REFERÊNCIA
BERTI, Enrico. Perfil de Aristóteles (2009). Tradução de José Bortoloni. São Paulo: Paulus, 2012.
RESUMO
ÍNDICE
ADVERTÊNCIA
I. VIDA, AMBIENTE CULTURAL E OBRAS
1 . Questões preliminares
2. Formação e ensino na Academia
3. Estadia na Ásia Menor, em Mitilene e na Macedônia
4. Fundação e direção da própria escola
II. O DESENVOLVIMENTO DA DIALÉTICA PLATÔNICA
1 . A dialética do último Platão e dos demais acadêmicos
2. A doutrina das categorias: substância e acidentes
3. A crítica à doutrina platônica das ideias e a valorização da substância individual
4. A crítica às doutrinas acadêmicas dos princípios e a descoberta do substrato
III. A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO
1 . A argumentação dialética e a sofística
2. A argumentação apodítica ou demonstrativa
3. A argumentação silogística em geral
4. A argumentação retórica e a poética
IV. AS CAUSAS PRIMEIRAS DO DEVIR
1 . A busca das causas primeiras
2. A distinção dos quatro gêneros de causas
3. A determinação da causa primeira dentro de cada gênero
4. A cosmologia
5. A psicologia
6. A biologia
V. AS CAUSAS PRIMEIRAS DO SER
1. A filosofia primeira: método e objeto
2. As causas primeiras do ente enquanto ente
3. As causas primeiras da substância
4. A substância imóvel como causa primeira
VI. AS CONDIÇÕES DA FELICIDADE INDIVIDUAL
1 . Caráter dialético e não científico da filosofia prática
2. As virtudes éticas
3. As virtudes dianoéticas
4. A amizade, o prazer e a felicidade
VII. AS CONDIÇÕES DA FELICIDADE COLETIVA
1 . A sociedade política
2. A comunidade doméstica: escravidão e economia
3. Constituições e revoluções
4. A constituição melhor, ou a cidade feliz
Capítulo VI
AS CONDIÇÕES DA FELICIDADE INDIVIDUAL
1 . Caráter dialético e não científico da filosofia prática:
Até agora, acompanhamos o desenvolvimento do pensamento aristotélico da dialética à ciência autêntica, isto é, à busca das causas primeiras do devir (física) e do ser enquanto ser (filosofia primeira). Todavia, essa ciência não é senão um aspecto do imponente trabalho de pesquisa realizado por Aristóteles, ou seja, o aspecto propriamente “teorético”, isto é, que tem por finalidade o próprio conhecimento (theoría) da realidade. Ao lado dele, na pesquisa aristotélica, existe um segundo aspecto não menos importante, mais propriamente “prático”, isto é, que tem como finalidade a ação (prãxis), o comportamento do homem na realidade.
[…]
na Ética a Nicômaco, na qual Aristóteles em primeiro lugar divide a “parte da alma munida de razão” (lógon échon) por sua vez em duas partes: aquela com a qual examinamos as coisas que não podem estar diferentemente de como são e aquela, pelo contrário, com a qual examinamos as coisas que podem estar diferentemente. A primeira é por ele chamada “científica” (epistemonikón), enquanto, das coisas que não podem estar diferentemente de como são, se dá verdadeira e própria ciência, e a segunda “calculativa” (logistikón), enquanto as coisas que podem estar diferentemente são aquelas em torno das quais se delibera, e deliberar é sinônimo de calcular (logízesthai).
[…]
Ele, portanto, precisa que a razão é prática ou poiética, pois tem finalidade diferente do puro e simples exercício de si mesma, isto é, do conhecimento, e que tal finalidade no caso da razão prática é a própria ação, ou seja, a perfeição da ação, a boa conduta (eupraxía), ao passo que, no caso da razão poiética, ele não é a produção, mas o objeto por ela produzido.
[…]
A razão prático-poiética ou arazão que opera em vista de finalidade diferente do puro e simples exercício de si mesma é, porém, a faculdade que preside à aquisição das ciências práticas e das ciências poiéticas, das quais deveremos ocupar-nos agora. Como vimos, o seu objeto é tudo aquilo que depende do homem, da sua proposição ou de algum modo da sua intervenção, ou seja, as ações e as produções humanas, a “história”, entendida também ela no sentido moderno do termo. A característica de tal objeto é ser constituído pelas coisas que podem estar diferentemente de como são, isto é, de não subjazer a uma lei imutável.
