LINGUAGEM MORAL
Capítulo 4 – DECISÕES DE PRINCÍPIO
R. M. Hare
4.1. Há dois fatores que podem estar envolvidos em qualquer decisão de fazer algo. Destes, o primeiro, ao menos teoricamente, pode estar ausente; o segundo está sempre presente em certo grau. Correspondem às premissas maior e menor do silogismo prático aristotélico. A premissa maior é um princípio de conduta, a premissa menor é um enunciado, mais ou menos completo, do que deveríamos de fato estar fazendo se adotássemos uma ou outra das alternativas abertas a nós.
São os efeitos que determinam o que eu deveria estar fazendo; é entre os dois conjuntos de efeitos que estou decidindo, O ponto essencial de uma decisão é que ela faz uma diferença no que acontece, e essa diferença é a diferença entre os efeitos de decidir de uma forma e os efeitos de decidir da outra forma.
Mesmo fazer nosso dever – na medida em que se trata de fazer algo – é efetuar certas mudanças na situação total.
Não acho que a proximidade ou distância dos efeitos façam qualquer diferença, embora sua certeza ou incerteza façam.
Por razoes que se tomarão evidentes quando tivermos examinado a lógica das palavras de valor, é muitíssimo importante, numa exposição verbal de um argumento sobre o que fazer, não permitir palavras de valor na premissa menor. Ao formular os fatos do caso, devemos ser o mais factuais que pudermos. […] Quero dizer apenas que devemos ter certeza de que, como estamos usando as palavras na premissa menor, há testes definidos (que não envolvam avaliação) para demonstrar sua verdade ou falsidade.
(HARE, p.59-61)
4.2. […] Suponhamos que um homem tenha um gênero peculiar de clarividência que lhe permita saber tudo sobre os efeitos de todas as ações alternativas apresentadas a ele.
[…]
Mas suponha que devêssemos perguntar a tal homem “Por que você escolheu este conjunto de efeitos em vez daquele? Quais dos muitos efeitos foram os que o levaram a decidir da forma que decidiu?”. Ele poderia dizer “Não posso dar quaisquer razões; simplesmente quis decidir desta forma; numa outra oportunidade, defrontado com a mesma escolha, posso decidir de forma diferente”. Por outro lado, ele poderia dizer “Foi isto e isto que me fez decidir; estava evitando deliberadamente tais e tais efeitos, e buscando tais e tais efeitos”.Se desse a primeira dessas duas respostas, poderíamos, num determinado sentido dessa palavra, chamar sua decisão de arbitrária (embora mesmo naquele caso tivesse alguma razão para sua escolha, a saber, que ele quis daquela forma); mas se desse a segunda, não poderíamos.
Vejamos o que está envolvido no segundo tipo de resposta:
Embora tenhamos suposto que o homem não tem princípios formados, ele mostra, se dá a segunda resposta, que começou a formar princípios, pois escolher efeitos porque estes são tais e tais é começar a agir segundo um princípio de que tais e tais efeitos devem ser escolhidos. Vemos nesse exemplo que, para agir segundo um princípio, não é necessário, em certo sentido, já ter um princípio antes de agir; pode ser que a decisão de agir de certa forma, por causa de algo a respeito dos efeitos de agir desta forma, seja assentir a um princípio de ação – embora não seja necessariamente adotá-lo em algum sentido permanente.
Os homens comuns não são tão afortunados quanto o homem de nosso exemplo artificial. Eles começam, na verdade, absolutamente sem qualquer conhecimento do futuro, e quando adquirem o conhecimento, não é desse tipo intuitivo. O tipo de conhecimento que temos do futuro – a menos que sejamos clarividentes – baseia-se em princípios de previsão que nos são ensinados, ou que formamos para nós mesmos. Princípios de previsão são um tipo de princípio de ação; pois prever é agir de uma determinada forma. Assim, embora não exista nada que possa impedir logicamente uma pessoa de ignorar princípios e de fazer todas as suas escolhas da maneira arbitrária exibida no primeiro tipo de resposta, isso, na verdade, nunca ocorre. Além disso, nosso conhecimento do futuro é fragmentário e apenas provável, e, portanto, em muitos casos os princípios que nos são ensinados ou que formamos para nós mesmos não dizem “Escolha este tipo de efeito em vez daquele”, mas “Você não sabe com certeza quais serão os efeitos, mas faça isto em vez daquilo, e é muito provável que os efeitos sejam como os que você teria escolhido, se os conhecesse”. É importante lembrar neste contexto que “verossímil” e “provável” são palavras de valor; em muitos contextos “É provável (ou verossímil) que P” é adequadamente traduzido por “Há uma boa razão (ou evidência) para sustentar que P”.
