, procurar seu porquê, a causa, a razão, mesmo que de modo sumário e geral, ou seja, por meio da aproximação tipológica, na medida em que seu interesse fundamental não é cognitivo, isto é, teorético, mas prático. Com a filosofia prática, portanto, estamos na presença de uma forma de racionalidade original, específica, nitidamente diferente da matemática como estrutura e grau de rigor, mais afim à física sob este último aspecto, mas também diferente dela por sua intenção.

 

 

– A phrónesis e o silogismo prático –

Além da filosofia prática, ou ciência política, Aristóteles descreveu outra forma de racionalidade, igualmente prática, mas não filosófica ou científica (no sentido antigo): trata-se da phrónesis, termo traduzível por “sabedoria” ou “prudência”, mas que, enfim, por ter alcançado na cultura contemporânea certa notoriedade em sua forma original, talvez seja melhor conservar inalterado.

Justamente no debate atual sobre as formas de racionalidade não-científica a phrónesis foi frequentemente indicada como a principal e, por vezes, a única forma de racionalidade prática admitida por Aristóteles e, por isso, como o modelo de filosofia não-científica que alguns autores hoje contrapõem às ciências. 

Na realidade, para Aristóteles, entre filosofia prática e phrónesis há uma diferença precisa, ainda que as duas formas de racionalidade apresentem inegavelmente algumas afinidades: ou melhor, esta distinção é justamente uma conquista de Aristóteles em relação à indistinção entre elas ainda presente em Platão. (BERTI, p. 143)

 

O lugar clássico no qual Aristóteles descreve a phrónesis é o livro VI da Ética a Nicômaco […]

Nele Aristóteles recorda, antes de tudo, que a parte racional da alma ou “razão” (diánoia) compreende, por sua vez, duas partes, uma que tem por objeto as realidades “cujos princípios não podem ser diferentemente”, isto é, necessários, outra que tem por objeto os princípios que podem ser diferentemente, isto é, contingentes. A primeira parte é dita “científica” (epistemonikón), enquanto a segunda, “calculadora” (logistikón). É evidente que na primeira entram todas as ciências teoréticas, seja a matemática, cujos objetos são necessários, seja a física e a metafísica, cujos objetos têm ao menos princípios necessários; mas nela entram também as ciências práticas — cujos objetos, isto é, os bens, têm princípios, como vimos, ao menos “geralmente” necessários —, que, portanto, do ponto de vista epistemológico, são equiparáveis àquelas que têm princípios necessários.

Ambas as partes da alma racional, ou seja, da razão, prossegue Aristóteles, têm como “obra” a verdade: a científica tem como obra a verdade pura e simples, isto é, o simples conhecimento de como são as coisas, enquanto a calculadora tem como obra a “verdade prática”, isto é, “a verdade de acordo com o desejo reto”. A propósito desta última, Aristóteles explica que a ação (práxis) tem como princípio a “escolha” (proháiresis), a qual é o resultado do encontro entre o desejo de chegar a certo fim e o cálculo dos meios necessários para alcançá-lo, ou “deliberação”. Quando o desejo é reto, isto é, é voltado a um fim bom, e o cálculo verdadeiro, quer dizer, quando indica os meios realmente necessários, tem-se a “verdade prática”. (BERTI, p. 144-145)

 

Bem diferente é o estatuto da phrónesis, que para Aristóteles é uma virtude, ou melhor, a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional, isto é, da razão prática. Ela, com efeito, é por ele concebida como a capacidade de deliberar bem, ou seja, de calcular exatamente os meios necessários para alcançar um fim bom. Ora, visto que ninguém delibera sobre as coisas que não podem ser diferentemente, a phrónesis pertencerá àquela parte da razão que tem por objeto as realidades que podem ser diferentemente, que não são nem “sempre” nem “geralmente”: por este motivo ela não é, certamente, uma ciência e, portanto, difere profundamente da filosofia prática, que, ao contrário, é uma ciência e tem por objeto realidades cujos princípios são, pelo menos, geralmente. (BERTI, p.146)

 

