Fichamento: Enrico Berti, O Renascimento da Filosofia Prática (In Aristóteles no Século XX)

REFERÊNCIA

BERTI, Enrico. Aristóteles no Século XX (1992). Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1997.

 


RESUMO


Capítulo Quarto

O renascimento da filosofia prática

1. A nova filosofia política:

No curso dos anos 60 e 70 do nosso século, produziu-se primeiramente na Alemanha, e posteriormente também alhures, uma espécie de retomada, ou de renascimento, da antiga “filosofia prática” (expressão que remonta a Aristóteles, mas usada desde o fim do século XVIII para indicar o conjunto das reflexões filosóficas sobre a práxis, isto é, a ética, a “econômica” e a política, assim como as correspondentes disciplinas ensinadas nas universidades européias), em polêmica contra a “ciência política” moderna inspirada em Weber, e sobretudo contra a impossibilidade de uma ética fundada no conhecimento, afirmada pela filosofia analítica anglo-saxônica.

Esta tendência, que dominou a cena filosófica alemã por uns vinte anos e difundiu-se também na Inglaterra e nos Estados Unidos, articulou-se em duas direções fundamentais: por um lado, a retomada da filosofia prática propriamente aristotélica, e por outro um retorno à filosofia prática de Kant.

Na primeira tendência, podem-se situar filósofos como H. G. Gadamer, J. Ritter c os seus respectivos alunos (principalmente R. Bubner e G. Bien); na segunda, pode-se pôr autores como M. Riedel, E. Vollrath, K. H. Ilting, G. Patzig e outros”.

À orientação aristotelizante teve continuação também na área cultural anglo-americana, por obra de filósofos como o escocés A. MacIntyre, o inglês B. Williams, o economista norte-americano (de origem indiana) A. Sen, o emigrado alemão H. Jonas, e outros. Mas afinidades com ela são verificáveis também na assim chamada “nova retórica” de Ch. Perelman, na teoria da argumentação de S. Toulmin, na filosofia política de W. Hennis, na filosofia do direito do alemão Vieweg e do francês Villey. Alguma presença de elementos extraídos da filosofia prática de Aristóteles, enfim, verifica-se também na “ética do discurso” de O. Apel e J. Habermas.

A polêmica contra a ciência moderna foi, ao contrário, compartilhada sobretudo por outro grupo de exilados europeus, desta vez alemães, a saber, a assim chamada primeira geração da Escola de Frankfurt, formada por Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse. Exatamente nos Estados Unidos, Horkheimer publicou, com efeito, a Eclipse of Reason (New York, 1947) no mesmo ano em que terminava, em colaboração com Adorno, a famosa Dialektik der Aufklirung (Amsterdam, 1947), enquanto já em 1941] Marcuse publicara a primeira edição de Reason and Revolution (II ed., New York, 1954). Em todas estas obras, a ciência moderna e a tecnologia a ela vinculada são consideradas responsáveis pelo capitalismo e pela alienação que ele comporta (de um ponto de vista, obviamente, marxista), isto é, como atitudes fundamentalmente irracionais. A elas é contraposta uma diferente forma de saber, considerada a única realmente racional, a saber, a dialética de origem hegeliana e marxiana, mesmo que entendida em sua formulação “ocidental” (isto é, não naquela do “materialismo dialético” soviético).

(BERTI, p.229-230)

 

As distinções morais, a saber, entre bem e mal, justo e injusto etc., não podem, segundo Strauss, ser “demonstradas”, mas são admitidas em base a tendências naturais, ou induzidas mediante a educação. É necessário, portanto, para elas, um tipo de raciocínio que seja bom não apenas para os filósofos, mas também para os cidadãos enquanto tais. Ele afirma:

O filósofo deve seguir o exemplo de Ulisses e começar pelas premissas das quais, em linhas gerais, fez-se um pacto, ou pelas opiniões geralmente aceitas: ele deve discutir ad hominem, ou seja, dialeticamente.