(HARE, p.61-63)
4.3. Podemos distinguir, até aqui, duas razões por que temos princípios. A primeira razão aplica-se a qualquer um, mesmo um homem com total intuição do futuro^ que decide escolher algum a coisa porque eia tem um determinado caráter. A segunda razão aplica-se a nós porque, na verdade, não temos conhecimento completo do futuro e porque o conhecimento que temos envolve princípios.
Deve-se agora acrescentar a essas razões uma terceira. Sem princípios, a maior parte dos tipos de ensino é impossível, pois o que se ensina, na maioria dos casos, é um princípio. Em particular, quando aprendemos a fazer algo, o que aprendemos é sempre um princípio’. Até mesmo aprender um fato (como os nomes dos cinco rios do Punjab) é aprender a responder a uma pergunta, é aprender o princípio.
(HARE, p.63)
Em vez disso, o ponto é que aprender a fazer algo nunca é aprender a realizar um. ato individual, é sempre aprender a realizar atos de iim determinado tipo num determinado tipo de situação, e isso é aprender um princípio.
Assim, sem princípios não poderíamos aprender absolutamente nada de nossos predecessores. Isso significaria que cada geração teria de começar do zero e ensinar a si mesma.
(HARE, p.63-64)
Suponhamos que nosso clarividente fizesse todas as suas escolhas segundo algum princípio, mas sempre esquecesse, logo depois de fazer a escolha, qual era o princípio. Consequentemente, cada vez que tomasse uma decisão, teria de examinar todos os efeitos das ações alternativas. Isso consumiria tanto tempo que ele não teria tempo para tomar muitas decisões no curso de sua vida. Gastaria todo o seu tempo decidindo questões como dar um passo com o pé direito ou com o esquerdo, e não chegaria nunca ao que chamaríamos as decisões mais importantes.
Porém, se pudesse recordar os princípios segundo os quais agiu, estaria numa posição muito melhor; poderia aprender a agir em determinados tipos de circunstâncias; poderia aprender a destacar rapidamente os aspectos relevantes de uma situação, inclusive os efeitos das várias ações possíveis, e, assim, escolher rapidamente e, em muitos casos, de forma habitual.
Assim. seus poderes de decisão ponderada ficariam livres para decisões mais importantes. Quando o marceneiro aprende a fazer um ensamblamento sem refletir muito sobre isso, terá tempo para pensar em coisas como as proporções e a aparência estética do produto acabado. E acontece o mesmo com nossa conduta na esfera moral; quando o cumprimento dos deveres menores torna-se uma questão de hábito, temos tempo para pensar nos maiores.
(HARE, p.64-65)
Na prática, há um limite do quanto uma pessoa pode ensinar a outra. Além desse ponto, é necessário o autodidatismo.
[…]
Uma das coisas que têm de ser incluídas em qualquer tipo de instrução, com exceção dos mais elementares, é a oportunidade de o aprendiz tomar decisões por si mesmo, e, ao fazê-lo, examinar e mesmo modificar os princípios que estão sendo ensinados para adaptá-los a tipos particulares de casa Os princípios que nos são ensinados inicialmente são de um tipo provisório (muito parecidos com o principio “Nunca diga o que é falso”, que discuti no capítulo anterior). Nosso treinamento, depois dos estágios iniciais, consiste em apreender esses princípios e torná-los menos provisórios; fazemos isso usando-os continuamente em nossas próprias decisões e, algumas vezes, abrindo exceções a eles; algumas das exceções são feitas porque nosso instrutor nos mostra que determinados casos são exemplos de classes de exceções ao princípio, e algumas das exceções elegemos por nós mesmos.
(HARE, p.65)
Podemos ilustrar esse processo de modificação de princípios a partir do exemplo já utilizado, o de aprender a dirigir.