[…]
Mais ainda, Aristóteles pode ser considerado o fundador do conceito da filosofia prática entendida como ciência diferente das teoréticas, porém munida de racionalidade própria.
As obras nas quais ele exyõe essa filosofia prática são as três Éticas, isto é, a Etica a Nicômaco, a Etica a Eudemo e a assim chamada Grande Ética, e a seguir a Política.
Nessa exposição terei como texto-base de referência a Ética a Nicômaco por ser fora de dúvida a mais completa e perfeita das três, mais ainda, uma das melhores obras quer do ponto de vista conceituai quer do ponto de vista do estilo, escritaspor Aristóteles e que com justiça se tornou famosa.
Ora, no campo das ciências práticas, há algumas que são desejadas em vista de outra coisa, e outras que são desejadas em vista de si pró prias: de fato, não é possível que tudo seja desejado em vista de outra coisa, porque desse modo ir-se-ia ao infinito na série dos fins e o nosso desejo seria vazio e vão. Aquilo em vista do qual todas as outras ações são desejadas é o fim supremo, ao qual todos os outros fins estão subordinados: ele pode ser sem dúvida identificado com o “bem humano” (ta’nthópinon agathón), isto é, o bem supremo do homem. A ciência que se ocupa dele será a ciência mais importante entre as ciências práticas, isto é, a ciência arquitetônica no campo da filosofia prática. Pois bem, essa ciência, afirma Aristóteles, é a política, isto é, a ciência que trata da pólis da cidade.
[…]
Por isso, as Éticas podem ser consideradas abordagem do bem supremo válida para o indivíduo, embora tal abordagem já faça parte da política por ser orientada à sua aplicação na cidade. Essa dimensão propriamente política, isto é, comunitária, coletiva, daéticaé, mais ainda, um traço típico da doutrina aristotélica, que a distingue das abordagens análogas modernas
[…]
Como já vimos, isso significa que a filosofia prática, por causa da peculiar natureza do seu objeto, que em grande pane depende da liberdade humana, não tem o mesmo método da filosofia teorética, isto é, não realiza autênticas demonstrações, mas usa outras formas de argumentação, precisamente as formas dialéticas.
[…]
O procedimento que vai das opiniões às confutações, das coisas a nós conhecidas aos princípios, do quê ao porquê é justamente a dialética, e esse é o método da filosofia prática. Portanto, a filosofia prática ou a ética, melhor dizendo, a política de Aristóteles, não é ciência dedutiva que parte de princípios, isto é, do conhecimento do fim supremo, deduzindo daí rigorosamente todos os outros fins e, portanto, todas as normas do comportamento humano. Ela não se fundamenta na física ou na filosofia primeira, as únicas ciências que conhecem os princípios, as causas primeiras. O seu ponto de partida é o quê, o fato, a experiência, a vida vivida, os bons costumes, e ela parte destes para buscar os princípios, isto é, o fim supremo. Portanto, não é ética normativa ou prescritiva, mas ética empírica ou descritiva, isto é, essencialmente busca do bem supremo ou, como veremos, da felicidade.
Esse é o motivo pelo qual especialmente hoje, numa época de crise dos valores absolutos, indiscutíveis, impostos do alto, a filosofia prática de Aristóteles se revela de extraordinária qualidade. Após o fracasso das tentativas realizadas na Idade Moderna de construir uma política segundo um método rigorosamente matemático (Hobbes) ou uma ética more geometrico demonstrata (Spinoza), ou de fundar a moral sobre a norma absoluta da razão pura (Kant), ou de deduzi-la de uma concepção “científica” da história (Hegel e Marx), hoje assistimos a uma espécie de Aristoteles-Renaissance justamente no campo da filosofia prática, da qual são fautores, especialmente na Alemanha, estudiosos de ciências políticas como Leo Strauss e Wilhelm Hennis, historiadores como Otto Brunner e Werner Conze e filósofos comoJoachim Ritter, Hans-Georg Gadamer, Helmut Kuhn e Karl Heinz Ilting.
