Fichamento: D. Coutinho: Contratos & Virtudes. Por uma Teoria Moral Mista

Contratos & Virtudes

Por uma Teoria Moral Mista


COUTINHO, Denis. Contratos & Virtudes. Por uma teoria moral mista. São Paulo. Edições Loyola, 2016.


RESUMO

Introdução

Realidades ou fenômenos diferentes parecem exigir critérios normativos diferenciados para ser adequadamente interpretados, e isso é especialmente verdadeiro no âmbito da moralidade.

Defenderemos que a forma mais eficiente de solução de nossos dilemas morais cotidianos pode ser encontrada com o uso de uma teoria moral mista. A ideia básica é que uma teoria moral mista que toma como complementares as virtudes e os princípios como critérios normativos está mais conectada com a forma como as pessoas julgam moralmente as ações em sua vida cotidiana. Partindo de certa percepção dos julgamentos morais corriqueiros, podemos perceber que levamos em consideração diferentes critérios normativos nos diferentes contextos de avaliação moral. Vejamos.

Quando julgamos um caso no âmbito de moralidade privada, como para saber se as pessoas devem ser fiéis ou não a seus parceiros, não apelamos usualmente para um princípio universal objetivo, como o da reciprocidade, e parecem ser aceitáveis socialmente as diferentes respostas que os indivíduos dão a esse tipo de dilema. … Entretanto, quando julgamos um caso de moralidade pública, como para saber se são justos ou não a tortura ou o estupro, vemos como problemáticas as razões puramente particulares que poderiam ser apresentadas para subsidiar determinar decisão, e a reinvindicação pelo uso de princípios gerais ou universais, como os de liberdade, igualdade e dignidade humana, parece se constituir como uma solução habitual, implicando que os agentes que torturarem e estuprarem serão merecedores de forte reprovação.

Mas o que isso parece mostrar? Que o problema não se resumiria à exequibilidade de as pessoas usarem ou não critérios normativos para o julgamento de uma ação, mas, antes, que a dificuldade pode estar em querer exigir apenas um critério ou um conjunto de critérios semelhantes para situações diferenciadas.

(COUTINHO, p. 15)

 

PAPEL DA TEORIA MORAL

Agora deixe-me esclarecer qual é o papel que atribuo a uma teoria moral. Penso que ela deve:

(i) tentar descrever o fenômeno dos julgamentos morais,

(ii) procurando classificar da melhor forma sua complexidade e tentando identificar suas normas, e, por fim,

(iii) indicar certo tipo de padrão normativo que pode ser usado quando queremos saber o que fazer e como viver, mais especificamente nos casos dos dilemas morais.

Isso significa que ela deve nos conectar com nossos sentimentos morais, bem como com as nossas disposições e intenções tanto em relação a nos mesmos como em relação aos outros, e procurar ver qual é o conjunto normativo que usamos quando fazemos juízos morais ou quando procuramos justificá-los. É por essa razão que os exemplos terão um papel de destaque neste livro, uma vez que eles parecem possibilitar essa conexão quando adequadamente empregados.

(COUTINHO, p. 16)

PRINCIPAL PROBLEMA DAS TEORIAS MORAIS MAIS CONHECIDAS

Dito isso, parece que o principal problema com as teorias morais mais conhecidas, como o utilitarismo, modelos deontológicos e ética das virtudes, não está propriamente na falha em prescrever um critério normativo identificado com base no fenômeno moral observado, mas na parcialidade com que se realiza a descrição desse fenômeno. Por exemplo, o utilitarista parece acertar ao apontar o princípio da maximização do bem-estar como padrão normativo com base em uma descrição dos agentes morais como indivíduos autointeressados. E por isso a solução da justificação da punição pela prevenção parece bastante apropriada. Mas parece errar ao não valorizar a liberdade e a dignidade humana, que são muito importantes na forma como vemos e como nos relacionamos uns com os outros na comunidade moral. Por isso o kantismo parece correto na identificação do princípio da autonomia, mas parece errar o alvo quando o aplica a todas as situações, como no caso da justificação retributivista de punição ou na proibição universal da mentira.

(COUTINHO, p. 17)

A INSPIRAÇÃO PARA A PROPOSTA DE UMA TEORIA MORAL MISTA : UMA COMPREENSÃO DA FILOSOFIA MORAL ARISTOTÉLICA

A inspiração dessa proposta vem de como eu compreendo a filosofia moral aristotélica, que explica a moralidade como contentora de esferas distintas que serão interpretadas com regras diferenciadas. Em primeiro lugar, encontramos o uso de regras universais, como as interdições universais que proíbem a ação de adultério e a emoção de inveja, por exemplo. Aqui não se trata de bem deliberar, levando em consideração as particularidades do caso, mas de seguir uma regra universal de “nunca cometer adultério”, por exemplo (EN 1107a 12-14).