[…]
O bom motorista é, entre outras coisas, aquele cujas ações são tão exatamente regidas por princípios que se tornaram um hábito para ele, que normalmente não tem de pensar no que fazer. Mas as condições das estradas são muito diversas e, portanto, é imprudente deixar que dirigir transforme-se totalmente numa questão de hábito. Uma pessoa nunca pode estar segura de que seus princípios ao dirigir são perfeitos – na verdade, pode estar bem segura de que não são, e, portanto, o bom motorista não apenas dirige bem por hábito, mas está constantemente atento a seus hábitos de direção, para ver se não podem ser melhorados; ele nunca para de aprender.
É desnecessário salientar que os princípios para dirigir, como outros princípios, normalmente não são inculcados pela repetição verbal, mas por exemplo, demonstração e outros meios práticos. Aprendemos a dirigir, não por preceito, mas porque nos demonstram como executar seções particulares do ato de dirigir; os preceitos geralmente são apenas versões explanatórias ou mnemónicas do que está sendo demonstrado.
O fato de que a derivação de atos particulares (ou comandos para executá-los) a partir de princípios normalmente é feita de forma não-verbal não demonstra que ela não é um processo lógico, assim como não se demonstra que a inferência abaixo é não-lógica por nunca ser feita explicitamente em palavras.
P1: O relógio acaba de bater sete vezes,
P2: O relógio bate sete vezes somente às sete horas.
C1: São pouco mais de sete horas.Os motoristas muitas vezes sabem exatamente o que fazer numa determinada situação sem serem capazes de enunciar em palavras o princípio segundo o qual agem. Esse é um estado de coisas muito comum para todos os tipos de princípio.
[…]
Uma pessoa pode saber como, sem ser capaz de dizer como – embora quando uma habilidade deve ser ensinada, fique mais fácil se pudermos dizer como.
[…]
Um motorista não sabe quando mudar a marcha por intuição; sabe porque aprendeu e não esqueceu; o que ele sabe é um princípio, embora não possa formular o princípio em palavras, O mesmo é verdadeiro no caso das decisões morais que são às vezes chamadas ‘‘intuitivas”. Temos “intuições” morais porque aprendemos a nos comportar, e as temos diferentes, de acordo com a forma em que aprendemos a nos comportar. Seria um erro dizer que tudo o que precisa ser feito para transformar um homem em um bom motorista seria dizer-lhe ou, de outro modo, inculcar-lhe muitos princípios gerais. Isso seria excluir o fator da decisão.
[…]
Em nenhuma hipótese devemos cometer o erro de supor que decisões e princípios ocupam duas esferas separadas e não se tocam em nenhum ponto.
[…]
Não é o caso de o princípio resolver tudo até determinado ponto e a decisão lidar com tudo que esteja abaixo daquele ponto. Em vez disso, decisão e princípios interagem em toda a extensão do campo. Suponha que temos um princípio para agir de certa forma em determinadas circunstâncias.
Suponha depois que nos encontramos em circunstâncias que se enquadram no princípio, mas que têm determinadas características peculiares, não encontradas antes, que nos fazem perguntar “Pretende-se realmente que o princípio abranja casos como este ou ele está especificado incompletamente – temos um caso pertencente a uma classe que deve ser tratada como excepcional?”
Nossa resposta a essa pergunta será uma decisão, mas uma decisão de princípio, como demonstra o emprego da palavra de valor “dever”. Se decidimos que deve ser uma exceção, modificamos o princípio estabelecendo uma exceção a ele.
(HARE, p.66-68)
4.4.
[…]
O que acabo de dizer sobre primeiro aprender o que fazer, e sobre a vacuidade inicial do fim geral, é tomado de Aristóteles2. A única distinção fundamental entre princípios de direção e princípios de conduta é que estes são no termo de Aristóteles, “arquitetônicos” daqueles; pois os fins do bem dirigir (segurança, evitar inconvenientes para os outros, preservação da propriedade, etc.) são justificados, em última análise, se se busca justificação, recorrendo a considerações morais.