2. As Virtudes Éticas:
Ele próprio comunga tal opinião e portanto a sua ética se configura não como ética do dever ou do valor, isto é, uma ciência que prescreve aquilo que o homem deveria fazer ou aquilo ao qual o homem deveria aspirar, e sim como ética do fim ou da felicidade ou como ciência que descreve aquilo que o homem faz ou aquilo ao qual efetivamente o homem aspira.
[…]
Como se vê, a concepção de felicidade professada por Aristóteles é completamente dif crente de algo simplesmente espiritual, intelectual ou até ascético: pelo contrário, ele busca uma felicidade completa, tanto espiritual quanto material, quer interior, quer exterior. A sua concepção da felicidade é, pois, integral ou “humanista”, pois investe o homem na sua inteireza.
Ora, as virtudes da primeira, isto é, da razão propriamente dita, são chamadas por Aristóteles de virtudes dianoéticas (diánoia = razão), ao passo que as da segunda, isto é, da parte que obedece à razão, são chamadas de virtudes éticas (êthos, latim mos = costume, modo de comportar-se, caráter moral).
A análise aristotélica das virtudes se inicia a partir dessas últimas, as virtudes éticas. Em primeiro lugar, Aristóteles observa que elas nascem do hábito (éthos), isto é, do fato de realizar reiteradamente o mesmo tipo de ações, como transparece da afinidade entre o nome do caráter moral (êthos) e o do hábito (éthos). Portanto, toda virtude é em primeiro lugar um “hábito” (héxis), ou seja, uma disposição estável, permanente, para cumprir determinadas ações.24 Porém, quais são essas ações, as ações boas?
Aristóteles observa que uma ação pode ser má ou por falta, ou por excesso, como se pode ver a respeito da força ou da saúde, onde a falta e o excesso de ginástica ou a falta e o excesso de alimento são igualmente nocivos; pelo contrário, em todos os casos o bem, isto é, a justa medida, consiste na via intermédia (mesótes).
[…]
Portanto, a virtude ética ou do caráter pode ser definida como a disposição estável para praticar a via intermédia entre dois vícios opostos.
O bem, isto é, a virtude, consiste, portanto, não na Trinidadian absoluta, mas na medianidade válida para nós, a qual não pode ser obtida mediante cálculo rigorosamente matemático, mas deve ser determinada pela reta razão (orthos logos), isto é, pela razão do homem sábio (phrónimos)
Nesse sentido, se pode dizer que a virtude ética é a disposição estável para agir segundo os ditames da reta razão.
[…]
Em suma, Aristóteles está convencido de que, no campo da ética, não se pode dar indicações absolutas, válidas para todos, mas se deve examinar caso por caso o que é o bem, o que é o mal, confiando na experiência, no bom hábito, na reta razão, no juízo do homem sábio.
[…]
Portanto, também no conjunto que se refere à justiça, Aristóteles não indica uma norma universal e absoluta, mas descreve os diversos significados que ela assume nas situações históricas e sociais particulares, atendo-se ao caráter descritivo mais que prescritivo próprio da sua ética.
3. As Virtudes dianoéticas:
Pelo contrário, o hábito que capacita a agir bem, isto é, a cumprir ações conforme a reta razão e que, portanto, constitui o hábito racional da ação propriamente dita é chamado por Aristóteles “sabedoria” (phrónesis, às vezes traduzindo também como “prudência”), que significa justamente capacidade de reconhecer quais ações humanas são boas e quais são más, ou seja, o que é bem ou mal para o homem. Para ilustrar mais ainda a natureza da sabedoria, Aristóteles remete à observação daqueles homens considerados “sábios”: são aqueles que sabem deliberar bem acerca das várias ações, isto é, sabem reconhecer quais delas são boas não do ponto de vista utilitarista, mas do ponto de vista moral, atinente ao “viver bem”.
[…]
Para Aristóteles, a “sapiência” (sophía) é a verdadeira virtude da razão teorética, ou seja, o seu melhor hábito, a sua excelência.
[…]
Em todo caso, está claro que, enquanto a sabedoria tem por objeto o bem do homem, tomado também na sua dimensão mais elevada, que é o bem da sociedade política, a sapiência tem por objeto o bem de todo o universo e, portanto, é superior à primeira.