Por isso a filosofia política é um tratado “político”, ou seja, “popular”, da filosofia”

Muitos dos caracteres atribuídos desse modo à filosofia política por Strauss coincidem efetivamente com características semelhantes admitidas para ela por Platão e por Aristóteles. Este último, especialmente, salientou, com efeito, o caráter “prático” da ciência política, distinguindo-a das ciências teoréticas (distinção que, em Platão, não é igualmente clara), exatamente porque ela tem como escopo não somente o conhecimento, mas também a práxis, isto é, O bem!*. Também a continuidade de método entre filosofia política e vida política, sustentada por Strauss, tem um fundamento em Aristóteles, o qual, em mais de uma ocasião, acentuou certa afinidade entre a política e a sabedoria (phrónesis); esta é uma virtude, a virtude de deliberar bem, isto é, a capacidade de encontrar os meios mais convenientes para a realização de um fim bom”. Enfim, também o reconhecimento do caráter dialético.

(BERTI, p.235-236)

 

2. A “reabilitação da filosofia prática” na Alemanha:

Na origem da “reabilitação da filosofia prática” que aconteceu na Alemanha está; indubitavelmente, a obra-prima de Gadamer, Verdade e método, cuja primeira edição remonta a 1960. No capítulo desta obra dedicado à “Atualidade hermenêutica de Aristóteles”, o autor, como se sabe, vê na filosofia prática do pensador grego o modelo da própria hermenêutica, na medida em que esta trata “de uma razão e de um saber que não são separados por um ser transformado, mas são determinados por este ser e determinantes para ele”, e “igualmente o problema hermenêutico se distingue claramente do problema de um saber puro, separado do ser”.

(BERTI, p. 248)

:GADAMER:

À primeira vista, Gadamer parece referir-se, com estas palavras, à verdadeira filosofia prática, isto é, a que Aristóteles denomina “ciência política”, referindo-se às conhecidas passagens do I livro da Ética a Nicômaco na qual se afirma que, em tal ciência, não se pode pretender a exatidão extrema, própria, ao contrário, à matemática, mas dela se deve contentar em dar um esboço, e com tal esboço fornecer um certo auxílio à consciência moral. Logo depois, entretanto, ele parecer concentrar a atenção exclusivamente na virtude dianoética da phrónesis, a qual, como veremos em seguida, é exatamente a consciência moral à qual a filosofia prática deveria fornecer um auxílio. Ele afirma, com efeito:

E claro que o saber moral, assim como Aristóteles o descreve, não é um saber objetivo; aquele que sabe não estar diante de um estado de coisas que se trata de registrar objetivamente, mas imediatamente implicado e interessado nisso que deve conhecer. Trata-se de algo que ele deve fazer,

e cita, a este respeito, o VI livro da Ética a Nicômaco, isto é, precisamente o que trata da phrónesis. A referência logo após é ainda mais explícita, quando o autor declara:

Que este não seja o saber da ciência é claro. Neste sentido, a distinção de Aristóteles entre o saber moral da phrónesis e o saber teorético da epistéme é clara, sobretudo se se tem presente que, para os gregos, À ciência é pensada sobre o modelo da matemática, isto é, de um saber do imutável, um saber que se funda em demonstrações e que, por isso, todos podem aprender […]. Em contraposição a esta ciência “teorética”, as ciências do espírito articulam-se diretamente com o saber moral. São as ciências morais”. O seu sujeito é o homem e o que sabe de si. Este, porém, sabe-se como sujeito da ação, e o saber que desse modo tem de st mesmo não aspira verificar o que é. Quem age tem, ao contrário, de operar com coisas que não são sempre as mesmas, mas podem ser também diferentes. Nelas, ele descobre os aspectos nos quais deve agir. O seu saber deve guiar a sua ação.

Mais adiante, este saber é definido por Gadamer como “um saber-se, isto é, um saber para si”. Em seguida, O autor extrai da análise aristotélica da phrónesis os caracteres do saber prático que, para ele, correspondem igualmente aos caracteres da hermenêutica, a saber: 1) a sua estreita vinculação com a situação concreta do sujeito cognoscente, 2) a impossibilidade de aprendê-la por meio do ensino e, consequentemente, de esquecê-la, 3) a sua capacidade de fazer uma síntese entre o conhecimento dos fins e o conhecimento dos meios, 4) O seu pressupor certo tipo de experiência. Ele pode, por conseguinte, concluir: “Se retomamos o que, do ponto de vista da nossa investigação, deduzimos da descrição aristotélica do fenômeno ético e em particular da virtude do saber moral, podemos dizer que a análise de Aristóteles apresenta-se como uma espécie de modelo dos problemas que se põem na tarefa hermenêutica” Ê, portanto, sobretudo a noção de phrónesis o elemento propriamente aristotélico que Gadamer introduz no debate filosófico atual, mas com a tendência de identificá-la, sem dúvida, com a de filosofia prática.