Autores de moral dizem por vezes que temos de justificar um ato por referência a seus efeitos, e que dizemos quais efeitos devem ser buscados, quais evitados, por referência a algum princípio. É a teoria dos utilitaristas, que nos ordenam que olhemos para os efeitos e os examinemos à luz do princípio de utilidade, para ver quais efeitos maximizariam o prazer. Às vezes, por outro lado, diz-se (como o Sr. Toulmin) que um ato é justificado diretamente por referência aos princípios que ele observa, e esses princípios, por sua vez, por referência aos efeitos de sempre observá-los.
A verdade é que, se nos pedem que justifiquemos qualquer decisão da forma mais completa possível, temos de mencionar os efeitos – para dar conteúdo à decisão – e os princípios, e os efeitos, em geral, de observar aqueles princípios, e assim por diante, até que tenhamos satisfeito nosso inquiridor. Assim, justificação completa de uma decisão consistiria em uma descrição completa de seus efeitos,- juntamente com uma descrição completa dos princípios observados e dos efeitos de observar aqueles princípios – pois, é claro, são também os efeitos (aquilo em que efetivamente consiste obedecer a eles) que dão conteúdo aos princípios
[…]
Se o inquiridor ainda continua a perguntar “Mas por que eu deveria viver dessa forma?”, então não há mais respostas para dar a ele, porque já dissemos, ex hypothesi, tudo o que podia ser incluído nessa nova resposta. Podemos somente pedir que decida por si mesmo de que maneira deve viver pois, no final, tudo se fundamenta em tal decisão de princípio. Ele tem de decidir se aceita aquele modo de vida ou não; se o aceita, então podemos prosseguir e justificar as decisões que se baseiam nele; se não o aceita, então que aceite algum outro e tente viver segundo ele.
[…]
Observar-se-á que, ao falar de decisões de princípio, comecei inevitavelmente a falar em linguagem de valor; Assim, decidimos que o princípio deve ser modificado, ou que é melhor manobrar do que sinalizar. Isso ilustra a estrita relevância do que venho dizendo, na primeira parte deste livro, para os problemas da segunda parte; pois fazer um juízo de valor é tomar uma decisão de princípio. Perguntar se devo fazer A nestas circunstâncias é (tomando emprestada a linguagem kantiana com uma pequena mas importante modificação) perguntar se desejo ou não que fazer A em tais circunstâncias tome-se uma lei universal.(HARE, p.69-73)
4.5.
[…]
Há uma analogia interessante aqui com a posição do cientista, que também tem de contar com suas próprias observações. Pode-se dizer que há uma diferença aqui entre decisões e observações, em detrimento daquelas, porque uma observação, uma vez feita, é propriedade pública, enquanto as decisões têm de ser tomadas pelo próprio agente em cada ocasião. Mas a diferença é apenas aparente. Um cientista não se teria tomado cientista a não ser que tivesse se convencido de que as observações de outros cientistas são em geral confiáveis. Fez isso fazendo algumas observações por si mesmo.
[…]
O caso do agente moral não é dissimilar. Em nossa infância, quando nos dão instrução moral elementar, há algumas coisas que nos dizem e algumas coisas que fazemos. Se, quando fizéssemos o que nos diziam, os efeitos totais de fazê-lo, quando acontecessem, fossem sempre tais que não os teríamos escolhido se os conhecêssemos de antemão, então deveríamos buscar conselho melhor, ou, se impedidos de fazê-lo, trabalhar por nossa própria salvação ou tomarmo-nos deficientes morais. Se, em geral, nos dão o que, subsequentemente, percebemos ter sido um bom conselho, decidimos, em geral, seguir o conselho e adotar os princípios dos que nos deram esse bom conselho no passado.
[…]
É o que acontece a qualquer criança bem criada. Assim como o cientista não tenta reescrever tudo o que está nos livros, mas admite-o como verdade e dedica-se a suas próprias investigações particulares, essa criança afortunada irá assumir os princípios de seus responsáveis e adaptá-los detalhadamente, de tempos em tempos, por meio de suas próprias decisões, para que se ajustem a suas próprias circunstâncias. É assim que, numa sociedade bem ordenada, a moralidade mantém-se estável e, ao mesmo tempo, adapta-se a circunstâncias mutáveis.
(HARE, p.73-75)
4.6.