[…]
Essa superioridade da sapiência sobre a sabedoria, isto é, da virtude dianoética teorética sobre a virtude dianoética prática, explicitamente declarada por Aristóteles, bem como a implícita superioridade das virtudes dianoéticas sobre as éticas, devida ao fato que estas últimas dependem, na determinação do “justo meio”, da reta razão (prática), já faz prever o êxito de toda a ética aristotélica, isto é, a identificação da felicidade com a sapiência.
[…]
Quem dá ordens, ou seja, prescreve normas de comportamento é, pelo contrário, a sabedoria do homem, isto é, a posse estável e o exercício da reta razão que avalia vez por vez as situações particulares tendo por base a experiência. Em Aristóteles, portanto, não se dá um fundamento absoluto, rigoroso, científico das normas do agir, mas apenas um fundamento relativo constituído pela sabedoria prática, isto é, um saber particular, do contingente, da situação.
[…]
Desse modo, a ética de Aristóteles se revela uma vez mais uma ética fundamentalmente descritiva, indutiva, prudencial, mais que prescritiva, dedutiva e científica.
4. A amizade, o prazer e a felicidade:
Naturalmente, Aristóteles entende a amizade em questão no sentido mais amplo possível, ou seja, que, além do afeto verdadeiro e próprio para com os amigos, inclui também toda forma de afeto entre os seres humanos, desde o afeto dos pais para com os filhos e vice-versa, ao afeto de cunho sexual de um indivíduo em particular para com outro e, finalmente, ao afeto de qualquer cidadão para com todos os outros cidadãos que pertencem à mesma cidade. Por isso, Aristóteles se coloca o problema de estabelecer se há somente uma espécie de amizade ou se há muitas, e em quais condições a amizade é possível.
O primeiro problema é enfrentado mediante a distinção dos motivos pelos quais entre as pessoas pode haver amizade, ou seja, das qualidades que tornam uma pessoa objeto de amizade; são três, isto é, o bom, o prazeroso e o útil. De fato, uma pessoa pode ser objeto de amizade porque é boa, ou seja, é aprazível, estimável, amável por si mesma, ou porque é prazerosa, isto é, suscita prazer em quem lhe é amigo, ou por fim porque é útil, isto é, traz vantagens para quem lhe é amigo.
[…]
A melhor, isto é, a mais perfeita dentre essas espécies de amizade é a primeira, isto é, aquela que se dá entre pessoas boas e semelhantes entre si na virtude, as quais se querem bem por si mesmas. De fato, tal amizade, além de ser um bem em si, é também prazerosa e útil, pois os bons são reciprocamente prazerosos e também úteis. Além disso, essa é a espécie de amizade mais estável, embora seja a mais rara.49 As outras duas espécies se assemelham a esta, pois conservam cada uma um aspecto peculiar dela, exatamente o prazer ou a utilidade, porém lhes são inferiores, porque não subsistem em razão da própria amizade, e sim de coisas diferentes dela, como são justamente o prazer ou a utilidade, e portanto são muito menos estáveis, pois cessam quando cessam o prazer ou a utilidade proporcionados pela pessoa amiga. Por isso se pode dizer que a primeira espécie é amizade em sentido absoluto (haplõs), ao passo que as outras duas o são apenas acidentalmente (katà symbebekós).
[…]
Entre as várias outras questões referentes à amizade que Aristóteles aborda na Ética a Nicômaco, é ainda interessante aquela que se refere à amizade para consigo mesmo, que Aristóteles valoriza porque comporta justa avaliação daquilo que o homem possui de mais específico, ou seja, a faculdade de pensar, em virtude da qual uma pessoa ama a si mesma no sentido que deseja viver consigo mesma, experimentando prazer nas recordações das ações realizadas e nas esperanças das ações futuras, e enriquecendo a própria mente com muitos objetos de reflexão teorética.
A esse propósito ele se coloca, portanto, o problema amplamente discutido quer na Ética a Nicômaco quer na Ética a Eudemo, se o homem feliz tem necessidade ou não de amigos. A resposta de Aristóteles é clara: é absurdo fazer do homem feliz um solitário, porque o homem é ser político, isto é, por natureza levado a viver na pólis juntamente com os outros homens; portanto, o homem feliz tem também ele necessidade de amigos.