Como modelo de phrónimos (quem possui a phrónesis), isto é, de “sábio” ou “prudente”, Aristóteles indica Péricles (1140 b 8), o grande líder político que governara Atenas, certamente não um filósofo de profissão; enquanto como filósofo prático, com o qual discutir de igual para igual, talvez para dissentir, Aristóteles indica Sócrates (13, 1144 b 18, 28), certamente não um líder político, nem nunca governador de sua cidade: também daí resulta a diferença por ele estabelecida entre a phrónesis e a filosofia prática. (BERTI, p. 146)

 

Com mais forte razão a phrónesis difere da sabedoria: a primeira, efetivamente, ocupa-se do homem, isto é, das realidades humanas, enquanto a segunda, como vimos, ocupa-se de realidades mais elevadas que o homem, das realidades divinas. Se o modelo da phrónesis, como vimos, é Péricles, os modelos de sabedoria indicados por Aristóteles são Tales e Anaxágoras, alhures considerados físicos, mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princípios supremos) (cap. 7).

A phrónesis também, contudo, é política (como já sugere o exemplo de Péricles), pelo mesmo motivo pelo qual o é a filosofia prática, isto é, porque o verdadeiro bem do homem, segundo Aristóteles, não é o bem do indivíduo singular, mas o da pólis: ou melhor, conforme se considere o bem do indivíduo o bem da família, da qual o indivíduo é parte, ou o bem da cidade, da qual a família é parte, ter-se-á uma phrónesis pura.e simples (assim é entendido, com efeito, comumente o termo), uma phrónesis “econômica” e uma phrónesis “política”.

(BERTI, p. 147)

 

Além das mencionadas diferenças, Aristóteles indica também algumas afinidades precisas entre a phrónesis e a filosofia prática:

 

Por este motivo, sendo não apenas capacidade racional, como, por exemplo, a ciência, ou, conforme o que veremos, a arte, mas também virtude moral, a phrónesis não admite que haja uma virtude dela, isto é, o seu aperfeiçoamento, na medida em que já é perfeição ela mesma; nem, entre aqueles que a possuem, é preferível aquele que erra voluntariamente como, ao contrário, acontece com aqueles que possuem a ciência ou a arte (nas quais saber errar pode ser signo de habilidade, ao passo que errar inconscientemente é signo de ignorância); nem, enfim, uma vez adquirida, pode ser esquecida, como pode ocorrer no caso da ciência ou da arte (1140 b 21-30). Tudo isso mostra, como se vê, que na phrónesis o momento cognitivo e o prático estão íntima e reciprocamente vinculados.  (BERTI, p.148)

 

Outra afinidade entre a phrónesis e a filosofia prática repousa no fato de que ambas requerem certa experiência de vida e que, por isso, dificilmente podem ser possuídas pelos jovens. A passagem relativa a este conceito é densa de significado, por isso merece ser citada integralmente.

A phrónesis — diz Aristóteles — não se ocupa apenas com o conhecimento universal, mas deve também conhecer os casos individuais, pois ela é prática, e a ação concerne sobre os casos individuais. É por isso que alguns que não sabem são mais práticos do que outros que sabem, e também em outros campos o são os experientes (émpeiroi). Se, com efeito, um homem soubesse que as carnes leves são digeríveis e saudáveis, mas ignorasse quais carnes são leves, esse homem não seria capaz de produzir a saúde; poderia, pelo contrário, produzi-la o que sabe ser saudável a carne de galinha. Ora, a phrónesis diz respeito à ação. Portanto, deveríamos possuir ambas as espécies de conhecimento, ou a segunda de preferência à primeira. Mas também neste campo haverá uma [capacidade] arquitetônica (7, 1141 b 15-23).

O caráter prático, isto é, concernente à ação, próprio da phrónesis exige, portanto, que ela possua o conhecimento dos casos individuais, pois a ação se produz sempre em situações individuais: por isso a phrónesis requer certa experiência, que é justamente conhecimento dos particulares. A phrónesis, contudo, inclui, em alguma medida, também o conhecimento do universal, no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma característica geral, como mostra o exemplo dado por Aristóteles. Não basta, para produzir a saúde (ação), saber que as carnes leves são saudáveis (característica universal), caso não se saiba que a carne de galinha é leve (caso individual ou particular) e, portanto, que a carne de galinha é saudável (aplicação do universal ao particular).