[…]
Este feliz estado de coisas pode, porém, deteriorar-se de várias maneiras. Consideremos um processo que parece ocorrer com bastante frequência na história; ocorreu na Grécia durante os séculos V e IV, e tem ocorrido em nossa própria época. Suponha que as pessoas de uma determinada geração – que chamarei primeira geração – tenham princípios bem estabelecidos, herdados de seus pais. Suponha que estejam tão estabelecidos que se tornaram uma segunda natureza, de forma que, falando de modo geral, as pessoas ajam segundo os princípios sem pensar, e sua capacidade de tomar decisões ponderadas tome-se atrofiada. Eles agem sempre de acordo com as regras e não sofrem nenhum mal porque o estado do mundo em seu tempo é praticamente o mesmo para o qual os princípios foram ideados. Mas seus filhos, a segunda geração, à medida que crescem, descobrem que as condições mudaram (e . g por uma guerra prolongada ou uma revolução industrial) e que os princípios em que foram criados não são mais adequados. Como se deu muita ênfase em sua educação à observação dos princípios e muito pouca às decisões em que, em última análise, esses princípios se baseiam, sua moralidade não tem raízes e torna-se completamente instável.
[,…] mas a maioria da segunda geração, não tendo sido criada para tomar decisões de princípio, mas para fazer o que diz o livro, não será capaz de tomar as decisões cruciais que determinariam quais princípios manter, quais modificar e quais abandonar. Algumas pessoas, as crianças virtuosas da segunda geração, estarão tão impregnadas dos velhos princípios que simplesmente os seguirão, aconteça o que acontecer; e serão, como um todo, mais afortunadas do que as outras, pois é melhor ter alguns princípios, mesmo que algumas vezes levem a decisões que lamentemos, do que estar moralmente à deriva. O grosso da segunda geração, talvez, mais ainda da terceira, não saberá quais princípios manter e quais rejeitar, e, portanto, passarão mais e mais a viver somente o agora – o que não é ruim, porque treina sua capacidade de decisão, mas é um estado desagradável e perigoso. Alguns deles, os rebeldes, gritarão aos quatro ventos que alguns ou todos os velhos princípios morais são inúteis; alguns desses rebeldes advogarão novos princípios próprios; alguns nada terão a oferecer, Embora intensifiquem a confusão, esses rebeldes desempenham a útil função de fazer as pessoas decidirem entre os princípios rivais, e se não apenas advogam novos princípios, mas tentam sinceramente viver segundo estes, estão conduzindo um experimento moral que poderá ser do mais alto valor para o homem (caso em que passarão para a história como grandes mestres da moral) ou, por outro lado, poderão mostrar-se desastrosos para eles e para seus discípulos.
Pode levar muitas gerações para que essa moléstia seja eliminada. A moralidade recupera seu vigor quando as pessoas comuns aprendem novamente a decidir por si mesmas sob que princípios viver e, mais especialmente, que princípios ensinar a seus filhos. Já que o mundo, embora sujeito a vastas mudanças materiais, muda somente muito devagar em questões que são fundamentais do ponto de vista moral, os princípios que conquistam a aceitação da massa provavelmente não devem diferir enormemente daqueles de que seus pais vieram a duvidar.
[…]
Mas haverá algumas mudanças; alguns dos princípios defendidos pelos rebeldes terão sido adotados. É assim que a moralidade progride – ou regride.
(HARE, p.75-77)
4.7.
[…]
Mas, não obstante, a menos que nossa educação tenha sido tão meticulosa a ponto de transformar-nos em autômatos, podemos vir a duvidar desses princípios ou mesmo rejeitá-los; é isso o que torna os seres humanos, cujos sistemas morais modificam-se, diferentes das formigas, cujo “sistema moral” não muda.