Essa referência também pode ser vista no tratado da justiça, em que Aristóteles aponta para um critério matemático de igualdade proporcional a fim de saber como distribuir os bens (justiça distributiva) e para um critério de igualdade aritmética a fim de resolver conflitos na esfera civil (justiça corretiva), não sendo a justiça (particular) uma questão restrita à disposição do agente (EN 1131a 11-15, 1132a 26-34).

Além das regras universais, podemos identificar o uso de normas generalizantes, como as que recomendam obedecer ao pai, pagar as dívidas e obedecer às ordens médicas (EN 1164b 27-33). E, por fim, teremos a necessidade da deliberação do agente para encontrar a mediedade que contará como a ação virtuosa, uma vez que a maioria dos casos precisará de uma regra que é o próprio agente virtuoso (1106b 39-42).

Podemos questionar por que Aristóteles faz essa distinção que é incômoda para muitos intérpretes, especialmente para os que são estritamente particularistas. No meu entender, essa distinção está associada à forma adequada de compreender o fenômeno moral, segundo a qual ele não possui a mesma exatidão que o domínio matemático, ou mesma akribeia dos fenômenos naturais, uma vez que os assuntos práticos parecem envolver, para além da aplicação formal do critério ao caso, uma gama variada de circunstâncias ligadas ao agente, tais como sua disposição, sua experiência, bem como ao hábito moral concernente a suas emoções.

Note-se que esse modelo normativo na forma como eu interpreto é que ele parece fazer uma importante distinção entre uma esfera moral em que devemos aplicar uma regra a um caso para resolver certo problema e outra esfera em que devemos deliberar adequadamente, bem como ter uma disposição apropriada para que a ação tenha valor moral. Em meus termos agora essa distinção parece comportar uma diferenciação entre uma esfera da moralidade pública, em que o uso de regras universais e gerais parece ser a melhor solução, e uma esfera de moralidade privada que terá de contar com a boa deliberação particular do agente para se encontrar a resposta circunstancial adequada.

(COUTINHO, p. 17-18)

TESE METAÉTICA CENTRAL DA PROPOSTA DE UMA TEORIA MISTA

Nossa tese metaética central será a de que os valores morais devem estar conectados de alguma maneira com os fatos do mundo, mas não poderão ser reduzidos a eles. Isso quer dizer que defenderemos uma conexão entre valores e os fatos, conectando as prescrições com base em certas descrições, considerando certas condições; e, também, que a maneira mais eficiente para justificarmos nossos juízos morais será feita pela coerência de uma crença moral com um conjunto coerente de crenças morais e não morais. Por essa razão o método do equilíbrio reflexivo terá destaque nessa proposta, de forma que possibilite a conexão entre os modelos contratualista e da ética das virtudes. Esse esquema também contará com um semáforo cognitivista, com um tipo especial de cognitivismo vinculado a um contextualismo para se encontrar o significado dos juízos morais por meio de uma convergência prática. Por fim, esse modelo normativo misto contará com uma ontologia construtivista, de modo que se tomem os valores morais não como fatos independentes, mas como algo que terá sua objetividade dada pelas circunstâncias de sua construção.

(COUTINHO, p. 20)

Capítulo 1 – Teoria moral mista

UM DOS PROBLEMAS CENTRAIS DA MAIORIA DAS TEORIAS ÉTICAS

Creio que um dos problemas centrais da maioria das teorias normativas foi sempre tentar estabelecer um critério único para todas as situações morais, sejam elas de moralidade privada, sejam no âmbito da moralidade pública. A pretensão desmedida geralmente oblitera o caminho e impossibilita chegar a algum resultado factível. Uma forma de teoria normativa menos abrangente poderia advogar o uso de critérios diferentes para essas situações diversas. Penso que uma maneira interessante de superar a dicotomia fato/valor de forma complementar seja fazer uso de uma teoria moral mista de decisão racional/razoável que pode levar em consideração os motivos e a escolha deliberada do agente para os casos de moral privada e, também, pode considerar fundamental o uso de valores morais públicos reconhecidos em consenso razoável para os casos de moral pública, considerando tanto as virtudes quanto os princípios morais como critérios relevantes para a orientação da ação.

O uso de uma teoria normativa mista de decisão racional/razoável pode contar tanto com aspectos internalistas como com aspectos externalistas para a justificação de crenças e princípios morais de uma forma coerentista e contextualista e, assim, ser uma alternativa tanto aos modelos fundacionistas quanto os modelos céticos em estrito senso. Estou motivado a acreditar que teríamos, assim, um bom ponto de partida, dadas as alternativas existentes. Isso poderia ser tomado como desejável e aceitável em nosso contexto moral?

(COUTINHO, p. 37)

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