[…]
Finalmente, no encerramento da Ética a Nicômaco, Aristóteles determina de forma conclusiva o que é a felicidade para o homem considerado como pessoa individual. Para isso retoma a definição fornecida anteriormente, segundo a qual a felicidade é a atividade conforme à virtude, isto é, a atividade mais excelente que o homem tem condições de realizar.65 Dado que entre as várias virtudes, isto é, entre as éticas e as dianoéticas, melhores são as que correspondem à parte superior da alma, isto é, aquelas que consistem no exercício da razão ou, como diz Aristóteles, do intelecto (nous), a felicidade consistirá no exercício das virtudes dianoéticas e especificamente da sapiência, isto é, na atividade teorética (theoría).
[…]
Concluindo essa exposição, devemos observar que a ética aristotélica é confirmada como sendo essencialmente fundada sobre o conceito de fim último do homem. Esse fim é concebido de forma exclusivamente humana, sem implicações de ordem metafísica ou teológica.
[…]
Portanto, se trata de ética exclusivamente humana e ao mesmo tempo integralmente humana, que leva em conta todas as dimensões do homem e ao mesmo tempo estabelece exata hierarquia entre elas; trata-se de uma ética que coloca no justo relevo a felicidade individual, mas não se esquece das implicações sociais, mais ainda, políticas, de tal felicidade, e, portanto, desemboca necessariamente na política, como veremos logo na parte conclusiva da nossa exposição.
Capítulo VII
AS CONDIÇÕES DA FELICIDADE COLETIVA
1. A Sociedade Política:
No início dela, Aristóteles em primeiro lugar define apólis como uma “comunidade” (koinonía), mais ainda como a comunidade mais importante de todas e que compreende todas as outras, propondo chamá-la também “comunidade política” (koinonía politiké).1 São necessários alguns esclarecimentos acerca do significado dessa expressão. Em primeiro lugar, “comunidade” significa o conjunto dos indivíduos humanos que têm algo em comum (koinón), e mais especificamente, segundo Aristóteles, um fim comum, pois toda comunidade, bem como qualquer outra obra humana, é constituída em vista de um fim, isto é, de um bem. Portanto, se pode dizer que toda comunidade entendida em sentido lato tem por fim um bem comum e que a comunidade política, sendo a comunidade mais importante que compreende todas as outras, tem por fim o bem mais importante que compreende todos os outros, isto é, o supremo bem humano, o bem comum por excelência.
[…]
A sociedade política grega da qual Aristóteles fala não coincide com a moderna sociedade civil, pois não é composta de “privados” empenhados em fins particulares, mas é composta de “cidadãos” providos todos de poder e empenhados na consecução de um fim comum para todos. Como veremos, esses cidadãos serão essencialmente os chefes de farm1ia, que exercem o poder supremo cada qual sobre a própria “família” ou “casa”, compreendida na sua totalidade, ou seja, abrangendo não só esposa e filhos, mas também os servos, os animais e todo o patrimônio. Portanto, a cidade não é um conglomerado de indivíduos privados, mas um conjunto de famílias ou de casas, cada qual dotada de poder a ser exercido no seu interior sobre outras pessoas e confluindo juntas para a consecução de um fim comum.
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Doutra parte, ela não coincide sequer com o “Estado” entendido em sentido moderno, pois este é apenas uma parte da sociedade política, justamente a parte à qual a sociedade política delega o exercício do poder supremo, parte que comumente é chamada “administração estatal”, isto é, o conjunto dos poderes (legislativo, executivo, judiciário) e dos departamentos mediante os quais esses poderes são exercidos (a burocracia, os funcionários, o funcionalismo público). ParaAristóteles, pelo contrário, a sociedade política é um todo composto tanto pelas famílias ou casas quanto pelos órgãos de poder: ela, não o Estado, é depositária do poder supremo, porém delega o exercício desse poder a determinados órgãos, que de algum modo correspondem ao Estado moderno, os quais devem exercê-lo não para mantê-lo ou fazê-lo crescer por si mesmos, mas em vista do bem comum da sociedade política.
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Para entender isso, é preciso examinar os elementos que compõem a cidade, isto é, justamente a família em primeiro lugar. Aristóteles a indica com o termo oikía, que significa tanto “família” quanto “casa”, portanto indica não só aqueles que em sentido moderno são considerados estritamente membros da família, mas todos aqueles que vivem na mesma casa, servos incluídos.