[…]
Muitos dos cantos escuros da ética tornam-se mais claros quando consideramos esse dilema no qual os pais estão propensos a se envolver. Já observamos que, embora, no final, os princípios tenham de se fundamentar em decisões de princípio, decisões como tais não podem ser ensinadas, somente princípios podem ser ensinados. É a impotência do pai para tomar em lugar do filho as muitas decisões de princípio que ele tomará em sua futura carreira que dá à linguagem moral seu formato característico. O único instrumento que o pai possui é a educação moral – o ensino de princípios por meio de exemplos e preceitos, reforçados por castigos e outros métodos psicológicos mais modernos. Ele deve usar esses meios, e até que ponto? Certas gerações de pais não tiveram dúvidas a esse respeito. Usaram-nos na totalidade, e o resultado foi transformar seus filhos em bons intuicionistas, capazes de se manter nos trilhos, mas fracos para fazer manobras. Outras vezes, os pais – e quem os condenaria? – sofrem de falta de confiança; não têm ao menos certeza suficiente do que eles mesmos pensam, para estar prontos a conferir a seus filhos um modo de vida estável. Às crianças de tal geração provavelmente crescerão oportunistas, perfeitamente capazes de tomar decisões individuais, mas sem o conjunto estabelecido de princípios que é a mais valiosa herança que qualquer geração pode legar a seus sucessores. Pois, embora os princípios sejam construídos sobre decisões de princípio, a construção é o trabalho de muitas gerações, e deve-se ter pena do homem que tem de começar do início; é improvável, a não ser que ele seja um gênio, que consiga muitas conclusões de importância, não mais provável do que seria um menino comum, solto sem instrução numa ilha deserta, ou mesmo num laboratório, fazer qualquer uma das principais descobertas científicas.
O dilema entre dois caminhos extremos na educação é claramente falso. Por que é falso fica evidente se recordamos o que foi dito anteriormente sobre a relação dinâmica entre decisões e princípios. É bastante semelhante a aprender a dirigir. Seria tolo, ao ensinar alguém a dirigir, tentar inculcar-lhe princípios tão fixos e abrangentes que ele nunca tivesse de tomar uma decisão independente. Seria igualmente tolo ir para o outro extremo e deixar-lhe a tarefa de encontrar sua própria maneira de dirigir. O que fazemos, se somos sensatos, é dar-lhe uma base de princípios sólida mas, ao mesmo tempo, ampla oportunidade de tomar as decisões em que se baseiam esses princípios e pelas quais são modificados,, melhorados, adaptados a circunstâncias modificadas, ou mesmo abandonados quando se tornam inteiramente inadequados a um novo ambiente.
Ensinar somente os princípios, sem conceder a oportunidade de sujeitá-los às decisões de princípio do próprio aluno, é como ensinar ciência exclusivamente com livros didáticos, sem entrar num laboratório. Por outro lado, abandonar um filho ou um aluno de direção à auto expressão é como colocar um menino num laboratório e dizer “Vire-se”. O menino pode se divertir ou se matar, mas provavelmente não aprenderá muito sobre ciência.
Conclusão:
As palavras morais, das quais podemos tomar “dever” como exemplo, refletem em seu comportamento lógico essa natureza dupla da instrução moral – como seria de esperar, pois é na instrução moral que são mais tipicamente empregadas.
Essa é a fonte da controvérsia entre os “objetivistas”, como os intuicionistas às vezes chamam a si mesmos, e os “subjetivistas”, como muitas vezes chamam seus oponentes. Os primeiros enfatizam os princípios fixos que são passados pelo pai, os segundos nas novas decisões que têm de ser tomadas pelo filho. O objetivista diz “E claro que você sabe o que deve fazer, veja o que sua consciência lhe diz e, em caso de dúvida, guie-se pela consciência da ampla maioria dos homens”.
O subjetivista, por outro lado, diz “Mas, com certeza, no momento crucial – depois de ouvir o que outras pessoas dizem e de dar o devido peso a minhas próprias intuições, o legado de minha criação – tenho, afinal, de decidir por mim mesmo o que devo fazer.
Se me recuso a tomar minhas próprias decisões, estou, ao meramente copiar meus pais, mostrando-me um homem menor do que eles; pois, enquanto eles devem ter iniciado, estarei meramente aceitando”. Essa alegação do subjetivista é inteiramente justificada. É a alegação do adolescente que quer ser adulto. Tornar-se moralmente adulto é conciliar essas duas posições aparentemente conflitantes aprendendo a tomar decisões de princípio, é aprender a usar sentenças de “dever” na compreensão de que estas somente podem ser verificadas pela referência a um padrão ou conjunto de princípios que tenhamos, por nossa própria decisão, aceitado e tornado nosso. É isso que a presente geração está tão dolorosamente tentando fazer.
(HARE, p.80-81)
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