(BERTI, p.249-250)

 

Uma distinção entre filosofia prática e phrónesis é introduzida, entretanto, por Gadamer, onde ele afirma que:

a ciência prática, que é ciência de tal saber prático [isto é, da phrónesis], não é nem uma ciência teórica como a matemática, nem um saber especializado como aquele que domina com conhecimento de causa um procedimento de trabalho, uma poíesis, mas é uma ciência de perfil autônomo. Ela deve elevar-se acima da própria práxis para em seguida tornar a relacionar-se com ela, uma vez que foram extirpadas as generalidades típicas das quais ela se torna consciente. […] A filosofia prática, portanto, é, sem dúvida, uma “ciência”, vale dizer, um saber em geral que, enquanto tal, pode ser ensinado, ainda que, porém, seja uma ciência sujeita a determinadas condições. Ela requer tanto de quem a aprenda como de quem a ensine a mesma e indissolúvel relação com a práxis.

Por isso Gadamer pode concluir: Ora, tudo isso que dissemos da filosofia prática vale também para a hermenêutica.

(BERTI, p.251-252)

 

Nestas declarações, Gadamer não se limita a expor novamente o pensamento de Aristóteles, mas O interpreta, fazendo-o seu, e por isso modificando-o. Ê verdade, com efeito, que, para Aristóteles, também a filosofia prática é ligada à práxis, no sentido de que tem o escopo de tornar melhor o homem, mas Aristóteles não diz nunca que ela pressupõe a phrónesis, a qual parece ser, mais do que a virtude do filósofo, ainda que prático, a virtude do político, isto é, do homem de governo, exemplificado simbolicamente por Péricles, enquanto o filósofo prático exemplar, para Aristóteles, parece ser muito mais Sócrates, ao qual ninguém tinha reconhecido capacidade de governo, nem a pólis, e nem também, confiando-se na tradição, a sua própria família.

(BERTI, p.254)

Conclusão de BERTI acerca da abordagem de GADAMER sobre a filosofia prática:

No conjunto, em suma, Gadamer reduz toda a filosofia de Aristóteles à filosofia prática e a filosofia prática à indicação do valor hermenêutico da phrónesis, entendida como faculdade essencialmente intuitiva, por influência da analítica existencial, ou hermenêutica da faticidade, de Heidegger. Compreende-se, assim, como a “reabilitação da filosofia prática” por ele proposta não apenas tenha sido definida como uma forma de “neo-aristotelismo” como acusada de conservadorismo”. Ela, com efeito, não apenas repropõe, passando por Heidegger, a filosofia prática de Aristóteles como filosofia tout court, mas elimina dela exatamente o momento dialético, isto é, a discussão, a crítica das opiniões c da própria realidade existente, reduzindo-a à intuição própria ao phrónimos, vale dizer, ao juízo do homem sábio, expressão do éthos dominante.

(BERTI, p. 262)

: Rúdiger Bubner :

Phrónesis — escreve Bubner — é à razão que se legitima no prático, que media a universalidade da inclinação para um objetivo do agir com a variedade dos casos de situações mutáveis. No agir a phrónesis já é sempre em obra, e a tarefa da filosofia prática é a de reencontrar e disseminar na vida vivida esta base de racionalidade.

A expressão lógica desta racionalidade, segundo Bubner, é constituída pelo célebre “silogismo prático”, isto é, pelo silogismo no qual a premissa maior é constituída pela indicação do fim, a premissa menor pela individuação dos meios e a conclusão pela ação ela mesma.

 

3. A filosofia prática de Aristóteles na atual filosofia anglo-americana:

: MACINTYRE

O primeiro livro importante de MacIntyre, After Virtue, de 1981, é uma tomada de posição diante do debate originado nos anos 70 pelo famoso livro de John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Mass., 1971). Ele critica todas as mais importantes teorias éticas contemporâneas, do neocontratualismo ao utilitarismo, reunindo-as, talvez um pouco demasiado rapidamente, sob a acusação de “emotivismo”, e apresentando-as como expressões da falência do ideal iluminista de fundar a ética na razão, entendida como racionalidade científica”

[…]

A única alternativa a Nietzsche, segundo MacIntyre, é a ética de Aristóteles, por ele apresentada como umaética da virtude, ou melhor, das virtudes, as quais não são somente os caminhos para realizar O télos do homem, mas são, antes de tudo, os hábitos, possíveis apenas no interior de uma tradição e por isso de uma comunidade historicamente dada, como era, no caso de Aristóteles, a pólis. À abstrata racionalidade do iluminismo e da “situação originária? de que fala Rawls, MacIntyre contrapõe, portanto, uma ética fundada nas “comunidades locais”, para as quais ele se reporta, além de a Aristóteles, a São Bento.