De outra parte, ainda que a phrónesis inclua o conhecimento do universal, sua peculiaridade não é esta, mas o conhecimento do individual. O primeiro, isto é, o conhecimento do universal, é, pelo contrário, a peculiaridade de outra capacidade, dita arquitetônica, quer dizer, apta a fornecer as diretrizes mais gerais, que só pode ser a filosofia prática, ou seja, a ciência política, da qual falamos anteriormente. Aqui, portanto, Aristóteles deixa bem clara a relação entre filosofia prática e phrónesis: a primeira conhece o universal, por isso dá as diretrizes mais gerais, enquanto a segunda conhece o particular, por isso aplica as diretrizes gerais ao caso particular, ou igualmente individual.

(BERTI, p. 149)

 

Como se vê, a phrónesis, ao lado da filosofia prática, diferencia-se sobretudo da matemática, e muito menos, ao contrário, da física e da metafísica. Em todo caso, prossegue Aristóteles, ela não é ciência, porque se refere ao último termo da deliberação, ou seja, ao que pode ser praticado, sempre algo particular. Pela mesma razão não é sequer inteligência, porque a inteligência tem por objeto as definições universais, não os casos individuais.

Trata-se, portanto, como já dissemos, da capacidade de aplicar a regra geral ao caso particular. Por esse motivo alguns filósofos contemporâneos compararam a phrónesis de que fala Aristóteles à “faculdade do juízo” estético e teleológico (Urteilskraft) de que fala Kant”: também esta última, com efeito, é a capacidade de reconduzir um particular já dado a um universal somente procurado” (BERTI, p.150)

 

Seja neste exemplo, seja no anterior, concernente à came de galinha, Aristóteles apresenta o raciocínio realizado pela phrónesis como uma espécie de silogismo, posteriormente denominado “silogismo prático”. Nele se pode distinguir, com efeito, uma premissa universal ou maior (“todas as carnes leves são saudáveis”, ou “todas as águas pesadas são nocivas”), uma premissa particular ou menor (“a carne de galinha é leve” ou “esta determinada água é pesada”), e uma conclusão, constituí- da pela “escolha” ou pela ação (comer carne de galinha ou evitar esta determinada água). (BERTI, p.151)

 

Também a phrónesis, portanto, silogiza, mesmo que a seu modo, no sentido de que argumenta, faz raciocínios com muitos momentos concatenados entre si e é, por isso, também ela uma forma de racionalidade, bem diferente, no entanto, da racionalidade da ciência, seja teorética ou prática. Seu silogizar foi denominado “prático” na medida em que resulta em uma ação e por ter sido reconhecido como uma forma em tudo peculiar de racionalidade, sobretudo na escola do último Wittgenstein” (BERTI, p.152)

 

A análise do silogismo prático permite esclarecer posteriormente a relação entre a phrónesis e a filosofia prática. Aristóteles apresenta, com efeito, o silogismo prático como se exprimisse na premissa maior o fim ao qual se tende, e na premissa menor o meio necessário para realizá-lo. A seu propósito, afirma:

Os silogismos em torno do que se deve fazer começam assim: “visto que o fim, isto é, o que é melhor, é de tal e tal natureza…”. Admitamos, no interesse do argumento, que ela seja qual for, mas só o homem bom a conhece verdadeiramente, porquanto a maldade nos perverte e nos leva a enganar-nos a respeito dos princípios da ação. Donde ser claramente impossível que um homem seja sábio (phrónimon) sem ser bom (12, 1144 a 31-36).