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Por ora observemos como Aristóteles considera a família a primeira forma de associação humana, associação inteiramente fundada na natureza, anterior, portanto, à sociedade política e provida de autonomia, isto é, de direitos próprios e invioláveis em relação a esta última.
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Portanto, se pode afirmar que o homem é por natureza animal político, isto é, feito para viver numa pólis, numa cidade, no sentido que pode realizar cabalmente o próprio fim e, portanto, ser cabalmente homem somente na cidade.
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Portanto, a cidade é instituição fundada sobre a natureza, mesmo se o fim que lhe é próprio – o Bem comum, a felicidade dos seus membros – é buscado com a inteligência e a vontade. De fato, é por natureza que o homem persegue tal fim, no sentido que só alcançando-o é que realiza a sua humanidade, isto é, a sua natureza humana, e é igualmente por natureza que ele exerce a razão, isto é, a inteligência e a vontade como instrumento para a realização daquele fim.
2. A comunidade doméstica: escravidão e economia:
Para ilustrar a diferença entre as duas formas de crematística, ele observa que todo objeto possuído tem dois usos, um próprio e outro impróprio: por exemplo, um sapato pode ser usado como calçado e como meio de troca. A primeira forma de crematística, a natural, ensina a providenciar os objetos quer por seu uso próprio, quer por seu uso impróprio: todavia, este último se divide por sua vez em dois, isto é, a troca que acontece entre famílias para satisfazer às próprias necessidades, que pertence à crematística segundo a natureza, e a troca que pelo contrário se dá com o objetivo de buscar uma quantidade ilimitada de riquezas e que é a crematística contra a natureza. Aristóteles observa que o segundo tipo de troca deriva do primeiro após a invenção do dinheiro, devida justamente à necessidade de tornar mais fáceis as trocas, e isso acontece no assim chamado comércio a retalho (kapeliké), onde o dinheiro não serve para trocar uma mercadoria com outra, mas a mercadoria é trocada com o fim de aumentar em medida ilimitada a quantidade de dinheiro que se possui. Aristóteles conclui que quem supõe ser esta última forma de crematística a que deve ser praticada no governo da casa confunde o viver com o viver bem, isto é, troca por um fim a ser buscado em quantidade ilimitada os bens necessários para viver, que pelo contrário são simples meios, portanto suficientes em quantidade limitada, em vista do viver bem, isto é, da virtude e da felicidade.
3. Constituições e revoluções:
De fato, se o direito de comandar pertence a todos, de todos deve igualmente ser a disponibilidade para obedecer. Portanto, não existe nenhuma diferença entre o anárquico que nunca quer obedecer e o tirano que deseja sempre comandar.
4. A constituição melhor, ou a cidade feliz:
De fato, Aristóteles afirma que a constituição melhor é aquela que realiza o viver bem, a felicidade dos cidadãos, isto é, que realiza o próprio fim pelo qual a sociedade política é constituída. A esse respeito evoca a concepção da felicidade exposta na Ética a Nicômaco, segundo a qual os bens externos e os corpóreos, embora necessários, são inferiores aos da alma, isto é, à virtude, e entre as virtudes, as éticas são inferiores às dianoéticas, por isso a felicidade consiste essencialmente em viver segundo as virtudes dianoéticas, isto é, no exercício da inteligência mediante a pesquisa, o estudo e a cultura.
[…]
Dessa forma, quando alguém governa, isto é, se dedica à atividade política, se sacrifica, ou seja, renuncia temporariamente à felicidade, no interesse dos outros, isto é, para permitir que aqueles que são governados se dediquem à atividade teorética e sejam dessa forma felizes; quando, pelo contrário, alguém realizou o seu turno de governante, em paz pode desfrutar a condição de governado, dedicando-se livremente à atividade teorética e realizando dessa forma a própria felicidade. O mesmo discurso pode ser feito para a cidade, isto é, se pode dizer que uma cidade é feliz quando vive recolhida em si mesma, isto é, não se põe em competição com as outras cidades, mas permanece em paz e desenvolve suas atividades dentro dela mediante a alternância dos seus cidadãos no poder. Pode-se concluir assim que a felicidade da pessoa e da cidade são efetivamente a mesma coisa.
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