É demasiado fácil salientar o caráter conservador também desta forma de neo-aristotelismo, a qual se mune mais do ideal da comunidade doméstica do que do ideal da sociedade política. A razão disso, a meu ver, é a redução da filosofia prática de Aristóteles à teoria das virtudes, em particular das virtudes éticas (ainda que MacIntyre valorize adequadamente a phrónesis), redução que negligencia completamente o momento especificamente racional da ética aristotélica.

O livro posterior de MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality? (Notre Dame, 1988), confirma esta impressão, afirmando que a ética é sempre fundada numa tradição e que as tradições são muitas. Entre estas, O autor analisa a aristotélica, a agostiniana, a tomista ¢ as escocesas pré-iluministas, exprimindo a sua preferência pela terceira”. Sobre isso é fácil observar não apenas que esta última preferência permanece privada de qualquer justificação racional, mas também que a recusa ao liberalismo expõe ainda uma vez MacIntyre à acusação de conservadorismo?. No conjunto, portanto, pode-se dizer que o neo-aristotelismo de Maclntyre apresenta notáveis afinidades com o neo-aristotelismo alemão de Gadamer e Ritter, enquanto negligencia quase completamente a contribuição específica de Aristóteles à determinação de uma racionalidade prática.

(BERTI, p.270-271)

 

: B. WILLIAMS : 

Embora Williams não se declare abertamente aristotélico e refira-se à ética antiga como mais adequada do que as teorias éticas atuais para as reais exigências da vida moral, o seu livro mais famoso, Ethics and the Limits of Philosophy (1985), indica claramente na ética aristotélica a mais alta expressão da ética antiga c a mais válida alternativa seja ao utilitarismo seja ao neocontratualismo contemporâneos”, A concepção moderna de ética é a iluminista, segundo a qual toda decisão deve ser justificada por uma argumentação racional, isto é, por uma explicação discursiva. Aristóteles admite, ao contrário, uma “razão prática”, diferente da teorética, a qual supõe uma “disposição” para agir de certo modo. Ele, dessa maneira, compreendeu, segundo Williams, que a ética não pode fundar-se somente na razão, mas supõe sempre uma disposição para aceitar razões particulares. As teorias éticas, com efeito, nunca estiveram em condição de justificar universalmente as escolhas morais: elas têm uma concepção científica, burocrática e pública da racionalidade, com pretensões de universalidade, de objetividade. A racionalidade prática, ao contrário, deve ser radicada na realidade social e histórica, a qual é feita de experiência moral e determinada pelas instituições.

Williams também, entretanto, parece interpretar Aristóteles em um sentido um tanto redutor, porque assume a “razão prática” aristotélica em uma acepção muito restrita, a que coincide com a phrónesis, que é a capacidade de encontrar os meios adequados para a realização de um fim já dado, e o fim é dado pela virtude, isto é, pela predisposição, que, na prática, se funda sobre o éthos. Este autor, portanto, expõe uma forma de neo-aristotelismo semelhante ao alemão de Gadamer e Ritter, deixando completamente de lado o aspecto teórico, isto é, crítico e dialético, da filosofia prática de Aristóteles, e talvez exatamente por isto não se declare abertamente aristotélico.

(BERTI, p.271-272)

 


 

Também em Habermas, portanto, assim como em Apel, verifica-se objetivamente uma convergência com alguns te mas do pensamento aristotélico, como a distinção entre poiesis e práxis e o reconhecimento de uma forma de argumentação, a dialética, diferente da demonstração científica e por isso mais apropriada ao discurso de tipo filosófico. Embora neste caso, mas nem nos outros que consideramos, não se possa falar de aristotelismo ou, pior, de neo- -aristotelismo, não há dúvida de que estamos na presença de uma influência relevante, direta ou indireta, consciente ou inconsciente que seja, do pensamento de Aristóteles sobre uma importante corrente filosófica do século XX.

(BERTI, p.298)

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