Disso resulta não apenas que a premissa maior indica o fim, isto é, o bem supremo, e por isso constitui o “princípio” prático, mas também que requer a bondade, isto é, a virtude moral, e que esta última é pressuposta pela phrónesis. Parece, portanto, que a phrónesis, dando por pressuposta a indicação do fim, fornecida pela virtude, tenha como seu resultado peculiar a indicação do meio, ou seja, a premissa menor. Isso é confirmado também por outras passagens em Aristóteles: “a virtude torna reto o objetivo, a phrónesis com que se escolha os meios devidos” (1144 a 7-9); ou: “não se terá uma escolha correta sem a phrónesis ou a virtude, pois esta indica o fim e aquela faz realizar as ações que estão relacionadas com o fim” (13, 1145 a 3-6).

(BERTI, 152-153)

 

Ora, o bem em sentido geral não pode ser objeto de deliberação, porque não é uma realidade particular e contingente, mas é válido sempre ou pelo menos geralmente; apenas os meios podem ser objeto de deliberação, porque são particulares e contingentes. […]

Aliás, o próprio Aristóteles logo depois acrescenta: “é signo disso o fato de denominarmos sábios também aqueles que se ocupam de alguma coisa particular, quando calculam bem em vista de um fim válido” (1140 a 28-30). Alhures Aristóteles afirma explicitamente: “não deliberamos sobre os fins, mas sobre as coisas que estão em relação com os fins” (III 3, 1112 b 11-12) (BERTI, 154)

 

Por outro lado, é mesmo verdadeiro que a phrónesis inclui, como vimos, também o conhecimento do universal e, por isso, do fim, para poder reconduzir a ele o caso particular, isto é, o meio: a relação entre esses dois conhecimentos é que os dois são premissas, respectivamente maior e menor, do silogismo prático. O conhecimento do fim que a phrónesis inclui, contudo, não é um conhecimento científico, que pode ser dado apenas pela filosofia prática e de preferência constitua sua tarefa específica, mas a orientação a ela dada pela virtude, isto é, por um bom caráter ou por uma boa educação. Com efeito, para que haja phrónesis, isto é, para ser sábio, não é necessário ser filósofo, nem sequer filósofo prático, mas é necessário, como vimos, ser temperante, isto é, bom de caráter. É necessário, com efeito, que a capacidade de deliberar retamente sobre os meios seja orientada por um fim bom, de outro modo não é phrónesis, mas simples habilidade ou astúcia (assim, de resto, ainda que erroneamente, foi entendida a “prudência” por Kant, que lhe negou, porém, o valor moral). (BERTI, p. 154)

 

Esta doutrina poderia dar a impressão de um círculo vicioso: de um lado, com efeito, a phrónesis é necessária para deliberar bem, portanto para agir bem, isto é, para ser virtuoso, e, de outro, pressupõe, para orientar-se para o fim bom, a posse da virtude. Aristóteles evita o círculo distinguindo duas espécies de virtude: uma virtude “natural”, isto é, inata, da qual não se tem mérito, porque provém de um bom nascimento ou de uma boa educação, e uma “virtude propriamente dita”, da qual se tem mérito, porque se a adquire por meio do hábito e do agir bem. A primeira é pressuposta pela phrónesis, enquanto a segunda é produzida por ela (12, 1144 b 14-17)

Enfim, Aristóteles esclarece que também a phrónesis é “prescritiva” (epitaktiké) (10, 1143 a 8), como o é a filosofia prática, ou melhor, com mais forte razão ainda que a filosofia prática, porque, justamente, é ainda mais “prática” que ela, na medida em que é diretamente voltada para a ação.

Também neste caso, portanto, encontramo-nos diante de uma forma de racionalidade que pode ser “verdadeira” e ao mesmo tempo “prescritiva”, isto é, prática, coisa totalmente anômala do ponto de vista da ética moderna de orientação analítica!*. E interessante ver do que a phrónesis é prescritiva, porque desse modo se esclarece definitivamente sua relação com a sabedoria (sophía). (BERTI, p. 155)

 

O fim último da phrónesis, portanto, é constituído pela-sabedoria, como o fim último da medicina é constituído pela saúde, e quem governa não é o senhor supremo, mas é alguém que é útil para o fim. (BERTI, p. 156)

 


 

 

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